Relatorio ao Governador do Estado de Alagoas
Exmo. Sr. Governador:
Trago a V. Excia. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Indios em 1928.
Não foram muitos, que os nossos recursos são exiguos. Assim minguados, entretanto, quasi insensiveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Municipio se achava, muito me custaram.
O principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração.
Havia em Palmeira innumeros prefeitos: os cobradores de impostos, o commandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Municipio tinha a sua administração particular, com prefeitos coroneis e prefeitos inspectores de quarteirões. Os fiscaes, esses, resolviam questões de policia e advogavam.
Para que semelhante anomalia desapparecesse luctei com tenacidade e encontrei obstaculos dentro da Prefeitura e fóra della — dentro, uma resistencia molle, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, obliqua, carregada de bilis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam tres mezes para levar um tiro.
Dos funccionarios que encontrei em Janeiro do anno passado restam poucos: sahiram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma. Os actuaes não se mettem onde não são necessarios, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Dêvo muito a elles.
Não sei se a administração do Municipio é boa ou ruim. Talvez pudesse ser peor.
A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o anno ter sido pessimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem applicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com intelligencia e porque fiz despesas que não faria se ellas não estivessem determinadas no orçamento.
Despendi com o poder legislativo 1:616$484 — pagamento a dois secretarios, um que trabalha, outro aposentado, telegrammas, papel, sellos.
A illuminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contracto com a empresa fornecedora de luz.
Gastei com obras publicas 2:908$350, que serviram para construir um muro no edificio da Prefeitura, augmentar e pintar o açougue publico, arranjar outro açougue para gado miudo, reparar as ruas esburacadas, desviar as aguas que, em epocas de trovoadas, inundavam a cidade, melhorar o curral do matadouro e comprar ferramentas. Adquiri picaretas, pás, enxadas, martellos, marrões, marretas, carros para aterro, aço para brocas, alavancas, etc. Montei uma pequena officina para concertar os utensilios estragados.
Houve 1:069$700 de despesas eventuaes: feitio e concerto de medidas, materiaes para aferição, placas.
724$000 foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Município. Os litros aqui tinham mil e quatrocentas grammas. Em algumas aldeias subiam, em outras desciam. Os negociantes de cal usavam caixões de kerozene e caixões de sabão, a que arrancavam taboas, para enganar o comprador. Fui descaradamente roubado em compras de cal para os trabalhos publicos.
No cemiterio enterrei 189$000 — pagamento ao coveiro e conservação.
A philarmonica 16 de Setembro consumiu 1:990$660 — ordenado de um mestre, aluguel de casa, material, luz.
Os escrivães do jury, do civel e da policia, o delegado e os officiaes de justiça levaram 1:843$314.
A administração municipal absorveu 11:457$497 — vencimento do prefeito, de dois secretarios (um effectivo, outro aposentado), de dois fiscaes, de um servente; impressão de recibos, publicações, assignatura de jornaes, livros, objectos necessarios á secretaria, telegrammas.
Relativamente á quantia orçada, os telegrammas custaram pouco. De ordinario vai para elles dinheiro consideravel. Não ha vereda aberta pelos matutos, força dos pelos inspectores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ella; communicam-se as datas historicas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos politicos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha — um telegramma; porque se deitou uma pedra na rua — um telegramma; porque o deputado F. esticou a cannela — um telegramma. Dispendio inutil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós chorámos e que em 1556 D. Pero Sardinha foi comido pelos cahetés.
As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatorio, que aqui os contribuintes pagam ao Municipio se querem, quando querem e como querem.
Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. O Municipio é pobre e demasiado grande para a população que tem, reduzida por causa das seccas continuadas.
No orçamento limpeza publica e estradas incluiram-se numa só rubrica. Consumiram 25:111$152.
Cuidei bastante da limpeza publica. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo accumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos immensos, que a Prefeitura não tinha sufficientes recursos para remover.
Houve lamurias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintaes; lamurias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamurias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.
Em falta de verba especial, inseri entre os dispendios realizados com a limpeza publica os relativos á prophylaxia do Municipio.
Contractei com o Dr. Leorne Menescal, chefe do Serviço de Saneamento Rural, a installação de um posto de hygiene, que, sob a direcção do Dr. Hebreliano Wanderley, tem sido de grande utilidade á nossa gente.
Concertei as estradas de Quebrangulo, da Porcina, de Olhos d'Agua aos limites de Limoeiro, na direcção de Canna Brava.
Foram reparos sem grande importancia e que apenas menciono para que esta exposição não fique incompleta. Faltam-nos recursos para longos tractos de rodovias, e quaesquer modificações em caminhos estreitos, ingremes, percorridos por animaes e vehiculos de tracção animal, depressa desapparecem. É necessario que se esteja sempre a renoval-as, pois as enxurradas levam num dia o trabalho de mezes e os carros de bois escangalham o que as chuvas deixam.
Os emprehendimentos mais serios a que me aventurei foram a estrada de Palmeira de Fóra e o terrapleno da Lagoa.
Tem oito metros de largura e, para que não ficasse estreita em uns pontos, larga em outros, uma parte della foi aberta em pedra.
Fiz cortes profundos, aterros consideraveis, valletas e passagens transversaes para as aguas que descem dos montes.
Cerca de vinte homens trabalharam nella quasi cinco mezes.
Parece-me que é uma estrada razoavel. Custou 5:049$400.
Tenciono prolongal-a á fronteira de Sant'Anna do Ipanema, não nas condições em que está, que as rendas do Municipio me não permittiriam obra de tal vulto.
Como, a fim de não inutilizar-se em pouco tempo, a estrada de Palmeira de Fóra se destine exclusivamente a pedestres e a automoveis, abri outra parallela ao transito de animaes.
O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira immensa, um vasto acampamento de tatús, qualquer coisa deste genero.
Buraco por toda a parte. O aterro que lá existiu, feito na administração do prefeito Francisco Cavalcante, quasi que havia desapparecido.
Em um os lados do caminho abria-se uma larga fenda com profundidade que variava de tres para cinco metros. A agua das chuvas, impetuosa em virtude da inclinação do terreno, transformava-se ali em verdadeira torrente, o que augmentava a cavidade e occasionava serio perigo aos transeuntes. Além disso outras aberturas se iam formando, os invernos cavavam galerias subterraneas, e aquillo era inaccessivel a vehiculo de qualquer especie.
Emprehendi aterrar e empedrar o caminho, mas reconheci que o solo não fendido era inconsistente: debaixo de uma tenue camada de terra de alluvião, que uma estacada sustentava, encontrei lixo. Retirei o lixo, para preparar o terreno e para evitar fosse um monturo banhado por agua que logo entrava em um riacho de serventia publica. Quasi todos os trabalhadores adoeceram.
Estou fazendo dois muros de alvenaria, extensos, espessos e altos, para supportar o aterro. Dei á estrada nove metros de largura. Os trabalhos vão adiantados.
Durante mezes mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda a ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros — outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem.
Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pyramides do Egypto, comtudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que nos não resignemos ás modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros.
Até agora as despesas com os serviços da Lagoa sobem a 14:418$627.
Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais util se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuisse com os meus parentes, que necessitam, coitados.
(Os gastos com a estrada de Palmeira de Fora e com o terrapleno estão, naturalmente, incluidos nos 25:111$152 já mencionados).
Deduzindo-se da receita a despesa e acrescentando-se 105$858 que a administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947.
40$897 estão em caixa e 11:004$050 depositados no Banco Popular e Agricola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o deposito.
Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma especie. A Prefeitura ganhou: livrou-se de um thesoureiro, que apenas serveria para assignar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os thesoureiros não fazem outra coisa, e teve 615$050 de juros.
Os 40$897 estão em poder do secretario, que guarda o dinheiro até que elle seja collocado naquelle estabelecimento de credito.
Em Janeiro do anno passado não achei no Municipio nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anachronicas, do tempo das candeias de azeite.
Constava a existencia de um codigo municipal, coisa inattingivel e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quasi a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o codigo era uma especie de lobishomem.
Afinal, em Fevereiro, o secretario descobriu-o entre papeis do Imperio. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com apparencia de primeiro livro de leitura do Abilio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sêbo.
Com ellas e com outras que nos dá a Divina Providencia consegui aguentar-me, até que o Conselho, em Agosto, votou o codigo actual.
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só ha curvas onde as rectas foram inteiramente impossiveis.
Evitei emmaranhar-me em teias de aranha.
Certos individuos, não sei porque, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam com autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos.
Não me entendi com esses.
Ha quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anonymas, e adoeça, e se morda por não ver a infallivel maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que della se servem como assumpto invariavel; ha quem não comprehenda que um acto administrativo seja isento da idéa de lucro pessoal; ha até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos.
Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325:500 de multas.
Não favoreci ninguem. Devo ter commetido numerosos disparates. Todos os meus erros, porem, foram erros da intelligencia, que é fraca.
Perdi varios amigos, ou individuos que possam ter semelhante nome.
Não me fizeram falta.
Ha descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois annos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade.
Palmeira dos Indios, 10 de Janeiro de 1929.
GRACILIANO RAMOS.
Receita | Despesa | |
---|---|---|
Licenças para estabelecimentos | 9:265$000 | |
Decima Urbana | 4:914$040 | |
Carnes verdes | 18:742$000 | |
Pesos e medidas | 4:250$000 | |
Officinas e artistas | 210$000 | |
Cercas e alicerces | 204$000 | |
Vendedores ambulantes | 410$000 | |
Feiras | 16:780$100 | |
Vehiculos | 380$000 | |
Depositos de inflammaveis | 450$000 | |
Bazares e botequins em festas | 399$000 | |
Construcção e reconstrucção | 210$000 | |
Serviço domestico | 180$000 | |
Torcedores de canna | 10$000 | |
Vendedores de leite | 20$000 | |
Vendedores de dôce | 40$000 | |
Terras do Estado | 6:191$100 | |
Bilhares | 100$000 | |
Aluguel de medidas | 3:101$800 | |
Cemiterio | 340$000 | |
Taxa sanitaria | 282$000 | |
Biqueiras | 316$000 | |
Cartas de chauffeurs | 150$000 | |
Divertimentos publicos | 150$000 | |
Placas para vehiculos | 120$000 | |
Casas de farinha | 625$000 | |
Compradores de madeira | 500$000 | |
Restituições | 68$100 | |
Eventuaes | 615$050 | |
Multas | 1:825$500 |
|
Poder legislativo | 1:616$484 | |
Administração municipal | 11:457$497 | |
Arrecadação das rendas | 5:602$244 | |
Illuminação publica | 8:921$800 | |
Obras publicas | 2:908$350 | |
Limpeza publica e estradas | 25:111$152 | |
Cemiterio | 189$000 | |
Gratificações | 1:843$314 | |
Philarmonica “16 de Setembro” | 1:990$660 | |
Eventuaes | 1:069$700 | |
Saldo | 10:939$089 | |
____________ | ____________ | |
12:649$290 | 71:649$290 | |
Saldo | 10:939$080 | |
Saldo do exercicio anterior | 105$858 | |
___________ | ||
11:044$947 | ||
No Banco Popular e Agricola de Palmeira | 11:004$050 | |
Em caixa | 40$897 | |
___________ | ||
11:044$947 |
Palmeira, 3 de Janeiro de 1929.
MARÇAL JOSÉ OLIVEIRA
Visto. — Palmeira-8-Janeiro-1929.