A Esperança Vol. I/Maria Isabel/IV

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IV

A boa mãe de familia

Compunha-se a familia de Custodio da Cunha, de Adelaide sua mulher, e Rufina e Maximino seus filhos. Adelaide era uma senhora de muito juizo e virtude, delicada, affavel e cuidadosa.

Seus paes, quando ella foi pedida em casamento por Custodio da Cunha, disseram-lhe que elle era um negociante honrado e de bons costumes, e que a aconselhavam a que acceitasse este partido; que o dote d'ella era muito pequeno, e não podia esperar outro partido melhor, nem tão bom.

Mostraram finalmente, tantos desejos de vel-a casada, que Adelaide casou, bem que receiasse unir-se a um homem que se mostrava tão pouco amavel. Nos primeiros tempos de casada attemorisava-a o modo sempre serio, e ás vezes pesado, de seu marido, e o seu genio irascivel. Depois tentou civilisar aquella féra, e conseguiu-o em grande parte; viveu em paz e perfeita economia com o homem que para outra seria talvez um tiranete. Não tinha Custodio da Cunha, porém, senão má casca, pela má educação que levára; seu interior se conhecerá mais tarde. A brandura de sua esposa o prendeu tanto, que nunca teve para ella uma palavra dura, ou um gesto dessapprovador. Não foi, pois, Adelaide esposa infeliz, como era a receiar, e, quando foi mãe, julgou-se a mais ditosa das mulheres. Seus filhos a adoravam.

No dia seguinte áquelle em que a esposa e filha de Ricardo d'Oliveira tanto soffreram estavam Adelaide e Rufina trabalhando na sua pequena salla de lavor, modestamente trastejada, mas muito limpa e arranjada.

Maximino entrou e assentou-se atraz de sua irmã. Estava pallido e triste. Ordinariamente, quando estava com Rufina, brincava com ella e a estorvava de trabalhar, o que lhe merecia alguns sorrisos de sua mãe, ou brandas reprehensões se a brincadeira se prolongava. A menina voltou para elle seu rosto alegre: esperava alguma travessura, mas esperou debalde. O mancebo sorriu-lhe tristemente e não se moveu. Ella continuou a trabalhar, dizendo:

― Está alguma para acontecer! Maximino não faz das suas...

― Está tu socegada, replicou sua mãe, que tambem não estava alegre. Não o excites: as suas travessuras te divertem e a mim não; principalmente quando vosso pae tem cuidados ou tristezas.

Ficaram todos em silencio.

O mancebo olhava melancolico para sua mãe e irmã. Queria dizer alguma coisa e não ousava. Elle era um moço de vinte annos incompletos, rosto interessante composto de feições irregulares, olhar meigo, bigode e cabello d'um castanho quasi louro, voz sonora, e bonita figura. Tinha maneiras delicadas como sua mãe, genio brioso como o de seu pae, caracter honrado como ambos. Rufina tinha de quinze a dezeseis annos. Era bonita sem ser formosa, e alegre como o são todas as meninas que teem uma mãe extremosa, que as não deixam aborrecer-se na ociosidade, nem as opprime com tarefas excessivas.

Estiveram alguns minutos sem dar palavra. Rufina, para se distrair, cantava, em voz baixa, uma canção franceza, que tinha estudado ha pouco.

Adelaide, admirada do silencio e ar triste de Maximino, disse a sua filha:

― Deixa agora ficar isso, Rufina; a gente nova precisa de mudar de serviço. Vai tocar. Não deves despresar uma prenda que fica tão cara. E teu pae se distrae a ouvir-te. Aperfeiçôa aquellas peças de que elle mais gosta. Devemos dar a distração e felicidade áquelles que gastam os dias, e ás vezes as noites, a ganhar os meios de nos darem a abundancia e todas as commodidades da vida.

O mancebo suspirou profundamente.

A donzelinha dobrou a costura, arranjou a sua caixinha e levantou-se. Voltou-se para seu irmão cruzando os braços e encarando-o; depois, dando-lhe uma palmadinha, disse-lhe, meia agoniada, meia risonha:

― Assim é que eu castigo a gente animada. O senhor Maximino foi de certo a Valongo; (*)[1] agora por que....

O mancebo prendeu-a nos braços e deu-lhe dois beijos; mas isto mesmo era feito com melancolia, e disse-lhe depois:

― Vai tocar, minha irmãsinha. Precisamos do som alegre do teu piano.

― Eu vou, respondeu ella apertando-lhe o rosto entre as mãos, mas não quero que tornes a Valongo.

D'alli a pouco ouviu-se o som do piano. Maximino suspirou. Lembrou-se d'um rico piano que vira na vespora em casa de Ricardo d'Oliveira, que havia de entrar no leilão, e do que lhe disseram de Maria Isabel ― que tocava com perfeição, e cantava muito bem.

― De que servem aquellas prendas á infeliz? pensava elle. Se á nossa Rufina sucedia o mesmo...

― Que tens, meu filho? disse Adelaide com muita doçura. Se fizeste alguma loucura que tenha de me affligir, ou de indispôr teu pae, melhor é que m'a confesses. Remedial-a-hemos se podermos, e abrandarei a ira de teu pae. Confessar a culpa é principio de reparação.

― Maximino levantou-se e foi assentar-se na cadeirinha de trabalho de sua irmã, para ficar mais ao nível de sua mãe, também assentada em cadeira baixa. Encostou o cotovello no joelho e a face na mão e disse em tom dorido:

― O' minha mãe!.. Se visse o que hontem vi... Fui a casa de Ricardo d'Oliveira, para me divertir. Ouvia ralhar tanto d'aquelle homem, que causava a meu pae tanto mal, que desejava gosar do abatimento delle e da sua familia.

 

― Isso era muito mal feito, meu filho. Não devemos ter gosto no infortunio alheio; e menos ainda d'aquelles que nos fizeram mal. A vingança é coisa horrivel; só almas vulgares podem gosar do abatimento dos seus contrarios.

Assim o penso, minha boa mãe; mas estava desorientado com o que me diziam: convidaram-me para ir, e fui. O luxo que via na casa, e o que ouvia em torno de mim, mais me indispunha contra o fugitivo se sua desgraçada familia. Ao passar pelas escadas ouvi em baixo gritos abafados e soluços. Perguntei o que aquillo era e soube que no sotão estavam a esposa e filha do fallido. O coração se me confrangeu... Senti uma vertigem... Aquellas senhoras estavam alli fechadas desde a manhã, esperando pela noite para sahirem, e estavam sem comer! apenas a filha tinha vindo acima duas ou tres vezes buscar agua para sua mãe. Na vespora alguem as aconselhára para sairem de casa, mas ellas não julgavam a sua desgraça tão grande, e ficaram para beber as fezes do seu calix d'amargura. A compaixao tomou em meu coração o logar da cólera e do despeito. Desejava ir levar consolações e mantimento ás infelizes senhoras, mas não me atrevia. Meu pae queria fallar com a esposa do seu devedor. Parecia-lhe que ella saberia de valores subtraidos aos credores. Mandou-me chamal-a. Fui quasi tremendo; receiava que a justa ira de meu pae se descarregasse sobre a esposa do culpado devedor; mas não ousei, como póde crêr, fazer objecções.

O mancebo interrompeu-se um momento, depois contou tudo mais e concluiu dizendo:

― Agora veja, minha rica mãe, se não tenho motivos para tristesa. O rosto pallido da filha, suas lagrimas tão modestas... tão dignas, sem serem altivas, sua doçura, sua vergonha, sua angustia me estão sempre na memoria; e os gritos de desesperação da mãe retinem ainda em meus ouvidos. Não dormi em toda a noite, e ao almoço não podia engolir nada; lembrava-me que aquellas infelizes estavam morrendo de fome.

― Bem me pareceu que não comeste; mas não quiz dizer nada, porque teu pobre pae tambem não comeu muito. Tudo isto é bem triste!

― Mas, minha mãe, não se poderia minorar os males d'aquellas infelizes senhoras? Quando ha pouco examinava as pessoas que mais amo, e pensava na possibilidade de lhes succeder uma desgraça similhante, estremecia interiormente.

― A desgraça é possivel, meu filho, a deshonra merecida não. Teu pae nunca enganará os seus credores, nem fugirá para se subtrahir a dar contas.

― Sei, minha mãe, que meu pae não se portará como Ricardo d'Oliveira; mas se elle fosse mais humanos para aquellas pobres senhoras, que não tiveram culpa na deserção d'aquelle que devia ser o seu protector...

― Porém, Maximino, que póde fazer teu pae por ellas? A divida de que elle é credor não é a unica, nem a maior, ainda que não seja pequena. Os credores teem de perder quasi tudo; que queres pois que elles façam em prol dos fallidos? E como podem ser humanos com o homem que fugiu, levando como o attestam seus livros, alguns contos de reis, pratas e joias? A familia morrerá de fome talvez... elle não.

― Mas para ellas é que eu pedia compaixão.

― Era preciso que todos os credores se concordassem para deixarem á esposa e filha do fallido alguma coisa, e isso seria difficil. Teu pae, se poder, far-lhes-ha algum bem, acredita-o; mas duvido que o possa.

― E minha mãe não podia...

― Que posso eu, meu filho? E nem lhes mandaria nada sem consentimento de teu pae.

― Se lhes mandasse trabalho... Ellas querem trabalhar para viver.

― Tambem o não faria sem dizer a teu pae. Elle sabe que eu e a Rufina fazemos toda a costura da casa: não temos meios para nos dispensarmos d'esse serviço; muito menos agora que teu pae teve uma perda tão grande.

― Oh! meu Deus!. então havemos de deixar aquellas infelizes morrer á mingua!.. ou perder-se aquella menina tão virtuosa e tão bôa?!.

― Meu pobre filho!... és ainda muito moço: estás com toda a seiva da sensibilidade. D'essas desgraças está o mundo cheio; e quem tem tão pouco como nós para dispender em beneficiar os desgraçados, sente a todos os momentos o coração despedaçado d'angustia, e tem de fechar os olhos para não ver todas as miserias que nos cercam. Comtudo consultarei teu pae... verei se se póde fazer alguma coisa para minorar os males das infelizes por quem tanto te interessas.

N'este comenos appareceu á porta um creado e disse que o snr. Custodio da Cunha mandava pedir á senhora que fosse ao escriptorio, se lhe fosse possivel.

Adelaide levantou-se logo e pousou o seu trabalho na mesa, como quem tenciona interrompel-o por pouco tempo. Olhou para seu filho que estava na mesma posição melancolica, anediou-lhe a cabeça com carinho e lhe disse:

― Estimo, Maximino, que sejas sensivel ás desgraças alheias, mas não tanto. Faz-se o bem que se póde; e aquelles males que não podemos remediar, recommendam-se á bondade divina.

  1. Ir a Valongo quer dizer ― desconfiar. ― O que deu origem a esta phrase, não sei.