A Esperança Vol. I/Maria Isabel/IX

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IX

Novas angustias d'uma boa filha

Caminhava a passos largos para o seu fim, a viuva de Ricardo d'Oliveira. Em balde se exforçava o bom Francisco, por remediar o mal que innocentemente fizera. Não utilisaram á doente visitas de medico e remedios. A medicina era, como tantas vezes, inefficaz. Maria Isabel, apesar da sua extrema angustia, pensava algumas occasiões na grande despesa que estava fazendo com ella e com sua mãe, o filho de Carolina. A soldada d'um pobre marinheiro não podia chegar a tanto. O bom Francisco de certo se estava empenhando. A's vezes pegava ella no trabalho interrompido, mas os olhos, cheios de lagrimas, não viam a agulha, nem o fio; e o espirito, assoberbado pela idéa da morte de seu pae, e do perigo de sua mãe, não lhe dava treguas: e, affastando o seu trabalho, corria ao leito de sua mãe. Alguem, tinha porém, sem que ella o soubesse, ajudado ás despesas que se faziam. No dia immediato áquelle da fatal noticia, appareceu em casa de Carolina uma senhora de meia idade, muito amavel, ou ao menos que pertendia sel'o.

Disse chamar-se D. Ermelinda, e ser viuva de João Maria d'Oliveira, irmão do pae de Maria Isabel. Tinha chegado ha pouco de Lisboa, e só n'aquelle dia soubera as infelicidades da familia de seu marido. Fez muitas caricias á donzella, e mil offerecimentos; lisongeou Carolina e deu-lhe, ás occultas, algum dinheiro para tratar das suas parentas. Quiz também captivar as boas graças de Francisco, mas não o conseguiu. O moço viu-a com maus olhos, e não occultou suas impressões; por isso talvez não tornou ella a sua casa senão nas horas que elle estava trabalhando na descarga. D. Ermelinda offereceu ás suas parentas a sua casa, que era nos arrebaldes da cidade, onde estariam muito melhor, e onde D. Maria Carlota havia de sarar com os ares puros. Consultou-se o medico, porém este declarou que a doente não estavaem estado de ser mudada. Maria Isabel sentiu-o, porque tivera algumas esperanças que a mudança d'ares daria saude a sua mãe: se não fôra isso, estimára a ordem do medico de não sahir d'alli. Não agradava á donzella a parenta que lhe chovêra do céo, porque lhe não agradára; e por ter ouvido dizer ha annos, que seu tio fizera um mau casamento, e que morrêra de desgostos. Alfredo, como visinho, e como tendo sido o primeiro chamado para tratar da doente, vinha vel-a todos os dias, e d'uma vez entregou a Carolina uma pequena somma, que era o fructo d'uma subscripção entre elle e os seus amigos. Carolina, recebeu isto com mau modo. Desconfiára da generosidade de mancebos que se interessavam por uma linda menina. Alfredo não fez caso da má recepção da dona da casa, e continuou as visitas. Francisco recebia-a muito bem, e da mesma sorte a filha de D. Maria Carlota. Alfredo fazia visitas curtas, e dizia ao retirar-se á menina:

― Um meu amigo me espera... se eu tardar se assustará.

Maria Isabel não perguntára o nome d'este amigo que tanto se interessava por ella, e por sua mãe. Se o perguntasse, sabel-o-ia. Alfredo, ardia em desejos de dizel-o, apesar da prohibição que tinha de nomeal'o.

O delirio da viuva de Ricardo d'Oliveira, era quasi continuo. Um dia, porém, em que estava n'um curto intervallo de lucidez, disse ao medico:

― Isto está a acabar, snr. doutor, e bom é que acabe. Não posso soffrer mais tempo... Só me custa deixar este valle de tormentos, por deixar cá a minha filha... Se eu podesse abraçal-a e leval-a commigo...

― Não pense n'isso, replicou o medico. Se tiver fé na medicina e coadjuvar os meus esforços...

― Já não tenho fé em nada!... em nada!.. excepto na misericordia divina... e nem sempre!.. Ha momentos em que sinto o inferno dentro do peito! Agora... emquanto a rasão se me não torna a offuscar, quero pedir-lhe que não volte cá. Não quero mais remedios. Só quero vêr se posso receber os remedios da alma: os do corpo nada fazem e sòmos pobres... muito pobres! Já fòmos ricos... ao menos eu cuidava que o eramos.

E continuou com a exaltação delirante:

― Sabe em quanto montam os roes das nossas modistas?!

― Não pense n'isso. O passado já lá vai.

― Sim, já lá vai!.. Já não tem remedio!.. E elle morreu afogado com valores que não eram seus; mas nós não trouxemos nada!.. nada!.. absolutamente nada. Trouxeram-nos algumas roupas e não sei que mais... deram-me isso, creio que por caridade; e eu não merecia caridade... Gastei o que não era meu, e o que hoje me falta... Não posso pagar-lhe, snr. doutor... mas é casado?.. Póde levar um vestido de moire que me custou vinte libras... ou...

― Socegue. Não lhe peço nada. Peço-lhe só que não esteja a pensar em coisas passadas.

― Vinte libras por um vestido!.. Doze moedas por uma cachemira... duas libras por um lenço... vinte mil reis por um chapeu... oitenta mil reis por uma capa... duas libras por um regallo, uma libra por umas botas, oito libras por outro vestido; e que mais? Eram muito mais coisas!..

― Minha mãe, disse entre lagrimas Maria Isabel, pelo amor de Deus, esqueça isso...

― Vem cá minha filha, diz-me ao ouvido em quanto sommam todas essas inutilidades, mas que o não saibam os credores...

― Minha mãe, fallemos antes de Deus! [o medico lhe dissera baixo, que chamasse as idéas da enferma para a religião, a ver se esquecia tudo isso que a desesperava.] Não disse ao snr. doutor que queria confessar-se?

― Queria, mas Deus não quer. No baptismo prometteram por mim, que eu despresaria as pômpas do mundo; e sabes emquanto importam os gastos que tenho feito com ellas?..

― Deus perdôa tudo, minha mãe. Tenhamos fé na sua infinita misericordia. Elle não quer que nos desesperemos.

O medico sahiu profundamente commovido.

Depois veio um sacerdote, homem verdadeiramente evangelico. A enferma ficou mais consolada, mas aproximava-se a hora extrema. Olhou compungida para sua filha, e balbuciou:

― Pobre filha... Teus paes legaram-te a miseria e a deshonra... Essa tua parenta que por ahi tenho visto...

O fim do discurso não se ouviu; mas Carolina se incumbiu de terminal'o, dizendo:

― A snr.a D. Ermelina, é excellente pessoa, ha de proteger sempre a snr.a D. Maria Isabel.

Horas depois, estava a D. Maria Carlota na eternidade. A dôr de sua infeliz filha não se póde descrever. Carolina, mesmo que não tinha grande sensibilidade, chorou com ella. Francisco parecia doido.