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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 17, n. 3, e20210034, 2022
CRITÉRIOS PARA A TRANSCRIÇÃO PALEOGRÁFICA. ALGUMAS SOLUÇÕES ENCONTRADAS NA TRANSCRIÇÃO DOS MANUSCRITOS

O trabalho de transcrição do texto das cartas dos Camarões seguiu critérios diferentes dos utilizados para a transcrição de manuscritos em português medieval ou dos séculos XVI e XVII. Com efeito, o trabalho paleográfico com tais manuscritos implica geralmente uma transcrição fiel, com a reprodução das abreviaturas usadas, da pontuação tal como se acha no texto, da separação de elementos da mesma palavra, da união de palavras diferentes etc. Somente depois disso é que o texto é transcrito na ortografia atual. Já com relação aos manuscritos dos índios Camarões, deve-se considerar que o tupi antigo era língua de tradição oral, sem alfabeto próprio. Os textos coloniais apresentavam variações ortográficas muito grandes. Assim, utiliza-se, na transcrição das cartas, uma ortografia predominantemente fonética, que altera aquela que se encontra nos textos originais. Saltamos, assim, a etapa prévia de transcrição fiel dos manuscritos. A ortografia aqui utilizada foi a que empregaram dois grandes tupinistas do século XX, Antônio Lemos Barbosa (1956) e Frederico Edelweiss (1958), em suas obras. A ortografia utilizada por tais autores foi aqui usada, contudo, com algumas modificações: 1. Não empregamos os hifens para separar morfemas tupis, como faz Barbosa, exceto quando há composição de uma palavra da língua portuguesa com outra da língua tupi (por exemplo, cristão-kanhema, capitão-etá etc.); 2. Representamos a consoante oclusiva glotal /Ɂ/ com apóstrofo, como sucede na escrita atual do guarani paraguaio, o que não fizeram aqueles autores.

A carta de 19 de agosto é a de mais difícil transcrição, por causa de algumas características da sua ortografia e por apresentar trechos borrados.

Por ser língua de tradição oral, de povos ágrafos, houve problemas ortográficos quando o tupi antigo passou a ser escrito. Alguns deles foram os seguintes:

a)Não havia letra distinta para representar o fonema /ɨ/. No século XVI, a vogal ɨ era representada por ig. Passou a ser usado o ípsilon a partir de 1621, com a publicação da “Arte da Lingua Brasilica”, do padre Luís Figueira (1621). Nas cartas dos índios Camarões, contudo, são usadas indiferentemente as letras i, j e também ig para representar aquela vogal. Utilizaremos y, em nossa transcrição, para representá-la;
b)Os epistológrafos indígenas, ao escreverem em tupi antigo, frequentemente separavam sílabas de uma mesma palavra ou uniam palavras distintas. Vejam-se os exemplos abaixo, tomados da carta de Diogo da Costa, datada de 17 de outubro de 1645:
Paraibi guara
Aqui o sufixo -ygûara, representado no texto por i guara, teve sílabas separadas.
maẽgua çuetendebe
Aqui o sufixo -gûasu, representado no texto por guaçu, teve suas duas sílabas separadas (...gua çu...). Por outro lado, o pronome ndebe uniu-se à palavra que o antecede.
Em nossa transcrição, não mantivemos tais procedimentos;
c)Não era representada a consoante oclusiva glotal /Ɂ/. Em nossa transcrição, ela é representada pelo apóstrofo (‘), conforme já dissemos anteriormente;
d)Os sinais de pontuação e a acentuação gráfica são pouco utilizados nas cartas. Em nossa transcrição utilizamo-los sistematicamente;
e)Não há, nas cartas, representação sistemática de semivogais. Usava-se às vezes , às vezes j para se representar a semivogal iode /j/. Em nossa transcrição, utilizamos o acento circunflexo sobre elas (î, û e ŷ). Embora uma convenção para marcar as semivogais não seja, com efeito, necessária para que um leitor não nativo contemporâneo possa reproduzir
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