Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CLIX
A vida, ou espírito vital, que passando de uns a outros vai fazendo a descendência dos mortais, parece que indica de algum modo a existência da Nobreza originária; e com efeito se a vida se transfere sendo mais, porque não há-de transferir-se a Nobreza sendo menos? A vida é transmissível, e assim deve ser também a Nobreza que a acompanha. Porém não tiremos erradas consequências. A vida não se pode dizer que é transferível, e ainda que o fosse, nem por isso ficava sendo transferível a Nobreza: só o que existe fisicamente se transfere, mas não aquilo que só tem uma existência mental. Tudo o que consta de imaginação unicamente, nem se passa, nem se dá, nem se transmite. A vida com que vive um, não é a mesma com que outro vive; a imaginação de um, não é a mesma que outro tem. A vaidade desperta a imaginação, ou ideia de Nobreza, esta não vem como imaginação herdada, mas adquirida; e ninguém sabe que a tem, ou que a não tem, senão depois que o imagina; naquela imaginação o que se ganha, ou perde, é um pensamento; e este quando é falso, não tem menos entidade, que quando é verdadeiro; porque nas cousas vãs, a verdade não vale mais do que a mentira.