Tenebrosa (grafia de 2008)

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Alta, alta e negra, de urna quase gigantesca altura, torso direito e forte, retesada na espinha dorsal como rígido sabre de guerra; colo erguido de ave pernalta, aprumado, gargalado e toroso; longos braços roliços, vigorosos, caídos, como extensas garras de falcão, ao amplo dos quadris abundantes e de linhas serenas, esculturais, de soberana estátua de mármore, — semelhas bem uma noturna e carnívora planta bárbara, ardente e venenosa da Núbia.

Olhos grandes, largos, profundos, cheios de tropical sensualismo africano e abertos como estrelas no céu da refulgente noite escura de ébano polido do rosto redondo — alta, alta e negra, de uma quase gigantesca altura — lembras também o astro nublado, caliginoso da Paixão, girando na órbita eterna da humanizada dolência da Carne, como mancha na luz, ou soturna mulher da Abissínia, cujos luxuriosos sentimentos panterizados sinistramente gelaram e petrificaram na muda esfinge dos secos areais tostados.

E eu quisera possuir o teu amor — o teu amor, que deve ser como frondejante árvore de sangue dando frutos tenebrosos. O teu amor de ímpetos de fera nas brenhas e nas selvas, sobre os broncos, graníticos penhascos, na cáustica solar de exóticos climas quentes de raças tropicalizadas na emoção, porque tu és feita do sol em chamas e das fuscas areias, da terra cálida dos desertos ermos...

Quisera possuí-lo — inteiro, estranho, eterno, esse amor! E que me parecesse, se o possuísse e o gozasse, possuir e gozar o Mar, ter dentro de mim o oceano coalhado — como a minh'alma está coalhada de sonhos — de navios, de iates, de escunas, de lúgares, galeões, naus e galeras, por uma tormenta avassaladora em que trovões formidáveis e cabriolas elétricas de raios fosforescentes, brechando o firmamento, sacudissem, num brusco arrepio proceloso, o túmido colo crespo e ululante das Vagas.

Quisera amar-te assim! E que nesse Mar tormentoso, sob a angustiosa pressão dos elementos, a um cabalístico sinal meu, como se absoluto poder me houvesse constituído o Deus terrível e supremo da Terra — iates, navios, lúgares, escunas, naus e galeras, conduzindo toda a humanidade a várias regiões do monstruoso mundo, de repente soçobrassem juntos, subitamente se afundassem nas goelas hiantes do Mar escancarado, abismante, tremendo...

Nós dois, então, fulminados pelo mesmo raio, batidos, esporeados pelo mesmo estertoroso trovão, seríamos arremessados ao seio glauco do oceano, abraçados na extrema contração espasmódica do gozo, indo dar às ilimitadas praias do Ideal os nossos cadáveres, ainda fortemente, desesperadamente unidos, enlaçados, presos, como se a derradeira agonia cruciante da sensualidade e da dor houvesse justaposto os nossos corpos na fremência carnal dos alucinados sentidos!

Alguma coisa de aventuroso — fantástico, como o espírito de Byron, aceso pela caricatura viva de urna deformação física; alguma coisa de estranho e satânico como Poe, tantalizado também pelas agruras da ironizante matéria, e por isso mesmo ainda mais esfuziante e flamejante; alguma coisa, enfim, de infernal, de diabólico, de luminoso e tétrico, ficaria então para sempre esvoaçando e pairando em torno da nossa memória, sobre o Nihil das nossas vidas, como sinistra ave desgarrada de outras ignotas regiões inacessíveis e cujo canto soturno e maravilhoso reproduzisse a magoada plangência da harpa misteriosa dos nossos sentimentos, infinitamente vibrando e soluçando através do lento desenrolar das longas eras que passam.

Quisera amar-te assim! Vibrado ao sol do teu sangue, incendiado na tua pele flamante, cujos penetrantíssimos aromas selvagens me alvoroçam, entontecem e narcotizam.

Assim amar-te e assim querer-te — nua, lúbrica, nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças da luxúria — os olhos livorescidos, como prata embaciada; a fila rútila dos rijos dentes claros cerrada no deslumbramento, no esplendor animal do coito; os nervos e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso tecido elevados como dois pequenos cômoros negros, cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus — nus como todo o corpo! — excitantes, impetuosos, tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação sexual do leite virgem da procriação da Espécie! E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em brasa, santuário sombrio das transfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol original das genitais

E, como para perpetuar a comoção crepuscular deste adeus, destas transfiguradas lágrimas de adeus, todo o infinito nirvânico deste adeus, nesta hora poente em que os Céus começam a revestir-se dos soturnos e solenes ensombramentos da Noite, eu irei erigindo, levantando com essa Dor, com os seus despedaçamentos, dilaceramentos e gritos, as torres de Mistério e Melancolia dos negros castelos maravilhosos da Paixão, em cujos soberbos, longos e silenciosos paços constelados as nossas duas almas erraram letárgicas, sonâmbulas, acorrentadas pelos Estigmas imponderáveis dos Sentimentos humanos e em cujos terraços altos e desolados tanta vez me debrucei aterrado e vencido, nas fundas horas da fadiga, da saciedade e das alucinações do Tédio, sentindo em torno rugir, bramar temporais, trovões, fora, surda e confusamente na Natureza, os desgrenhados invernos lívidos.

TENEBROSA

Alta, Alta e negra, de uma quase gigantesca altura, torso direito e forte, retesada na espinha dorsal como rígido sabre de guerra; colo erguido de ave pernalta, aprumado, gargalado e toroso; longos braços roliços, vigorosos, caídos, como extensas garras de falcão, ao amplo dos quadris abundantes e de linhas serenas, esculturais, de soberana estátua de mármore, — semelhas bem uma noturna e carnívora planta bárbara, ardente e venenosa da Núbia.

Olhos grandes, largos, profundos, cheios de tropical sensualismo africano e abertos como estrelas no céu da refulgente noite escura de ébano polido do rosto redondo — alta, alta e negra, de uma quase gigantesca altura — lembras também o astro nublado, caliginoso da Paixão, girando na órbita eterna da humanizada dolência da Carne, como mancha na luz, ou soturna mulher da Abissínia, cujos luxuriosos sentimentos panterizados sinistramente gelaram e petrificaram na muda esfinge dos secos areais tostados.

E eu quisera possuir o teu amor — o teu amor, que deve ser como frondejante árvore de sangue dando frutos tenebrosos. O teu amor de ímpetos de fera nas brenhas e nas selvas, sobre os broncos, graníticos penhascos, na cáustica solar de exóticos climas quentes de raças tropicalizadas na emoção, porque tu és feita do sol em chamas e das fuscas areias, da terra cálida dos desertos ermos...

Quisera possuí-lo — inteiro, estranho, eterno, esse amor! E que me parecesse, se o possuísse e o gozasse, possuir e gozar o Mar, ter dentro de mim o oceano coalhado — como a minh'alma está coalhada de sonhos — de navios, de iates, de escunas, de lúgares, galeões, naus e galeras, por uma tormenta avassaladora em que trovões formidáveis e cabriolas elétricas de raios fosforescentes, brechando o firmamento, sacudissem, num brusco arrepio proceloso, o túmido colo crespo e ululante das Vagas.

Quisera amar-te assim! E que nesse Mar tormentoso, sob a angustiosa pressão dos elementos, a um cabalístico sinal meu, como se absoluto poder me houvesse constituído o Deus terrível e supremo da Terra — iates, navios, lúgares, escunas, naus e galeras, conduzindo toda a humanidade a várias regiões do monstruoso mundo, de repente soçobrassem juntos, subitamente se afundassem nas goelas hiantes do Mar escancarado, abismante, tremendo...

Nós dois, então, fulminados pelo mesmo raio, batidos, esporeados pelo mesmo estertoroso trovão, seríamos arremessados ao seio glauco do oceano, abraçados na extrema contração espasmódica do gozo, indo dar às ilimitadas praias do Ideal os nossos cadáveres, ainda fortemente, desesperadamente unidos, enlaçados, presos, como se a derradeira agonia cruciante da sensualidade e da dor houvesse justaposto os nossos corpos na fremência carnal dos alucinados sentidos!

Alguma coisa de aventuroso — fantástico, como o espírito de Byron, aceso pela caricatura viva de uma deformação física; alguma coisa de estranho e satânico como Poe, tantalizado também pelas agruras da ironizante matéria, e por isso mesmo ainda mais esfuziante e flamejante; alguma coisa, enfim, de infernal, de diabólico, de luminoso e tétrico, ficaria então para sempre esvoaçando e pairando em torno da nossa memória, sobre o Nihil das nossas vidas, como sinistra ave desgarrada de outras ignotas regiões inacessíveis e cujo canto soturno e maravilhoso reproduzisse a magoada plangência da harpa misteriosa dos nossos sentimentos, infinitamente vibrando e soluçando através do lento desenrolar das longas eras que passam.

Quisera amar-te assim! Vibrado ao sol do teu sangue, incendiado na tua pele flamante, cujos penetrantíssimos aromas selvagens me alvoroçam, entontecem e narcotizam.

Assim amar-te e assim querer-te — nua, lúbrica, nevrótica, como a magnética serpente de cem cabeças da luxúria — os olhos livorescidos, como prata embaciada; a fila rútila dos rijos dentes claros cerrada no deslumbramento, no esplendor animal do coito; os nervos e músculos contraídos e os formosos seios de cetinoso tecido elevados como dois pequenos cômoros negros, cheios de narcotismos letais, impundonorosamente nus — nus como todo o corpo! — excitantes, impetuosos, tensibilizados e turgescidos, na materna afirmação sexual do leite virgem da procriação da Espécie! E que a tua vulva veludosa, afinal! vermelha, acesa e fuzilante como forja em brasa, santuário sombrio das transfigurações, câmara mágica das metamorfoses, crisol original das genitais impurezas, fonte tenebrosa dos êxtases, dos tristes, espasmódicos suspiros e do Tormento delirante da Vida; que a tua vulva, afinal, vibrasse vitoriosamente o ar com as trompas marciais e triunfantes da apoteose soberana da Carne!

Assim, arrebatado no teu impulso fremente de águia famulenta de alcantiladas montanhas alpestres, eu teria sobre ti o poderoso domínio do leão de majestosa juba revolta, amando-te de um amor imaterial, sob a impressão miraculosa de transcendente sensação, muito alta e muito pura, que se dilatasse e ficasse eternamente intangível sobre todas as vivas forças transitórias da terra.

Então, na cela mística do meu peito, como num sacrário, eu sentiria passar em vôos brancos esse grande Amor espiritualizado, estrela diluída em lágrimas, lágrimas convertidas em sangue, como a expressão de um sonho, ao mesmo tempo carnal e etéreo, humano e divino, que palpitasse, vivesse no meu ser e me trouxesse o travo, o sabor picante e amarguroso da Dor, que é a consagração, a perfeita essência do Amor.

Seria esse um requintado gozo pagão, cujo aroma enervante e capro, como o aroma selvático que vem do bafo morno e do cio dos animais das africanas florestas virgens, embriagasse o meu viver, desse ao meu espírito a alada forma de pássaro e desse à Arte que cultualniente venero, a pompa larga e bravia desse teu bufalesco temperamento e o resistente bronze inteiriço e emocional do teu nobre corpo de bizarro corcel guerreiro — ó alta, alta e maciça torre de treva, de cuja agulha elevada, esguia, aguda e expirante no Azul, o condor do meu Desejo vertiginosamente trêmula e vai as asas rufiando em torno...