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Auto de Mofina Mendes

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A obra seguinte foi representada ao excelente Príncipe e muito poderoso Rei Dom João III, endereçada às matinas do Natal, na era do Senhor, 1534.

Figuras:

  • A Virgem
  • Paio Vaz
  • Prudência
  • Pessival
  • Pobreza
  • Mofina Mendes
  • Humildade
  • Braz Carrasco
  • Barba Triste
  • Anjo Gabriel
  • Tibaldinho
  • S. José
  • Anjos.

Entra primeiramente um Frade, e a modo de pregação diz o que se segue:

Frade:

Três coisas acho que fazem
ao doido ser sandeu:
uma ter pouco siso de seu,
a outra, que êsse que tem
não lhe presta mal nem bem:
e a terceira,
que endoidece em grã maneira,
é o favor (livre-nos Deus)
que faz do vento cimeira,
e do toutiço moleira,
e das ondas faz ilhéus.
Diz Francisco de Mairões,
Ricardo e Bonaventura,
não me lembra em que escritura,
nem sei em quais distinções,
nem a cópia das razões;
mas o latim
creio que dizia assim:
Nolite vanitatis debemus con lidere de
his, qui capita sua posuerunt in

[manibus ventorum etc.

Quer dizer êste matiz
entre os primores que traz:
não é sisudo o juiz
que tem jeito no que diz
e não acerta o que faz.
Diz Boécio - de consolationis,
Origines - Marci Aureli,
Sailustius - Catilinarium,
Josefo - speculum beili,
glosa interliniarum;
Vicentius - scala coeli,
magister sententiarum,
Demosthenes, Calistrato;
todos êstes concertaram
com Scoto, livro quarto.
Dizem: não vos enganeis,
letrados de rio torto,
que o porvir não no sabeis,
e quem nisso quer pôr péis
tem cabeça de minhoto.
O bruto animal da serra,
ó terra filha do barro,
como sabes tu, bebarro,
quando há-de tremer a terra,
que espantas os bois e o carro?
- pelos quais dixit Anselmus,
e Seneca, - Vandaliarum,
e Plinius - Choronicarum,
et ta,nen glosa ordinaria
et Alexander - de aliis,
Aristoteles - de secreta secretorum:
Albertus Magnus,
Tuilius Ciceronis,
Ricardus, Ilarius, Remigius,
dizem, convém a saber:
se tens prenhe tua mulher
e por ti o compuseste,
queria de ti entender
em que hora há-de nascer,
ou que feições há-de ter
êsse filho que fizeste.
Não no sabes, quanto mais
cometerdes falsa guerra,
presumindo que alcançais
os secretos divinais
que estão debaixo da terra,
pelo qual diz Quintus Curtius,
Beda - de religione christiana,
Thomas - super trinitas alternati,
Agustinus - de angelorum choris,
Hieronimus - d'alphabetus hebraice,
Bernardus - de virgo assumptionis,
Remigius - de dignitate sacerdotum.
Êstes dizem juntamente
nos livros aqui alegados:
se filhos haver não podes,
nem filhas por teus pecados,
cria dêsses enjeitados,
filhos de clérigos pobres.
Pois tens saco de cruzados,
lembre-te o rico avarento,
que nesta vida gozava
e no inferno cantava:
água, Deus, água,
que lhe arde a pousada.
Mandaram-me aqui subir
neste santo anfiteatro,
para aqui introduzir
as figuras que hão-de vir
com todo seu aparato.
É de notar
que haveis de considerar
isto ser contemplação
fora da história geral,
mas fundada em devoção.
A qual obra é chamada
os mistérios da Virgem,
que entrará acompanhada
de quatro Damas, com quem
de menina foi criada:
a uma chamam Pobreza,
outra chamam Humildade;
damas de tanta nobreza,
que tôd'alma que as preza
é morada da Trindade.
À outra, terceira delas,
chamam Fé por excelência;
à outra chamam Prudência,
e virá a Virgem com elas,
com mui formosa aparência:
será logo o fundamento
tratar da saüdação,
e depois dêste sermão
um pouco do nascimento;
tudo por nova invenção.
Antes disto que dissemos,
virá com música orfea
Domine labia mea,
e Venite adoremus
vestido com capa alhea.
Trará Te Deum laudamus
d'escarlata uma libré:
Jam lucis orto sidere
cantará o benedicamus,
pela grã festa que é.
Quem terra, pontus, aethera
virá muito assossegado

num sendeiro mal pensado

e num gibão de tafetá
e uma gorra de orelhado.

Neste passo entra Nossa Senhora, vestida como rainha, com as ditas donzelas, e diante quatro anjos com música: e depois de assentadas, começam cada uma de estudar por seu livro, e diz

Virgem:

Que ledes, minhas criadas?
Que achais escrito aí?

Prudência:

Senhora, eu acho aqui
grandes coisas inovadas,
e mui altas para mi.
Aqui a Sibila Ciméria
diz que Deus será humanado
de uma virgem sem pecado,
que é profunda matéria
para meu fraco cuidado.

Pobreza:

Erutea profetisa
diz aqui também o que sente:
que nascerá pobremente,
sem cueiro nem camisa,
nem coisa com que se aquente

Humildade:

E o profeta Isaias
fala nisto também cá:
eis a Virgem conceberá
e parirá o Messias,
e flor virgem ficará.

:

Cassandra deI-rei Priamo
mostrou essa rosa frol
com um menino a par do sol
a César Otaviano,
que o adorou por Senhor

Prudência:

Rubum quem viderat Moïsen
sarça, que no êrmo estava,
sem lhe pôr lume ninguém;
o fogo ardia mui bem,
e a sarça não se queimava.

:

Significa a Madre de Deus:
esta sarça é ela só;
e a escada que vio Jacó,
que subia aos altos céus,
também era de seu vó.

Prudência:

Deve de ser por razão
de tôdas perfeições cheia
tôda, quem quer que ela é.

Num.:

Aqui a chama Salomão
tota pulebra arnica mea,
et macula non est in te.
E diz mais, que é porta coeil
et electa ut sol,
bálsamo mui oloroso,
pulchra ut lilium gracioso
das flôres mais linda flor,
dos campos o mais formoso:
chama-se plantatio rosa,
nova oliva speciosa,
mansa columba Noe,
estrêla a mais lumiosa.

Prudência:

Et acies ordinata,
formosa filha d'el-rei
de Jacó, et tabernacula
speculum sine macula,
ornata civitas Dei.

:

Mais diz ainda Salomão:
Hortus conclusus, fios hortorum,
medecina peccatorum,
direita vara de Arão,
alva sôbre quantas foram,
santa sôbre quantas são.
E seus cabelos polidos
são formosos em seu grado
como manadas de gado,
e mais que os campos floridos
em que anda apacentado.

Prudência:

É tão zeloso o Senhor,
que quererá o seu estado
dar ao mundo por favor,
por uma Eva pecador,
uma virgem sem pecado

Virgem:

Oh! se eu fôsse tão ditosa
que com êstes olhos visse
senhora tão preciosa,
tesouro da vida nossa,
e por escrava a servisse!
Que onde tanto bem se encerra,
vendo-a cá entre nós,
nela se verão os céus,
e as virtudes da terra
e as moradas de Deus.

Neste passo entra o anjo Gabriel, dizendo:

Gabriel:

Oh! Deus te salve, Maria,
cheia de graça graciosa,
dos pecadores abrigo!
Goza-te com alegria,
humana e divina rosa,
porque o Senhor é contigo.

Virgem:

Prudência, que dizeis vás?
que eu muito turbada sou;
porque tal saüdação
não se costuma entre nós.

Prudência:

Pois que é auto do Senhor,
senhora, não esteis turbada;
tornai em vossa color,
que, segundo o embaixador,
tal se espera a embaixada.

Gabriel:

Ó Virgem, se ouvir me queres,
mais te quero inda dizer:
benta és tu em mereceres
mais que tôdas as mulheres,
nascidas e por nascer.

Virgem:

Que dizeis vós, Humildade?
- que êste verso vai mui fundo,
porque eu tenho por verdade
ser em minha qualidade
a menos cousa do mundo.

Humildade:

O Anjo, que dá o recado,
sabe bem disso a certeza.
Diz Davi, no seu tratado,
qu'êsse esprito assim humilhado
é cousa que Deus mais preza.

Gabriel:

Alta Senhora, saberás
que tua santa humildade
te deu tanta dignidade,
que um filho conceberás
da divina Eternidade.
Seu nome será chamado
Jesus e Filho de Deus;
e o teu ventre sagrado
ficará horto cerrado,
e tu - Princesa dos Céus

Virgem:

Que direi, Prudência minha?
a vós quero por espelho.

Prudência:

Segundo o caso caminha,
deveis, Senhora Rainha,
tomar com o Anjo conselho

Virgem:

Quomodo fiat istud,
quoniam virum non cognosco?
porque eu dei minha pureza
ao Senhor, e meu poder,
com tôda minha firmeza

Gabriel:

Spiritus sanctus superveniet in te;
e a virtude do Altíssimo,
Senhora, te cobrirá;
porque seu filho será,
e teu ventre sacratíssimo
por graça conceberá.

Virgem:

Fé, dizei-me vosso intento,
que êste passo a vós convém.
Cuidemos nisto mui bem,
porque a meu consentimento
grandes dúvidas lhe vêm.
Justo é que imagine eu,
e que estê muito turbada:
querer quem o mundo é seu,
sem merecimento meu,
entrar em minha morada,
e uma suma perfeição,
de resplendor guarnecido,
tomar para seu vestido
sangue do meu coração,
indigno de ser nascido!
E aquêle que ocupa o mar,
enche os céus e as profundezas,
os orbes e redondezas;
em tão pequeno lugar
como poderá estar
a grandeza das grandezas!

Gabriel:

Porque tanto isto não peses,
nem duvides de querer,
tua prima Elisabete
é prenhe, e de seis meses.
E tu, Senhora, hás-de crer
que tudo a Deus é possível,
e o que é mais impossível,
lhe é o menos de fazer.

Virgem:

Anjo, perdoai-me vós,
que com a Fé quero falar:
pedirei sinal dos Céus

:

Senhora, o poder de Deus
não se há-de examinar.
Nem deveis de duvidar,
pois sois dêle tão querida

Gabriel:

E d'abinitio escolhida,
e manda-vos convidar,
para madre vos convida

Virgem:

Ecce ancilia Domini,
faça-se sua vontade
no que sua Divindade
mandar que seja de mi,
e de minha liberdade

Neste passo se vai o Anjo Gabriel, e os anjos à sua partida tocam seus instrumentos, e cerra-se a cortina. Juntam-se os pastôres para o tempo do nascimento. Entra primeiro André e diz:

André:

Eu perdi, se s'acontece,
a asna ruça de meu pai.
O rasto por aqui vai,
mas a burra não parece,
nem sei em que vale cai.
Leva os tarros e apeiros,
e o surrão cos chocalhos,
os samarros dos vaqueiros,
dois sacos de páes inteiros,
porros, cebolas e alhos.
Leva as peas da boiada,
as carrancas dos rafeiros,
e foi-se a pascer folhada,
porque bêsta despeada
não pasce nos sovereiros.
E se ela não parecer
até por noite fechada,
não temos hoje prazer,
que na festa sem comer
não há i gaita temperada.

Entra Paio Vaz e diz:

Paio Vaz:

Mofina Mendes é cá
c'um fato de gado meu?

André:

Mofina Mendes ouvi eu
assoviar, pouco há,
no vale de João Viseu

Paio Vaz:

Nunca esta môça sossega,
nem samica quer fortuna:
anda em saltos como pêga,
tanto faz, tanto trasfega,
que a muitos importuna.

André:

Mofina Mendes quanto há
que vos serve de pastôra?

Paio Vaz:

Bem trinta anos haverá,
ou creio que os faz agora;
mas sossêgo não alcança,
não sei que maleita a toma:
ela deu o saco em Roma
e prendeu el-rei de França;
agora andou com Mafoma
e pôs o turco em balança.
Quando cuidei que ela andava
co meu gado onde soia,
pardeus! Ela era em Turquia,
e os turcos amofinava,
e a Carlos César servia.
Diz que assim resplandecia
neste capitão do céu,
a vontade que trazia,
que o turco esmoreceu
e a gente que o seguia.
Receou a guerra crua
que o César lhe prometia;
entonces per aliam viam
reverte sunt in patria sua
com quanta gente trazia.

Entra Pessival.

Pessival:

Achaste a tua burra, André?

André:

Bofá não.

Pessival:

Não pode ser.
Busca bem, deixa o fardel,
que a burra não era mel,
que a haviam de comer.

André:

Saltariam pêgas nela
por causa da matadura.

Pessival:

Pardeus! Essa seria ela!
E que pêga seria aquela
que lhe tire a albardadura?

Paio Vaz:

Mas crê que andou por aí
Mofina Mendes, rapaz;
que, segundo as cousas faz,
se isto não fôr assi,
que não seja eu Paio Vaz.
Ora chama tu por ela,
e aposto-te a carapuça
que a negra burra ruça
Mofina Mendes deu nela.

André:

Mofina Mendes! Ah Mofina Men!

Mofina Mendes:

Que queres, André? Que hás?

(de longe)

André:

Vem tu cá, e vê-lo-ás;
e se hás-de vir, logo vem,
e acharás aqui também
a teu amo Paio Vaz.

Entra Mofina Mendes, e diz Paio Vaz:

Paio Vaz:

Onde deixas a boiada
e as vacas, Mofina Mendes?

Mofina Mendes:

Mas, que cuidado vós tendes
de me pagar a soldada
que há tanto que me retendes?

Paio Vaz:

Mofina, dá-me conta tu
onde fica o gado meu.

Mofina Mendes:

A boiada não vi eu,
andam lá não sei por u,
nem sei que pacigo é o seu.
Nem as cabras não nas vi,
samicas cos arvoredos;
mas não sei a quem ouvi
que andavam elas por i
saltando pelos penedos.

Paio Vaz:

Dá-me conta rês e rês,
pois pedes todo teu frete.

Mofina Mendes:

Das vacas morreram sete,
e dos bois morreram três.

Paio Vaz:

Que conta de negregura!
Que tais andam os meus porcos?

Mofina Mendes:

Dos porcos os mais são mortos
de magreira e má ventura.

Paio Vaz:

E as minhas trinta vitelas
das vacas, que te entregaram?

Mofina Mendes:

Creio que i ficaram delas,
porque os lobos dizimaram,
e deu ôlho mau por elas,
que mui poucas escaparam.

Paio Vaz:

Dize-me, e dos cabritinhos
que recado me dás tu?

Mofina Mendes:

Eram tenros e gordinhos,
e a zorra tinha filhinhos
e levou-os um e um.

Paio Vaz:

Essa zorra, essa malina,
se lhe correras trigosa,
não fizera essa chacina,
porque mais corre a Mofina
vinte vêzes que a raposa.

Mofina Mendes:

Meu amo, já tenho dada
a conta do vosso gado
muito bem, com bom recado;
pagai-me minha soldada,
como temos concertado.

Paio Vaz:

Os carneiros que ficaram,
e as cabras, que se fizeram?

Mofina Mendes:

As ovelhas reganharam,
as cabras engafeceram,
os carneiros se afogram,
e os rafeiros morreram.

Pessival:

Paio Vaz, se queres gado,
dá ao demo essa pastôra:
paga-lhe o seu, vá-se embora
ou má-hora, e põe o teu em recado.

Paio Vaz:

Pois Deus quer que pague e peite
tão daninha pegureira,
em pago desta canseira
toma êste pote de azeite
e vai-o vender à feira;
e quiçais medrarás tu
o que eu contigo não posso.

Mofina Mendes:

Vou-me à feira de Trancoso
logo, nome de Jesu,
e farei dinheiro grosso.
Do que êste azeite render
comprarei ovos de pata,
que é a coisa mais barata
que eu de lá posso trazer;
e êstes ovos chocarão;
cada ovo dará um pato,
e cada pato um tostão,
que passará de um milhão
e meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada
por êstes ovos de pata,
e o dia que fôr casada
sairei ataviada
com um brial de escarlata,
e diante o desposado,
que me estará namorando:
virei de dentro bailando
assim dest'arte bailado,
esta cantiga cantando.

Estas cousas diz Molina Mendes com o pote de azeite à cabeça e, andando enlevada no baile, cai-lhe, e diz:

Paio Vaz:

Agora posso eu dizer,
e jurar, e apostar,
que és Mofina Mendes tôda.

Pessival:

E s'ela bailava na boda,
qu'está ainda por sonhar,
e os patos por nascer,
e o azeite por vender,
e o noivo por achar,
e a Mofina a bailar;
que menos podia ser?

Vai-se Molina Mendes, cantando.

Mofina Mendes:

Por mais que a dita me enjeite,
pastôres, não me deis guerra;
que todo o humano deleite,
como o meu pote de azeite,
há-de dar consigo em terra?

Entram outros pastôres, cujos nomes são: Braz Carrasco, Barba Triste e Tibaldinho; e diz:

'Braz Carrasco:

O Pessival meu vizinho!

Pessival:

João Carrasco, dize, - viste
a burra dêsse outeirinho?

Braz Carrasco:

Pergunta tu a Tibaldinho,
ou pergunta a Barba Triste,
ou pergunta a João Calveiro.

Joã.:

O fato trago eu aqui,
e a burra eu a meti
na côrte do Rabileiro.
Nós deitemo-nos por ai.
Andamos todos cansados,
O gado seguro está:
e nós aqui abrigados
durmamos senhos bocados,
que a meia-noite vem já.

Neste passo se deitam a dormir os pastôres; e logo se segue a segunda parte, que é uma breve contemplação sôbre o Nascimento.

O cordeiro divinal,
precioso verbo profundo,
vem-se a hora
em que teu corpo humanal
quer caminhar pelo mundo.
Desde agora
sairás ao campo mundano
a dar crua e nova guerra
aos imigos,
e glória a Deus soberano
In excelsis et in terra
pax hominibus.
Sairá o nobre Leão,
rei da tribo de Judá,
Radix David;
o duque da promissão
como espôso sairá
do seu jardim.
E o Deus dos anjos servido,
sanctus, sanctus, sem cessar
lhe cantando,
vereis em palhas nascido
suspirando.
E porque a noite é quase meia,
e são horas que esperemos
seu nascer,
ide, Fé, por essa aldeia
acender esta candeia,
pois outras tochas não temos
que acender; e sem serdes perguntada,
nem lhes vir pela memória,
direis em cada pousada
qu'esta é a vela da glória.

Neste passo José e a Fé vão acender a candeia, e a Virgem com as Virtudes, de joelhos, a versos rezam êste

SALMO


Virgem:

Ó devotas almas félis,
para sempre sem cessar
Laudate Dominum de coelis,
Laudate eum in excelsis,
quanto se pode louvar.

Prudência:

Louvai, anjos do Senhor,
ao Senhor das altezas,
e tôdalas profundezas,
louvai vosso criador com tôdas suas grandezas.

Humildade:

Lauda te eum, Sol et Luna,
laudate eum, stella et lumen,
et lauda Hierusalem,
ao Senhor que te enfuna
neste portal de Belém.

Virgem:

Louvai o Senhor dos céus,
louvai-o, água das águas,
que sôbre os céus sois firmadas;
e louvai o Senhor Deus,
relâmpagos e trovoadas.

Prudência:

Laudate Dominum de terra,
dracones et onnes abyssi,
e tôdas adversidades
de névoas e serra,
ventos, nuvens et eclipsi,
e louvai-o, tempestades.

Humildade:

Bestiae et universa
pecara, volucres, serpentes,
louvai-o, tôdalas gentes,
e tôda a cousa diversa
que no mundo sois presentes.

Vem a Fé com a vela sem lume, e diz:

José:

Não vos anojeis, Senhora,
pois estais em terra alheia,
ser o parto sem candeia,
porque as gentes d'agora
são de mui perversa veia.
Todos dormem a prazer,
sem lhes vir pela memória
que por fôrça hão-de morrer;
e não querem acender
a santa vela da glória.

Humildade:

Deviam ter piedade
da Senhora peregrina,
romeira da Cristandade,
que está nesta escuridade,
sendo Princesa divina,
para exemplo dos senhores,
para lição dos tiranos,
para espelho dos mundanos,
para lei aos pecadores,
e memória dos enganos.

:

Não fica por lho pregar,
não fica por lho dizer,
não fica por Ibo rogar;
mas não querem acordar
com pressa de adormecer.
Dêles fazem que não ouvem,
e ôles ouvem muito bem;
dêles fazem que não vêem,
e dêles que não entendem
o que vai nem o que vem.
Sem memória nem cuidado
dormem em cama de flôres,
feita de prazer sonhado:
seu fogo tão apagado
como em choça de pastôres;
e vossa divina vela,
vossa eternal candeia,
feita da cera mais bela,
em cidade nem aldeia
não há aí lume pra ela.
Todo mundo está mortal,
pôsto em tão escuro porto
de uma cegueira geral,
que nem fogo, nem sinal,
nem vontade; tudo é morto.

Virgem:

Prudência, i vós com ela,
que nas horas há aí mudança:
e acendei essoutra vela,
que se chama da esperança,
e lhes convém acendê-la.
E dizei-lhe que o pavio
desta vela é a salvação,
e a cera o poderio
que tem o livre alvedrio,
e o lume a perfeição.

José:

Senhora, não monta mais
semear milho nos rios,
que queremos por sinais
meter coisas divinais
nas cabeças dos bugios.
Mandai-lhe acender candeias,
que chamem ouro e fazenda,
e vereis bailar baleias,
porque irão tirar das veias
o lume com que se acenda.
E à gente religiosa
manda-lhes velas bispais;
a cera, de renda grossa;
os pavios, de casais;
e logo não porão grosa.

Prudência:

Senhora, a meu parecer,
para esta escuridade
candeia não há mister;
que o Senhor que há-de nascer
é a mesma claridade:
lumem ad revelationem gentium
é profetizado a nós,
e agora se há-de cumprir,
pois para que é ir e vir
buscar lume para vós,
pois lume haveis de parir?
Nem deveis de estar aflita,
para lhe guisar manjar,
porque é fartura infinita,
chamado Panis vita,
não tendes que desejar.
E se para seu nascer
tão pobre casa escolheu,
não vos deveis de doer,
porque onde êle estiver
está a côrte do Céu.
Se cueiros vos dão guerra,
que os não tendes porventura,
não faltará cobertura
a quem os céus e a terra
vestiu de tal formosura.

Neste passo chora o Menino, pôsto num berço; as Virtudes cantando o embalam, e o Anjo vai aos pastôres e diz cantando:

Anjo:

"Recordai, pastôres !"

And.:

Ou de lá, que nos quereis?

Anjo:

"Que vos levanteis."

And.:

Para que, ou que vai lá?

Anjo:

"Nasceu em terra de Judá
um Deus só, que vos salvará."

And.:

E dou-lhe que fôssem três:
eu não sei que nos quereis.

Anjo:

"Que vos levanteis."

And.:

Quero-m'eu erguer, entanto
veremos que isto quer ser.
Sempre me esquece o benzer
cada vez que me levanto.

(Os Anjos cantando)

Anj.

"Ah pastor! Ah pastor !"

And.

Que nos quereis, escudeiros?

Anjo:

Chama todos teus parceiros,
vereis vosso Redentor."

And.

Não durmais mais, Paio Vaz,
ouvireis cantar aquilo.

Paio Vaz:

Ora tu não vês que é grilo?
Vai-te daí, aramá vás,
que eu não hei mister ouvi-lo.

And.:

Pessival, acorda já.

Pessival:

Acorda tu a João Carrasco.

João Carrasco:

Não creio eu em São Vasco,
se me tu acolhes lá.

And.:

Levanta-te, Barba Triste.

Barba Triste: Tu que hás, ou que me queres?

And.:

Que vamos ver os prazeres,
que eu nem tu nunca viste.

Barba Triste:

Pardeus, vai tu se quiseres,
salvo se na refestela
me dessem bem de comer;
senão, deixa-me jazer,
que não hei-de bailar nela;
vai tu lá embora ter.
Acorda a Tibaldinho,
e ao Calveiro e outros três,
e a mim cobre-me os pés;
então vai-te teu caminho,
que eu hei-de dormir um mês.

Anjo:

Pastôres, ide a Belém.

And.:

Tibaldinho, não te digo
que nos chama não sei quem?

Tibaldinho:

Bem no ouço eu, porém
que tem Deus de ver comigo?

And.:

Isso é parvoejar:
levantai-vos, companheiros,
que por vales e outeiros
não fazem nego chamar
por pastôres e vaqueiros.

Anjo:

Para a festa do Senhor
poucos pastôres estais.

Paio Vaz:

Vós bacêlo quereis pôr,
ou fazer algum favor,
que tanta gente ajuntais?

Anjo:

Vós não sois oficiais
senão de guardardes gado.

João Carrasco:

Dizei, Senhor, sois casado?
Ou quando embora casais?

And.

Oh como és desentoado!

Anjo:

Quisera que fôreis vós
vinte ou trinta pegureiros.

Paio Vaz:

Antes que vós deis três vôos,
bem aqjuntaremos nós
nesta serra cem vaqueiros.

Anjo:

Ora trazei-os aqui,
e esperai naquela estrada,
que logo a Virgem sagrada
a Hierusalém vai por i
ao templo endereçada.


Tocam os Anjos seus instrumentos, e as Virtudes, cantando, e o pastôres, bailando, se vão.

LAUS DEO