Página:Historias e sonhos - contos (1920).djvu/175

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vivendo aos trombolhões, sem norte, sem rumo e sem esperança.

Um espírito que criou para si um ideal de vida muito diferente do que a nossa atual de fato apresenta, conclui que tanto vale ter isto ou aquilo; que os homens são insuportáveis, tolos, injustos e que devemos vê-los, ricaços ou generais, doutores ou curandeiros, carvoeiros ou almirantes, ministros e os seus sábios secretários, na sua hipocrisia de tartufos, na sua miséria moral, na sua abjeção necessária, como atores de uma comédia que nos deve fazer rir, sem esquecer de ter pena deles, pois os seus esgares, as suas pinturas, as suas roupagens brilhantes de reis, de príncipes, de papas ou os trapos de mendigos que os vestem, a sua caracterização, enfim, tem por destino ganhar dinheiro, a fim de que não morram de fome.

Sem que me atribua qualidades excepcionais, detesto a hipocrisia e por isso digo que deixo o emprego sem saudades.

Nunca o amei, jamais o prezei. No começo, se tivessem respeitado justamente a dignidade do meu juramento, o meu trabalho e as qualidades de burocrata que eu tinha como todos os outros, talvez mudasse de sentimento, e, mesmo, como tantos outros, me tivesse deixado anular comodamente no ramerrão burocrático.

Não quiseram assim, revoltei-me; e, desde essa revolta, sei que os meus desastres são devidos muito a mim e um pouco aos outros. Daí para cá, todo o meu esforço tem sido o livrar-me de tal lugar, que é para a minha consciência um foco de apreensões, transformando-se ele em um inquisitorial aparelho de torturas espirituais que me impede de pensar tão somente no esplendor do mistério e rir-me à vontade desses bonecos sarapintados de títulos e distinções que, não sem pena, me fazem gargalhar interiormente para mais perfeitamente gozar a bronca estultícia deles.

A minha sociedade agora não será mais a dos simuladores do talento, do trabalho, da honestidade, da temperança,