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— Você exaggera, Vargas, nem o diabo não é tão feio assim, creatura de Deus!

— Homem, seu doutor, quer saber? Contando não se acredita. Aquillo é feiura que só vendo!

— Nesse caso quero vel-o. Um horror dessa marca merece bem uma pernada.

Neste comenos assomou Christina á porta, annunciando café na mesa.

— Sabe? disse-lhe o noivo, temos um bello passeio em perspectiva: desentocar um gorilha que, diz o Vargas, é o bicho mais feio do mundo.

— Boccatorta? exclamou Christina com um reverbero d'enojo no rosto. Não me fale nisso! Só o nome dessa creatura me põe arrepios no corpo.

E contou o que sabia delle. Boccatorta representára papel saliente na sua imaginação. Pequenita, amedrontavam-n'a as mucamas com a cuca, e a cuca era o negro. Mais tarde, com ouvir ás creoulinhas todos os horrores correntes á conta dos seus bruxedos, ganhou inexplicavel pavor ao noctambulo. No collegio houve tempo em que, noites e noites a fio, o mesmo pesadelo a atropelou: Boccatorta a perseguil-a, e ella, em transes, a fugir. Gritava por soccorro, mas a voz lhe morria estrangulada na garganta. Despertava arquejante, exhausta, lavada em suores frios. Curou-a o tempo, mas a obsessão vincára para sempre fundos vestigios em su'alma.

Eduardo insistia:

— E' o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru' da realidade para desmanchar exaggeros de imaginação. Vamos todos, em farrancho, e asseguro-te que a piedade te fará ver no espantalho, em vez dum monstro, um simples desgraçado digno do teu soccorro.