Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/CVIII
A natureza que na produção da fermosura se empenha em formar um encanto, deste não quer que seja invencível o poder; por isso na mesma fermosura inclui logo a tirania, o engano, e a vaidade, para que estes feios atributos, expostos à nossa vista, ou sirvam de quebrar a força a esse mesmo encanto, ou ao menos possam limitar-lhe o efeito; e assim temos o remédio na própria origem da ruína, e no mesmo mal achamos o defensivo dele: se a beleza nos atrai a imperfeição do génio nos desvia; se nos enleva uma imagem viva, donde em justas proporções, a natureza mostrou os seus primores, também uma condição áspera, e desabrida nos afasta; e finalmente se a nossa própria inclinação nos tira a liberdade, o nosso entendimento nos resgata. E assim não se queixe a fermosura, nem do amor, nem da inconstância; veja primeiro se acha a culpa em si; quanto mais que o amor, ainda que cego, nem por isso se obriga a estar sempre em um lugar; a inconstância ainda que odiosa, nem por isso lhe faltam os motivos, que a fazem justamente ser precisa. Quantas vezes a virtude depende unicamente da mudança! Nem sempre é traição a falta de firmeza; nem sempre o ser vário é ser infiel; e nem sempre o ser inconstante é ser ingrato. As sem-razões da fermosura autorizam o nosso esquecimento, o ser sensível é o que faz ser amante; e quem tem sensibilidade para amar, também a tem para sentir; porque se a formosura nos recreia, também a injúria nos irrita; se o agrado nos convida, o desprezo nos magoa; e se o amor enfim nos chama, também a ofensa nos retira.