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COISAS DO MEU DIARIO

auctor: «Os porcos preferem milho a perolas».

Um monograma complicado subscrevia: «O Romcambole diverte mais».

E assim por quanto espaço em branco tinha o livro, margens ou fins de capitulo, as apreciações se alastravam com levíssimas variantes aos sobrio «Li e gostei inicial». Havia nomes bem antigos, de pessoas fallecidas, e nomes das meninas casadeiras da epoca.

A mentalidade de Oblivion bebia á farta naquella veneranda fonte. Abeberavam-se naquelle Bernardo de «estylo e boa linguagem», conforme affirmou um; No Rocambole truncado exercitavama os músculos da imaginativa; e no Paulo de Kock os eleitos, os Summos (os que sabiam francez!) fartavam-se da leve grivotserie permitida a espíritos superiores.

Essa trindade impressa bastava á educação literária da cidade.

Feliz cidade!

Si é de temer o homem que conhece um livro, a cidade que conhece tres é de venerar. Veneração entrentanto que não virá, porque o mundo desconhece a pobrezinha Oblivion. Mas, por não paga, uma dívida deixa de ser menos devida?

OS PERTURBADORES DO SILENCIO

O silencio em Oblivion é como o frio nas regiões arcticas; uma permanente. Não se comprehende a segunda sem o primeiro. Elle a completa; ela o define.

Durante a noite aquelle silencio é inteiriço como a escuridão. Os ouvidos, por mais que as apurem, nada ouvem a não ser um ressoar vago e remoto, lembrando myriada de grilos microscopicos chiando em surdina. Não seria isso aquellla harmonia das espheras, que refere o philoshopo grego?

Mas durante o dia a integridade do silêncio em Oblivion sofre lesões. Uns tantos rumores, sempre os mesmos, e periodicamente repetidos, constellam-no de soluções de continuidade. O seu velho inimigo, o Som, dentro delle berra, a espaços, um grito sedicioso, tal o relâmpago que destroe momentaneamente o imperio das trevas. Mas o silencio logo subjuga, destroe e absorve o intruso.

A' frente desse grupo de Irreverencias está o Sino da egreja. Repicando missa aos domingos, ou chorando a defuncto, alegre ou funebre — é o Sino o mais violento perturbador do Silencio de Oblivion.

Outro é a capina trimensal das ruas — o raspar das enxadas perturba-o com insistência d'um coaxar sapo-ferreiro.

Outro é o fim das aulas; quando soam as quatro horas o portão do Grupo Escolar borbota um fluxo de meninos, rompidos em algazarra, berrando, cantando.

Outro, e este deveras notável, é o carrinho da Camara.

O carrinho da Camara é o vehiculo mais importante de Oblivion — que além delle só conta mais um, o Zé Burro, um solido preto mina empregado no transporte de cousas pesadas. E é o principal por varias razões ponderosas, entre as quaes merece destaque o ser elle todo de ferro ao passo que o outro é de carne. Verdade seja que o carro só tem uma roda e o preto tem duas pernas... Mas como a roda do carrinho é bem centrada e bem redonda, e as pernas do Zé são cambaias, aquella superiorida-