A Nação (Rio de Janeiro)/1874/08-13/«Jerusalém» por monsenhor Pinto de Campos

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Monsenhor Pinto de Campos, durante as ferias parlamentares do 1869—70, emprehendeu uma viagem á terra santa passan­do pela cidade eterna, e realisou-a como homem a um tempo religioso o erudito. O livro que temos presente é a historia circurnstanciada dessa piedosa peregrinação. Membro do parlamento, dado ás lutas e agitações da política, consoquentemente sujeito ás suas naturaes fascinações, sobravam-lhe motivos para não emprehender a viagem que fez, so acima das cousas profanas, ainda que nobres e honradas, lhe não filiasse na alma a fé christâ e a pura saudade da patria do Evangelho. Nem era preciso que o distincto escriptor o declarasse no prefacio da obra. Um simples touriste, picado do desejo de espairecer os olhos, contentar-se-hia com as montanhas da Suissa ou a bahia de Napoles ; um sabio ou um philosopho, levado do espirito de investigaçao, ou simplesmente do conselho de Montaigne,para quem era de mister ao homem — «frotter et limer sa cervolle contre celle d'aultruy»— . guiaria talvez seus passos até ás terras da Escriptura ; mas só um christão e catholico nos traria de lá este livro.

Jerusalém ainda não exhauriu a imaginação e a piedade dos fieis. Si os dias passam, como as aguas do rio, que não voltam mais. segundo a bella expressão biblica, a verJado christã é eterna,e a doutrina que produziu a moderna civilisação. perdura e vive, com todo o sru virginal esplendor. no meio da incerteza e instabilidade dos tempos. Jerusalém, mais que nenhum outro ponto da terra, deve infundir no homem o sentimento da sua immortalidade, sentimento elevado e forte, que é o mysterioso correctivo daquella melancolia que ha de sempre inspirar o espectaculo das grandezas acabadas. Junto ao Pyreo ou ao pé de uma columna romana, a tristeza abaterá necessariamente a alma, si ella meditar na mobilidade da fortuna, nas obras passageiras da terra, nesta lei natural que é a mesma para os imperios e as flôres, com a só differnnça que vai dos dias para os seculos, que são os dias da eternidade. A. obra dos hebreus não escapou á regra commum ; pere eu, como tudo perece, nào restando mais que um pouco de ruinnas daquella Jerusalem que os seus prophetas comparavam á mulher bella e forte, e cujas desgraças tão tristemente cantou Jeremias. Mas a planta que alli brotou ha 18 séculos, é hoje arvore universal e eterna, formosa e viçosa, como nos seus primeiros dias. Quem lhe colheu o fructo apostolico, póde entristecer-se com a vista abatida de Sião, mas no fundo da alma alguma cousa lhe fallará das immortaes esperanças de além-tumulo.

Monsenhor Pinto de Campos quiz naturalmente impregnar-se deste duplo sentimento de miseria o gloria naquelle mesmo logar que viu a grandeza e a deshonra do povo hebreu. O contraste não podia ser mais vivo. Nado e creado em paiz de tão recente organisação, onde os elementos de futuro são infinitos e escassos os do passado, terra infante e sem historia, o autor da Jerusalem achou-se, com pequeno intervallo, d;ante dos restos de uma civilisição extincta. Pizou outras terras, é corto, que lhe diziam muita cousa do passado ; viu Roma catholica assentada sobre as ruinas da pagã, como emblema vivo da historia, das lutas e do final triumpho ganho pelo christianismo sobre o derrocado imperio ; e um dos mais bellos capitulos do liiro é aquelle ein que o autor compara as duas cidades, a santa e a eterna. dando a cada uma dellas o que lhe pertence, sem nada perder da veneração que um bom catholico devo ao berço como ao thr mu do christianismo ; viu o Egypto, sólo calcado de tantos heróes, e que tamanho logar occupa nos annaes israelitas e christâos : tudo isso contemplou com a austeridade de religioso e philosopho. Mas as suas ruais fundas impressões, recebeu-as diante de Jerusalem.

O livro que nos apresenta agora não é só a narração da viagem, mas tambem, e em grande parte, um repositorio de muita e boa noticia.Um dos fins do autor foi, sem duvida, pòr ao alcance das intelligencias menos abastadas do lição sagrada um quadro circurustanciado do mais lastimoso theatro e da maior tragedia que enlutou as paginas da historia humana. Náo se limitou a contar o que viu e sentiu : fez mais: colheu da historia o das tradicções o que mais propicio e adequado lhe pareceu aos intuitos de instruir.

O methodo adoptado parece-nos bom. Depois de narrar e descrever, a traços largos, o que não é propriamente Jerusalem, e fazel-o sem excesso nom fadiga, como conversador diserto e elegante, pára o autor ter em frente da cidade Santa, e, antes de nol-a descrever, abre dous capitulos de introducçâo, demonstrando no primeiro, com os prophetas e os successos contemporaneos e posteriores ao crime da Judea, a divindade do filho de Maria, e narrando no segundo, em substancia, a vida e morte do Homem-Deus. O primeiro desses capitulos é um dos melhores do livro ; tudo quanto, em ambos os Testamentos, so lhe deparou adequado ao pio objecto que emprehendèra, tudo condensou em algumas paginas que por si sós merecem lidas e meditadas. A vida de Jesus é um resumo breve, claro. exacto e substancial do que vem referido nos Evangelistas, e feito com o escrupulo e devoção que se devem esperar de um sacerdote, e a singeleza de estylo propria do assumpto.

Exposta a vida e provada a divindade da Victima, começa a descripção minuciosa do theatro da Paixão, extra e intramuros, muralhas, por‘as, ruas e todos os demais sitios notaveis, trabalho vasto em que o leitor acha compendiada muita e variada lição, e quo náo póde ser analisado em um artigo rapido como este. Achando-se já costadada»a»vida de Jesus, o leitor encontra apenas, era cada sitio que se lhe descreve, a narração do episodio correspondente. O Calvario é a pagina ultima.

Excellente no methodo, não menos o é este livro na gravidade e vigor do estylo, na pureza e boa feição da linguagem. Monsenhor Pinto de Campos já nos havia acostumado a esses predicados litterarios ; e na obra que temos presente mais uma vez se revella quão familiares lhe são os mestres do estylo e da lingua, e como elle conversa com aquello amor e afinco tão necessarios ao officio de escrever. A bella roupagem não prejudica o pensamento; uma vez que este se não sacrifique, todo o apuro em o vestir é pouco. Victor Hugo (conta o Mme. de Girardin) conversando, certa noite, de estylo e poesia, brincava ao mesmo tempo com um alfinete. então muito em moda, feito de uma mosca natural engastada em ouro. « Tenez, disse o poeta, voilà justement ce que c'est que le style; seule, celle mouche n'est qu'un insecte : avec la monture , c’sí un bijou .» Definição que me agrada (accrescenta a escriptora), pois nada obsta a que se engaste um diamante.

Si para cousas divinas podem servir estas comparações terrestres, diremos que o assumpto da Jerusalem, é o diamante que o escriptor brasileiro engastou em ouro de lei ; e por isso, ainda uma vez nos congratulamos com as letras sagradas e profanas. Estas haverão dal1i o brilho o quo lhes pertenceo ; aquellas folgarão com a solemne e pia homenagem ao Salvador do mundo.

Machado de Assiz.