Ressurreição (Cruz e Sousa)

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Alma! Que tu não chores e não gemas,
         Teu amor voltou agora.
Ei-lo que chega das mansões extremas,
         Lá onde a loucura mora!

Veio mesmo mais belo e estranho, acaso,
        Desses lívidos países,
Mágica flor a rebentar de um vaso
         Com prodigiosas raízes.

Veio transfigurada e mais formosa
        Essa ingênua natureza,
Mais ágil, mais delgada, mais nervosa,
         Das essências da Beleza.

Certo neblinamento de saudade
        Mórbida envolve-a de leve...
E essa diluente espiritualidade
         Certos mistérios descreve.

O meu Amor voltou de aéreas curvas,
        Das paragens mais funestas...
Veio de percorrer torvas e turvas
         E funambulescas festas.

As festas turvas e funambulescas
         Da exótica Fantasia,
Por plagas cabalísticas, dantescas,
             De estranha selvageria.

Onde carrascos de tremendo aspecto
         Como astros monstros circulam
E as meigas almas de sonhar inquieto
         Barbaramente estrangulam.

Ele andou pelas plagas da loucura,
         O meu Amor abençoado,
Banhado na poesia da Ternura,
         No meu Afeto banhado.

Andou! Mas afinal de tudo veio
         Mais transfigurado e belo,
Repousar no meu seio o próprio seio
         Que eu de lágrimas estréio.

De lágrimas de encanto e ardentes beijos,
         Para matar, triunfante,
A sede ideal de místico desejo
         De quando ele andou errante.

E lágrimas, que enfim, caem ainda
         Com os mais acres dos sabores
E se transformam (maravilha infinda!)
         Em maravilhas de flores!

Ah! que feliz um coração que escuta
         As origens de que é feito!
E que não é nenhuma pedra bruta
         Mumificada no peito!

Ah! que feliz um coração que sente
         Ah! tudo vivendo intenso
No mais profundo borbulhar latente
         Do seu fundo foco imenso!

Sim! eu agora posso ter deveras
         Ironias sacrossantas...
Posso os braços te abrir, Luz das esferas,
         Que das trevas te levantas.

Posso mesmo já rir de tudo, tudo
         Que me devora e me oprime.
Voltou-me o antigo sentimento mudo
         Do teu olhar que redime.

Já não te sinto morta na minh'alma
         Como em câmara mortuária,
Naquela estranha e tenebrosa calma
         De solidão funerária.

Já não te sinto mais embalsamada
         No meu carinho profundo,
Nas mortalhas da Graça amortalhada,
         Como ave voando do mundo.

Não! não te sinto mortalmente envolta
         Na névoa que tudo encerra...
Doce espectro do pó, da poeira solta
         Deflorada pela terra.

Não sinto mais o teu sorrir macabro
         De desdenhosa caveira.
Agora o coração e os olhos abro
         Para a Natureza inteira!

Negros pavores sepulcrais e frios
         Além morreram com o vento...
Ah! como estou desafogado em rios
         De rejuvenescimento!

Deus existe no esplendor d’algum Sonho,
         Lá em alguma estrela esquiva.
Só ele escuta o soluçar medonho
         E torna a Dor menos viva.

Ah! foi com Deus que tu chegaste, é certo,
         Com a sua graça espontânea
Que emigraste das plagas do Deserto
         Nu, sem sombra e sol, da Insânia!

No entanto como que volúpias vagas
         Desses horrores amargos,
Talvez recordação daquelas plagas
        Dão-te esquisitos letargos...

Porém tu, afinal, ressuscitaste
        E tudo em mim ressuscita.
E o meu Amor, que repurificaste,
         Canta na paz infinita!