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Amor de Perdição (1862)/VIII

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VIII.

 

Marianna, a filha de João da Cruz, quando viu seu pae pensar a chaga do braço de Simão, perdeu os sentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o academico achou estranha sensibilidade em mulher affeita a curar as feridas com que seu pae vinha laureado de todas as feiras e romarias.

— Não ha ainda um anno que me fizeram tres buracos na cabeça, quando eu fui á Senhora dos Remedios a Lamego, e foi ella que me tosqueou e rapou o casco á navalha — disse o ferrador. — Pelo que vejo o sangue do fidalgo deu volta ao estomago da rapariga!... Estamos então bem aviados! Eu tenho cá a minha vida, e queria que ella fosse a enfermeira do meu doente.... És ou não és, rapariga? — disse elle á filha, quando ella abriu os olhos, com rosto de corrida da sua fraqueza.

— Serei com muito gosto, se o pae quizer.

— Pois então, moça, se hás de ir costurar para a varanda, vem aqui para a beira do senhor Simão. Dá-lhe caldos a miudo; e trata-lhe da ferida; vinagre e mais vinagre, quando ella estiver assim a modo de roixa. Conversa com elle, não o deixes estar a malucar, nem escrever muito, que não é bom quando se está fraco do miôlo. E v. s.^a não tenha aquellas de ceremonia, nem me diga a Marianna — a menina isto, a menina aquillo. É — rapariga dá cá um caldo; rapariga, lava-me o braço, dá cá as compressas — e nada de politicas. Ella está aqui como sua criada, porque eu já lhe disse que, se não fosse o pae de v. s.^a, já ella ha muito tempo que andava por ahi ás esmolas, ou peor ainda. É verdade que eu podia deixar-lhe uns bensinhos, ganhos alli a suar na bigorna ha dez annos, afóra uns quatrocentos mil reis que herdei de minha mãe, que Deus haja; mas v. s.^a bem sabe que, se eu fosse á forca ou pela barra fóra, vinha a justiça, e tomava conta de tudo para as custas.

— Se vocemecê tem uma casinha soffrivel — atalhou Simão — póde, querendo, casar a sua filha n’uma boa casa de lavoira.

— Assim ella quizesse. Maridos não lhe faltam; até o alferes da igreja a queria, se eu lhe fizesse doação de tudo, que pouco é, mas ainda vale quatro mil cruzados bons; o caso é que a moça não tem querido casar, e eu, a fallar a verdade, sou só e mais ella, e tambem não tenho grande vontade de ficar sem esta companhia, para quem trabalho como moiro. Se não fosse ella, fidalgo, muita asneira tinha eu feito! Quando vou ás feiras ou romarias, se a levo comigo, não bato, nem apanho; indo sósinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pinga me sobe ao capacete do alambique, pucha-me pela jaqueta, e por bons modos põe-me fóra do arraial. Se alguem me chama para beber mais um quartilho, ella não me deixa ir, e eu acho graça á obediencia com que me deixo guiar pela moça, que me pede que não vá por alma da mãe. Eu cá, em ella me pedindo por alma da minha santa mulher, já não sei de que freguezia sou.

Marianna ouvia o pae, escondendo meio rosto no seu alvissimo avental de linho. Simão estava-se gosando na simpleza d’aquelle quadro rustico, mas sublime de poesia e naturalidade.

João da Cruz foi chamado para ferrar um cavallo, e despediu-se n’estes termos:

— Tenho dito, rapariga; aqui te entrego o nosso doente: trata-o como quem é, e como se fosse teu irmão ou marido.

O rosto de Marianna acerejou-se quando aquella ultima palavra sahiu, natural como todas, da bôca de seu pae.

A moça ficou encostada ao batente da alcova de Simão.

— Não foi nada boa esta praga que lhe cahiu em casa, Marianna! — disse o academico — Fazerem-na enfermeira d’um doente, e privarem-na talvez de ir costurar na sua varanda, e conversar com as pessoas que passam....

— Que se me dá a mim d’isso! — respondeu ella, sacudindo o avental, e baixando o coz ao logar da cintura com infantil graça.

— Sente-se, Marianna; seu pae disse-lhe que se sentasse... Vá buscar a sua costura, e dê-me d’alli uma folha de papel e um lapis que está na carteira.

— Mas o pae tambem me disse que o não deixasse escrever... — replicou ella, sorrindo.

— Pouco, não faz mal. Eu escrevo apenas algumas linhas.

— Veja lá o que faz... — tornou ella, dando-lhe o papel e o lapis — Olhe se alguma carta se perde, e se descobre tudo...

— Tudo, o quê, Marianna? Pois sabe alguma coisa?!

— Era preciso que eu fosse tola. Eu não lhe disse já que sabia da sua amizade a uma menina fidalga da cidade?

— Disse; mas que tem isso?

— Aconteceu o que eu receava. V. s.^a está ahi ferido, e toda a gente falla n’uns homens que appareceram mortos.

— Que tenho eu com os homens que appareceram mortos?

— Para que está a fingir-se de novas?! Pois eu não sei que esses homens eram criados do primo da tal senhora? Parece que v. s.^a desconfia de mim, e está a querer guardar um segredo que eu tomára que ninguem soubesse, para que meu pae e o senhor Simão não tenham alguns maiores trabalhos...

— Tem razão, Marianna, eu não devia esconder de si o mau encontro que tivemos...

— E Deus queira que seja o ultimo!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que lhe dê remedio a essa paixão!... O peor futuro eu que ainda está por passar...

— Não, menina, isto acaba assim: eu vou para Coimbra, logo que esteja bom, e a menina da cidade fica em sua casa.

— Se assim fôr, já prometti dois arrateis de cêra ao Senhor dos Passos; mas não me diz o coração que v. s.^a faça o que diz...

-Muito agradecido lhe estou-disse Simão commovido — pelo bem que me deseja. Não sei o que lhe fiz para lhe merecer a sua amizade.

— Basta vêr o que seu paesinho fez pelo meu — disse ella, limpando as lagrimas. — O que seria de mim, se me elle faltasse, e se fosse á forca como toda a gente dizia!... Eu era ainda muito nova quando elle estava na enxovia. Teria treze annos; mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se elle fosse condemnado á morte. Se o degradassem, então ia com elle, ia morrer onde elle fosse morrer. Não ha dia nenhum que eu não peça a Deus que dê a seu pae tantos prazeres como estrellas tem o ceo. Fui de proposito á cidade para beijar os pés a sua mãesinha, e vi suas manas, e uma, que era a mais nova, deu-me uma saia de lapim, que eu ainda alli tenho guardada como uma reliquia. Depois, cada vez que ia á feira, dava uma grande volta para vêr se acertava de encontrar a senhora D. Ritinha á janella; e muitas vezes vi o senhor Simão. E talvez não saiba que eu estava a beber na fonte, quando v. s.^a, ha dois para tres annos, deu muita pancada nos criados, que era mesmo um reboliço que parecia o fim do mundo. Eu vim contar ao pae, e elle até cahiu ao chão a dar risadas como um doido... Depois nunca mais o vi senão quando v. s.^a entrou com o tio de Coimbra; mas já sabia que vinha para esta desgraça, porque tinha tido um sonho, em que via muito sangue, e eu estava a chorar, porque via uma pessoa muito minha amiga a cahir n’uma cova muito funda...

— Isso são sonhos, Marianna...

— São sonhos, são; mas eu nunca sonhei nada que não acontecesse. Quando meu pae matou o almocreve, tinha eu sonhado que o via a dar um tiro n’outro homem; antes de minha mãe morrer, acordei eu a chorar por ella, e mais ainda viveu dois mezes... A gente da cidade ri-se dos sonhos; mas Deus sabe o que isto é... Ahi vem meu pae... Senhor dos Passos! não vá ser alguma má nova!...

João da Cruz entrou com uma carta que recebêra da pobre do costume. Em quanto Simão leu a carta escripta do convento, Marianna fitou os seus grandes olhos azues no rosto do academico, e a cada contracção da fronte d’elle, angustiava-se-lhe a ella o coração. Não teve mão da sua ancia, e perguntou:

— É noticia má!

— Tu és muito atrevida, rapariga! — disse João da Cruz.

— Não é, não — atalhou o estudante. — Não é má a noticia, Marianna. Senhor João, deixe-me ter na sua filha uma amiga, que os desgraçados é que sabem avaliar os amigos.

— Isso é verdade; mas eu não me atrevia a perguntar o que a carta diz.

— Nem eu perguntei, meu pae; foi porque me pareceu que o senhor Simão estava afflicto quando lia.

— E não se enganou — tornou o doente, voltando-se para o ferrador. — O pae arrastou Thereza ao convento.

— Sempre é patife d’uma vez! — disse o ferrador, fazendo com os braços instinctivamente um movimento de quem aperta entre as mãos um pescoço. N’este lance um observador perspicaz veria luzir nos olhos de Marianna um clarão de innocente alegria.

Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Thereza espontaneamente lhe chegou, dizendo:

— Em quanto escreve, vou olhar pelo caldinho, que está a ferver.

«É necessário arrancar-te d’ahi — dizia a carta de Simão. — Esse convento ha de ter uma evasiva. Procuraa, e diz-me a noite e a hora em que devo esperar-te. Se não podéres fugir, essas portas hão de abrir-se diante da minha cólera. Se d’ahi te mandarem para outro convento mais longe, avisa-me, que eu irei sósinho, ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensavel que te refaças de animo para te não assustarem os arrojos da minha paixão. És minha; não sei de que me serve a vida se a não sacrificar a salvar-te. Creio em ti, Thereza, creio. Ser-me-has fiel na vida e na morte. Não soffras com paciencia; lucta com heroismo. A submissão é uma ignominia, quando o poder paternal é uma affronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quasi bom. Diz-me uma palavra, chama-me, e eu sentirei que a perda do sangue não diminue as forças do coração.»

Simão pediu a sua carteira, tirou dinheiro em prata, deu-o ao ferrador, e recommendou-lhe que o entregasse á pobre com a carta.

Depois ficou relendo a de Thereza, e recordando-se da resposta que déra.

Mestre João foi á cosinha, e disse a Marianna:

— Desconfio d’uma coisa, rapariga.

— Que é, meu pae?

— O nosso doente está sem dinheiro.

— Porquê? o pae como sabe isso?

— É que elle pediu-me a carteira para tirar dinheiro, e ella pezava tanto como uma bexiga de porco cheia de vento. Isto bole-me cá por dentro! Queria offerecer-lhe dinheiro, e não sei como ha de ser...

— Eu pensarei n’isso, meu pae — disse Marianna reflectindo.

— Pois sim; cogita lá tu, que tens melhores ideias que eu.

— E se o pae não quizer bolir nos seus quatrocentos, eu tenho aquelle dinheiro dos meus bezerros; são onze moedas d’ouro menos um quarto.

— Pois fallaremos: pensa tu no modo de elle aceitar sem remorsos.

Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era synonimo de escrupulos ou repugnancia.

Foi Marianna levar o caldo a Simão, que lh’o rejeitou como distrahido em profundo scismar.

— Pois não toma o caldinho? — disse ella com tristeza.

— Não posso, não tenho vontade, menina; será logo. Deixe-me sósinho algum tempo; vá, vá; não passe o seu tempo ao pé d’um doente aborrecido.

— Não me quer aqui? irei, e voltarei quando v. s.^a chamar.

Dissera isto Marianna com os olhos a reverem lagrimas.

Simão notou as lagrimas, e pensou um momento na dedicação da môça; mas não lhe disse palavra alguma.

E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de occorrer-lhe ideias afflictivas, que os romancistas raras vezes attribuem aos seus heroes. No romance todas as crises se explicam, menos a crise ignobil da falta de dinheiro. Entendem os novellistas que a materia é baixa e plebea. O estylo vai de má vontade para coisas razas. Balzac falla muito em dinheiro; mas dinheiro a milhões: não conheço, nos cincoenta livros que tenho d’elle, um galã n’um entre-acto da sua tragedia a scismar no modo de arranjar uma quantia com que pague ao alfaiate, ou se desembarace das rêdes que um usurario lhe lança, desde a casa do juiz de paz a todas as esquinas, d’onde o assaltam o capital e juro de oitenta por cento. D’isto é que os mestres em romances se escapam sempre. Bem sabem elles que o interesse do leitor se gela a passo igual que o heroe se encolhe nas proporções d’estes heroesinhos de botequim, de quem o leitor dinheiroso foge por instincto, e o outro foge tambem, porque não tem que fazer com elle. A coisa é vilmente prosaica, de todo o meu coração o confesso. Não é bonito o deixar a gente vulgarisar-se o seu heroe a ponto de pensar na falta de dinheiro, um momento depois que escreveu á mulher estremecida uma carta, como aquella de Simão Botelho. Quem a lêsse diria que o rapaz tinha postadas, em differentes estações das estradas do paiz, carroças e folgadas parelhas de mulas, para transportarem a Paris, a Veneza, ou ao Japão a bella fugitiva! As estradas, n’aquelle tempo, deviam ser boas para isso; mas não tenho a certeza de que houvessem estradas para o Japão. Agora creio que ha, porque me dizem que ha tudo.

Pois eu já lhes fiz saber, leitores, pela bôca de mestre João, que o filho do corregedor não tinha dinheiro. Agora lhes digo que era em dinheiro que elle scismava quando Marianna lhe trouxe o caldo rejeitado.

A meu vêr, deviam attribulal-o estes pensamentos:

Como pagaria a hospitalidade de João da Cruz?

Com que agradeceria os desvelos de Marianna?

Se Thereza fugisse, com que recursos proveria á subsistencia de ambos!

Ora, Simão Botelho sahira de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quasi lh’a absorvêra o aluguel da cavalgadura, e a groseta generosa que déra ao arreeiro, a quem devia o conhecimento do prestante ferrador.

As reliquias d’esse dinheiro déra-as elle á portadora da carta n’aquelle dia. Má situação!

Lembrou-se de escrever á mãe. Que lhe diria elle? Como explicaria a sua residencia n’aquella casa? D’este modo não iria elle dar indicios da morte mysteriosa dos dois criados de Balthazar Coutinho?

Além de que, sobejamente sabia elle que sua mãe o não amava; e, a mandar-lhe algum dinheiro em segredo, seria escassamente o necessario para a jornada até Coimbra. Péssima situação!

Cansado de pensar, favoreceu-o a providencia dos infelizes com um somno profundo.

E Marianna entrára pé ante pé na sala, e ouvindo-lhe a respiração alta, aventurou-se a entrar na alcova. Lançou-lhe um lenço de cassa sobre o rosto, em roda do qual zumbia um enxame de moscas. Viu a carteira sobre uma banqueta que adornava o quarto, pegou d’ella, e sahiu pé ante pé. Abriu a carteira, viu papeis, que não soube lêr, e n’um dos repartimentos duas moedas de seis vintens. Foi restituir a carteira ao seu logar, e tomou d’um cabide as calças, collête, e jaqueta á hespanhola, do hospede. Examinou os bolsos, e não encontrou um ceitil.

Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditava angustiada a nobre rapariga. Depois ergueu-se de golpe, e conversou longo tempo com o pae. João da Cruz escutou-a, contrariou-a; mas ia de vencida sempre pelas replicas da filha; até que, a final, disse:

— Farei o que dizes, Marianna. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou agora levantar a pedra da lareira para bolir no caixote dos quatrocentos mil reis. Tanto faz um como outro: teu é elle todo.

Marianna deu-se pressa em ir á arca, d’onde tirou uma bolsa de linho com dinheiro em prata, e alguns cordões, anneis e arrecadas. Guardou o seu oiro n’uma boceta, e deu a bolsa ao pae.

João da Cruz apparelhou a egoa, e sahiu. Marianna foi para a sala do doente.

Acordou Simão.

— Não sabe!? — exclamou ella com semblante entre alegre e assustado, perfeitamente contrafeito.

— Que é, Marianna?

— Sua mãesinha sabe que v. s.^a aqui está.

— Sabe?! isso é impossivel! quem lh’o disse?

— Não sei; o que sei é que ella mandou chamar meu pae.

— Isso espanta-me!... E não me escreveu?

— Não, senhor!... Agora me lembro que talvez ella soubesse que o senhor aqui esteve, e cuide que já não está, e por isso lhe não escreveu... Poderá ser?

— Poderá; mas quem lh’o diria!? Se isto se sabe, então podem suspeitar da morte dos homens.

— Póde ser que não; e ainda que desconfiem, não ha testemunhas. O pae disse que não tinha mêdo nenhum. O que fôr, soará. Não esteja agora a scismar n’isso... Vou-lhe buscar o caldinho, sim?

— Vá, se quer, Marianna. O ceu deparou-me em si a amizade de uma irmã.

Não achou a moça na sua alegre alma palavras em resposta á doçura que o rosto do mancebo exprimira.

Veio com o «caldinho» diminuitivo que a rhetorica d’uma linguagem meiga approva; mas contra o qual protestava a larga e funda malga branca, a par da travessa com meia gallinha loira de gorda.

— Tanta coisa! — exclamou, sorrindo, Simão.

— Coma o que podér — disse ella córando. — Eu bem sei que os senhores da cidade não comem em malgas tamanhas, mas eu não tinha outra mais pequena, e coma sem nojo, que esta nunca serviu, que a fui eu comprar á loja, por pensar que v. s.^a não quizera hontem comer por se atrigar da outra.

— Não, Marianna, não seja injusta, eu não comi hontem pela mesma razão que não cômo agora: não tinha, nem tenho vontade.

— Mas coma por eu lhe pedir... Perdôe o meu atrevimento... Faça de conta que é uma sua irmã que lhe pede. Ainda agora me disse...

— Que o ceu me dava em si a amizade d’uma irmã...

— Pois ahi está...

Simão achou tão necessario á sua conservação o sacrificio, como ao contentamento da carinhosa Marianna. Passou-lhe na mente, sem sombra de vaidade, a conjectura de que era amado d’aquella dôce creatura. Entre si disse que seria uma crueza mostrar-se conhecedor de tal affeição, quando não tinha alma para lh’a premiar, nem para lhe mentir. Assim mesmo, bem longe de se affligir, lisongeavam-o os desvelos da gentil moça. Ninguem sente em si o pêso do amor que inspira e não comparte. Nas maximas afflicções, nas derradeiras horas do coração e da vida, é grato ainda sentir-se amado quem já não póde achar no amor diversão das penas, nem soldar o ultimo fio que se está partindo. Orgulho ou insaciabilidade do coração humano, seja o que fôr, no amor, que nos dão, é que nós graduamos o que valemos em nossa consciencia.

Não desprazia, portanto, o amor de Marianna ao amante apaixonado de Thereza. Isto será culpa no severo tribunal das minhas leitoras; mas, se me deixam ter opinião, a culpa de Simão Botelho está na fraca natureza, que é toda galas no ceu, no mar, e na terra, é toda incoherencias, absurdezas, e vicios no homem, rei da creação chamado!