Últimas Páginas (1912)/S. Christovam/XVII
De novo Cristóvão correu o mundo, servindo os homens. Pelos descampados e pelos povoados, por longos Invernos, por longas Primaveras, correu o mundo, oferecendo os seus braços. Os anos tinham passado, e Cristóvão era mais velho que os mais velhos carvalhos. Os seus longos cabelos tinham embranquecido, e a sua força já não era tão forte. Mas cada dia o seu coração se enchia de uma ternura maior e mais vaga. Por vezes, sentado numa pedra, à beira de um caminho, olhava as árvores, os campos, os montes, e as simples flores silvestres, e sentia então como o desejo de apertar toda a terra contra o seu peito. Depois pensava que sobre ela viviam tantos miseráveis, tantos humildes, tantos enfermos – e era um desejo de sondar até aos últimos recantos aquele mundo, e de curar cada dor, matar cada fome, tornar o mundo alegre, são, perfeito. Partia então – e através das estradas mendigava para dar aos mendigos. Colocava-se à entrada das pontes, como um socorro sempre pronto – a ajudar um velho ou a carregar um fardo. O seu desejo seria sofrer ele só todas as opressões, carregar ele só todos os fardos humanos. E por vezes parava, olhava em redor, como procurando, nos vastos horizontes, serviços a prestar, fraquezas a socorrer. Depois pensava que eles, inumeráveis decerto se apresentariam cedo aos seus olhos; e partia, ficando triste, quando durante o daí os seus braços tinham permanecido ociosos. Para que lhos dera então Jesus tão grosso e fortes? Ia então sentar-se à entrada das pontes, onde a passagem era maior, como uma força pronta a trabalhar, pronta a socorrer. Se era um cavaleiro que passava, corria a buscar água para dar ao cavalo. Se era um carreteiro, ajudava as mulas a empurrar o carro. Se era um mendigo, mendigava para ele.
Pouco a pouco, a sua bondade ocupou-se dos animais. Também eles sofriam e tinham sobre a Terra o seu quinhão de miséria e de dor. Quando via então um animal carregado, tomava sobre os seus ombros o fardo. Recolhia ossos, pelas esquinas dos mercados, para distribuir aos cães famintos. era o enfermeiro dos animais feridos, a quem lavava as chagas, onde as moscas se prendiam. Um passarinho, voando, enchia-lhe o peito de ternura. E penetrava nas florestas, na esperança de cuidar dos velhos lobos doentes, ou dos veados que morrem de fome pelos tempos de neve.
Depois, pouco a pouco, na sua alma densa e simples veio a nascer lentamente a idéia de que as árvores também sofriam, bem como as florinhas dos campos. E desde então nunca mais cortou um tronco, para dele fazer um cajado. Todo o ramo, partido e seco no chão, o compadecia. Arredava-se para não pisar a erva. E pelos tempos de seca fazia longas caminhadas ao rio para trazer água, e dar de beber às plantas sufocadas pelo pó dos caminhos. Nas pedras mesmo, veio por fim a suspeitar que havia algum sofrimento. A picareta que as cortava, as duras rodas que as vincavam, o sol que as escaldava, a neve que as cobria, não lhes fariam uma dor, que elas guardavam na profundidade da sua mudez? E muitas vezes, com o seu vasto corpo, fez sombra às rochas: com as suas mãos, à maneira de longas pás, livrava as pedras da frialdade do gelo.
A sua ternura abrangia o Universo. Por vezes, de noite, olhando o céu, vinha-lhe como um grande amor pelas estrelas. Elas eram claras e puras. Um momento brilhavam, depois partiam. E a Lua que chegava então era tão triste, que um suspiro, sem som, levantava o coração de Cristóvão. Para onde iam assim todos aqueles astros, correndo, correndo? E viera a pensar que seriam almas subindo, subindo nos espaços, mais altas à medida que eram mais puras, ganhando uma légua por cada bondade que realizavam, e tendendo assim à perfeição, até se tornaram dignas de se abismar no seio sublime de Jesus.