Anais da Ilha Terceira/I/XXIV

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Com o sucesso feliz que tiveram os terceirenses no campo da Salga, estavam sobremaneira exaltados, e resolutos a defender-se até ao último extremo, de qualquer poder que sobre eles viesse, parecendo-lhes que não podiam esperar concerto nem perdão de El-Rei de Castela; muito mais quando logo souberam que El-Rei D. António havia chegado a França e lhe prometia ajuda e favor; e que em Portugal se fortificavam alguns portos com receio da sua chegada porque, aparecendo as suas bandeiras, haveria grande novidade.

A tamanho grau de entusiasmo, na verdade, havia chegado o povo, que persuadindo-se de que o fidalgo João de Betancor fora instado para aclamar El-Rei Filipe por conselho dos padres da Companhia de Jesus, em razão das relações de amizade que entre eles havia, pelo que publicamente diziam, como já vimos no Capítulo II; e muito mais porque não concorreram aos festejos do dia 26 de Julho, em que tivera lugar aquela tão assinalada vitória[1].

Por estes fundamentos, parece que não temerários, por mais que os padres depuseram e juraram o contrário, ainda assim, enquanto não vinha resolução de El-Rei D. António, a quem escreveram logo, confiscaram as rendas do Colégio e os bens móveis dele, proibiram-lhe o dizer missa, fecharam-lhes as portas, até as da igreja, e lhes taparam as janelas de pedra e cal, de modo que só às quartas-feiras lhes deitavam algum comer, e tudo se fazia por oficiais franceses; e assim estiveram os podres entaipados desde Julho de 1581 até Julho de 1582, em que foram mandados embarcar.

Não descansava o íntegro magistrado Ciprião de Figueiredo de patentear aos povos da sua comarca quanto estava decidido a sustentar os direitos de El-Rei D. António; e logo em princípio do ano de 1581 se lhe ofereceu ocasião de prestar um serviço que bem justificou a sua adesão à causa do mesmo Rei, porque sendo-lhe apresentada em Angra uma sentença do desembargo, passada em nome de El-Rei Filipe, não só ele a recusou cumprir, mas até a fez queimar junto do pelourinho com toda a solenidade; e o mesmo fez no dia 8 de Janeiro, achando-se de correição na vila da Praia desta ilha, onde lhe foi apresentada outra sentença em feito crime a favor de um Bartolomeu Simão, preso na cadeia da vila das Velas da ilha de S. Jorge, cuja sentença levou à casa da Câmara, e mostrou aos juízes e vereadores, ao capitão, e sargento-mor, e com eles deliberou em presença de algumas pessoas da governança e povo, que fosse queimada debaixo do seguinte pregão: — Ouvi do mandado do corregedor, juízes, vereadores, e procurador, misteres, e capitão-mor desta muito nobre e sempre leal vila da Praia, que mandou publicamente queimar esta sentença ao pé do pelourinho desta dita vila, por vir em nome de El-Rei D. Filipe, Rei de Castela, que nunca foi Rei destes reinos de Portugal, que não lhe pertencem; antes pertencem a El-Rei D. António, nosso Senhor e natural, a quem têm jurado por Rei e Senhor e feito menagem nesta vila.

E com este pregão dado, logo saíram da Câmara, e ao pé do pelourinho foi queimada a dita sentença, dando-se fim a tudo pelo auto que o corregedor mandou exarar no Livro das Vereações, a fl. 200, e que adiante vai transcrito no Documento L**.

O corregedor e capitão-mor Ciprião de Figueiredo havia ganhado o crédito de um grande general pela boa direcção destes negócios; conhecendo porém que El-Rei D. Filipe não deixaria de vingar tamanha contumácia e rebeldia dos moradores da ilha, atacando-a com o maior poder que lhe fosse possível, resolveu com os mais da governança dela reformar a milícia, por não ser conveniente que as companhias fossem tão grandes, e principalmente porque uma parte dos nobres não eram pessoas de sua confiança.

Fez portanto capitão de uma companhia a Braz Nogueira, seu escrivão da correição, não obstante o mau crédito que tinha de ser causa de muitas desordens atribuídas ao corregedor. Elegeu mais para capitães a Heitor Rodrigues, a Diogo de Lemos, Aires de Porras, Álvaro Pires Ramires, o Moço, Miguel da Cunha, Martim Simão de Faria, António Rodrigues, André Fernandes Madruga, e a Fernão Feio Pita. Além destes ficaram os capitães velhos, a saber: Sebastião do Canto, Pedro Cota da Malha, Bernardo de Távora, Gaspar Cavio de Barros, e Francisco Dias Santiago, dos 80 jurados; todos estes eram capitães da parte da cidade.

O mesmo fez na vila da Praia, onde, além dos capitães Gaspar Camelo do Rego e Simão de Andrade Machado, elegeu Pedro Álvares, por alcunha o Frade, Alexandre Pinheiro, e a Miguel do Canto Vieira, que muito se haviam distinguido por seu valor na guerra da Salga; e este Miguel do Canto também serviu de capitão-mor na falta de Gomes Pamplona de Miranda, suposto não pudemos averiguar em que data começou neste exercício.

Outro tanto fez o corregedor e capitão-mor na vila de S. Sebastião, na qual serviam de capitães, desde o ano de 1571, Baltasar Afonso Leonardes, que tinha cargo de capitão-mor nesta vila, André Gato Coelho, o Velho, como se vê do respectivo auto de ratificação (Documento H**) por conter mais algumas coisas importantes, relativas à fortificação da ilha em observância do novo regimento da milícia[2] que nele se alega.

Elegeu também para capitão da fortaleza de S. Sebastião da cidade a António Pita: e de tal forma proveu em todos os lugares, que somente em Angra fez perto de 20 companhias de gente de pé, e uma de cavalo.

Não havia naquele tempo em toda a costa da ilha Terceira alguma fortaleza, excepto aquela de S. Sebastião, posto que em todas as cortinas do sul se tivessem feito alguns redutos e estâncias, nos lugares mais susceptíveis de desembarque inimigo[3], conforme a indicação e plano do engenheiro Tomás Benedito, que nesta diligência andou desde o ano de 1567, depois que, no antecedente de 1566, os franceses, comandados pelo terrível pirata Caldeira[4], barbaramente haviam saqueado a ilha da Madeira, e intentado fazer o mesmo nesta ilha, donde parece que foram repelidos à força das nossas armas[5].

Porém ainda que estas obras eram de tanta urgência, a falta de se efectuarem deveu-se por muito tempo à escassez dos meios pecuniários, sem embargo das fintas e das imposições que para isto rigorosamente se lançaram pelos presentes e ausentes no ano de 1567, como deixámos escrito. A todas estas fortificações projectadas deu andamento o exímio governador Ciprião de Figueiredo.

Uma das fortalezas que a experiência mostrou ser da maior necessidade, foi a que então ele mandou fazer na ponta do Monte Brasil, da parte de leste, porque junto dela passavam a salvo as naus das armadas, e com o seu abrigo se punham muitas das suas lanchas à espera dos barcos que saíam do porto, tomando-os algumas vezes, sem que houvesse quem lhes fizesse dano; porque o castelo de S. Sebastião lhe ficava muito longe e mais recolhido à terra, e de noite podiam vir ao longo da montanha atacar, e roubar os navios ancorados no porto. A este forte deu o nome de Santo António, em obséquio do novo Rei que assim se chamava, e fez capitão dele Baltasar Gonçalves de Antona, nobre cidadão de Angra, de quem falámos no ano de 1576 como vereador da Câmara. Na outra ponta da parte do sul edificou o forte chamado do Zimbreiro.

Os mais fortes que Ciprião de Figueiredo mandou edificar nos lugares já de antes designados (conforme a citada Relação, no capitulo 25), são os seguintes: dentro na baía da cidade, entre a mencionada fortaleza de Santo António e o Porto Novo, edificou-se outro forte; correndo para o poente, onde se chama a Prainha, outro, e todos com artilharia, fechados, e de uns a outros iam muros com seus cordões, e corredores por dentro, e com boas portas para terra. Edificou-se mais adiante a fortaleza de São Mateus, o forte da Calheta, e o do Negrito; e dali até à Serreta fizeram-se trincheiras em poucos lugares, por ser costa mui brava.

Para leste fez-se um forte, onde se chama o Vale de Estêvão Ferreira, além do castelo de S. Sebastião. E porque dali até à Feteira é costa brava, apenas se fizeram em alguns baixos pequenas trincheiras e baluartes, como foi nas Laginhas.

Continuou-se o forte de Santo António no porto do Porto Judeu[6]; fez-se um baluarte na Ponta dos Coelhos[7]; concluíram-se a boa fortaleza da Salga e o reduto que lhe fica fronteiro e encruza a baía, estendendo-se-lhe um bom lanço de muralha. Mais adiante bastante espaço, fundou-se o forte das Cavalas, com muralha da parte do poente para defender o cais natural que ali havia; e um pouco adiante fez-se o forte das Caninhas.

Dentro da baía, ou casa, das Mós, que é a mais profunda da ilha, e onde estão os ilhéus da Mina, bem conhecidos nas cartas marítimas, edificou-se o forte da Greta; e o de Santa Catarina, aos quais pela sua posição e construção bem podíamos chamar castelos; e se lhe fez uma forte muralha com que se fechou aquela cortina, como ainda hoje atestam os fortes vestígios ali existentes; e entre os ilhéus fez-se um baluarte, no lugar em que pelos anos em diante a Câmara de Angra mandou construir a fortaleza do Bom Jesus.

Mais adiante, e na baía de Porto Novo, edificou-se o forte denominado Pesqueiro dos Meninos; e dentro na enseada do mesmo porto, concluiu-se um pequeno castelo denominado de S. Sebastião, nome do santo da vila, cujo porto defendia, e nele estava nos 6 meses de verão o comandando com as munições de guerra convenientes, por ser este o terceiro porto comercial da ilha[8]; e para o centro do dito porto, se assentaram dois redutos bem artilhados; de forma que havendo-se-lhe feito uma grossa muralha, que compreendia toda esta cortina, um portão e um excelente arco, por baixo do qual atravessa a Ribeira Seca, se reputava este porto assaz defensável; e tanto assim que nem no menos consta que o inimigo tentasse por ele entrar; e muito mais seguro ficou depois que se lhe fez o forte de S. Francisco, que só por si pode varrer toda aquela vasta baía até São Fernando, outro bom forte, já ambos no termo da Praia. Na Ponta Negra edificou-se o forte de Nazaré, e logo adiante o de S. Tiago, que cruza, com o forte de São Bento, a enseada do Porto de Martim[9]. Defronte da ermida de S. Vicente fez-se outro forte, e dentro da baía da Praia construíram-se 12 fortes e baluartes, com o que se pôs em inteira defesa; e dali até aos Biscoitos da Cruz, por outro nome Biscoitos de Pedro Anes do Canto, se fizeram alguns reparos, por ser tudo costa brava; e naquele lugar finalmente, já boas 5 léguas para o norte da vila da Praia, se fez um pequeno forte no varadouro dos barcos: toda a mais costa da ilha ficou defendida pelo alcantilado de suas rochas e fúria dos mares.

Toda esta grande fortificação se efectuou pelo incansável zelo e actividade do governador Ciprião do Figueiredo, a quem não faltavam os meios necessários, pois tinha muita pedra de cantaria de diferentes qualidades, muita pedra de cal vinda de França, e muitos oficiais de cabouqueiros, pedreiros; e mestres que de largo tempo andavam na ilha empregados em obras[10], públicas e particulares, dirigidas por hábeis engenheiros, e oficiais de grande experiência, sob a inspecção dos respectivos provedores das fortificações, a quem se pagavam grandes ordenados, o que não admite dúvida; e ainda que algumas obras da fortificação se não concluíram com a maior perfeição, senão depois de vários anos, e ainda durante o governo de Filipe III, é certo que esta ilha se tornou inconquistável, e não consta que depois disto alguma força a pretendesse atacar, por mal defendida.

Enquanto na ilha Terceira se procedia com a maior actividade na reforma da milícia e na fortificação da costa, vinham para ela entrando alguns soldadas franceses e ingleses[11], mandados por El-Rei D. António, o qual, depois de vaguear por todas as províncias de Portugal, com a dita de se escapar à vigilância dos que o procuravam[12], passou a França, onde agora se achava com seu primo o conde de Vimioso, condestável de Portugal, e Filippo Strozzi, ou de Estrócio.

A sua chegada a este reino, e o bom acolhimento que se lhe deu, inquietava muito a El-Rei de Castela, acreditando que D. António acharia em França tal favor, com que pudesse voltar a perturbar-lhe o seu novo domínio, vista a indisposição dos portugueses, que o apesar dos maiores favores e mercês que recebessem, não podiam sujeitar-se ao senhorio de um Rei estrangeiro, e muito mais castelhano, com quem sempre houveram antipatias. Além disto, muito o inquietava a tardança da frota das Índias, Brasil, São Tomé e Cabo Verde, pois temia que D. Luiz de Ataíde, que primeiro havia recebido cartas de D. António, se recusasse a obedecer-lhe; e receava finalmente que esta frota, chegando aos Açores, tomasse o rumo de Inglaterra ou França, e se fosse entregar, muito mais se viesse comandada por D. Manuel de Melo, que era aferrado aos interesses daquele príncipe. Todavia não aconteceu assim: a fortuna estava declarada a favor deste poderoso monarca.

Na primeira semana de Agosto do ano em que vamos de 1581, em uma segunda-feira de madrugada, sentiu-se na ilha Terceira grande estrondo de artilharia, e, amanhecendo, avistaram-se 80 velas, afora as de D. Pedro Valdez; e brevemente se soube que eram frotas das Índias de Castela, por um navio francês, ao serviço da ilha, que o governador Ciprião do Figueiredo lhes enviara no encontro a saber que navios eram: e mandando aquele governador convidar os capitães para virem a terra, eles, perguntando pelo estado do Reino e hesitando os nossos a dizer-lho, demoraram a sua resposta acerca deste convite.

Persuadido o governador que a demora dos capitães da frota em aceitar o oferecimento que se lhe fazia da parte da ilha, era combinação com D. Pedro Valdez, para com todo aquele poder a investirem novamente, pôs a sua gente em ordem de guerra, apercebendo-se para pelejarem, estendendo-a pela costa, e fazendo nesta muitas trincheiras, por bastante espaço de dias, enquanto a frota se foi afastando pouco a pouco da terra, e de todo desapareceu.

Neste tempo chegaram duas naus francesas, que furtivamente escapando-se do bloqueio de D. Pedro Valdez, se vieram recolher no porto de Angra. Em uma destas naus, que era muito bem artilhada e guarnecida de bons soldados, era capitão F. Berri. Vendo este a ousadia com que duas grandes naus biscainhas da armada do dito Valdez vinham de contínuo reconhecer o porto, impedindo a sua comunicação para as ilhas de baixo, e até os barcos de pesca, num dia que uma delas se aproximou mais da terra, largou sobre ela com todo o pano da sua nau; mas como a biscainha não trazia mais do que a gente do mar, retirou-se para as suas, não se atrevendo a esperar o combate.

No dia seguinte apareceram duas velas defronte do porto. Então o dito capitão francês, animado com o feliz sucesso do dia antecedente, saiu do porto com vento em popa, no projecto de as combater ambas; e com efeito encontrando-se com elas, achou que uma era o galeão S. Cristóvão, que vinha da ilha de S. Miguel, onde tinha lançado o governador Ambrósio de Aguiar e o corregedor Jorge de Barros, e trazia ordens a D. Pedro do Valdez. Travando-se então briga entre estas duas embarcações, depois de grande destroço e mortes de parte a parte, se retiraram deixando indecisa a vitória; mas o capitão Berri, que valorosa e denodadamente se expusera a todos os perigos, saiu mortalmente ferido, falecendo pouco tempo depois de chegar a terra, onde foi sepultado com grande pompa fúnebre.

Apesar de tantos danos e infelicidades que amarguravam o coração do general Valdez, ainda ele conservava a sua armada nestes mares, bloqueando a Terceira, e com a mesma infelicidade: porque em certo dia veio amanhecer defronte do porto da cidade, em volta da costa, uma caravela, a qual por não avistar a sua armada que andava ao largo, se veio meter debaixo do castelo de S. Sebastião. Imediatamente saiu para ela um batel com a gente da visita, e, chegando ali, os da caravela lhe perguntaram se era esta a ilha de S. Miguel; e dizendo-se-lhe que sim (por verem na caravela castelhanos e portugueses, e desejarem saber novas de Lisboa, que há muito não sabiam), debaixo deste engano ancorou; e em continente lhe tomaram as velas, fazendo desembarcar a gente em terra, e apreendendo a mala dos papéis e cartas que levavam ao capitão-mor da armada, prenderam o capitão da caravela no castelo até segunda ordem.

Juntos logo em Câmara todos os do regimento da terra, os capitães, e parte da gente do povo, e os homens bons do concelho, abriu-se a mala, e se achou serem cartas de El-Rei D. Filipe a D. Pedro de Valdez, avisando-o de que quando a ilha se não quisesse, com muitos partidos, reduzir ao seu serviço, que ele Valdez se incorporasse com D. Lopo de Figueiroa, que ia com muita gente em uma armada, e que lançassem em terra 3 000 homens, cujos capitães já nomeava, e os mestres de campo que haviam de ser, além de outras providências e cautelas que muito importavam para se obter um feliz resultado.

Lidas estas cartas e instruções, como já na ilha havia muitas armas que ficaram no campo da Salga, muita pólvora e bala, e alguns soldados estrangeiros, não causou isto maior abalo nos ânimos dos terceirenses, os quais sem receio esperavam o momento de se assinalar com outra vitória ainda maior. Não eram passados três dias (contavam-se os primeiros de Setembro), quando apareceu a armada prometida, composta de 40 velas, ou pouco menos, e comandada por D. Lopo de Figueiroa, que logo se incorporou com D. Pedro de Valdez. Ao segundo dia vieram as duas armadas aproximando-se da costa; e porque andavam velejando a leste, puderam entrar no porto duas naus que vinham de França; de uma delas era capitão o Cabeças, que trazia munições, arcabuzes, pólvora, e muito chumbo para vender, a outra vinha com tropa. Trouxeram estas duas naus cartas de El-Rei D. António, em que prometia enviar mais gente, e ordenava que lhe remetessem todos os bens que tomassem de vassalos de El-Rei Católico; e assim prevenia outras coisas de suma importância, que muito aproveitavam nas actuais circunstâncias.

Logo que chegaram defronte do porto, dispararam toda a artilharia, e a terra lhe correspondeu com uma salva de mosquetaria em toda a fronteira da ilha da banda do sul, desde a vila da Praia até à Serreta. Acabada a mosquetaria dispararam a artilharia grossa do castelo, das Canas, e a mais que estava assestada por toda a costa. E porque isto aconteceu já de noite, sem que as armadas tivessem avistado as duas naus, ficaram os capitães D. Lopo e D. Pedro suspensos, sem atinar o que fosse, nem o motivo de tão repetidas descargas em toda a ilha.

Certificando-se porém Figueiroa do trágico sucesso de Valdez na batalha da Salga, considerando-se, outrossim, com menos gente do que lhe era mister para vingá-lo, bem como lembrando-se da estação do tempo, mui adiantada para se demorar nestes mares, que de si são inquietos; vendo por outra parte a ilha quase toda cercada de entrincheiramentos nos lugares onde se podia desembarcar; por todos estes motivos[13], que assaz a intimidavam, tomou a sisuda resolução de voltar para Portugal, depois de intimar aos moradores da ilha que reconhecessem a El-Rei Católico, oferecendo-lhes perdão e mercês; o que tudo eles tiveram em pouco, respondendo-lhe que derramariam a última gota de sangue em defesa da sua liberdade; que ele se retirasse, se não queria que lhe acontecesse o mesmo que a D. Pedro de Valdez, e dissesse ao seu Rei, que mais os intimidava suas graças que sua cólera.

Em presença de tão desabrida resposta, não tendo D. Lopo mais a esperar, bordejando oito dias em frente da ilha, em uma noite investiu a terra, e querendo lançar nela exército, foi tanta a artilharia e arcabuzaria sobre os castelhanos que estes se retiraram imediatamente, sem pôr pé em terra[14].

Voltando a Lisboa ambos os generais, foi D. Lopo muito louvado por não se arriscar a mais, e D. Pedro foi sentenciado a perder a cabeça, por se haver excedido ao que lhe fora ordenado; e contudo ainda se lhe perdoou, e ausentando-se para as montanhas de Oviedo, sua pátria, não apareceu mais. Tal foi o resultado da segunda expedição que D. Filipe de Castela mandou sobre a ilha Terceira, e que de suas praias foi afugentada pelo valor e brio de seus naturais.

Notas[editar]

  1. Desta forma se acha no Padre Cordeiro, Livro 6.º, capítulo 27 §306; mas o historiador Herrera, no Livro 11.º, capítulo 10, atribui os trabalhos destes padres à intriga dos outros frades: e diz assim: — A los padres de la Compañia havian tapiado, y davan de comer dos veces en la semana, y eran perseguidos de los outros frayles porque no vivian licenciosamente como elos...
  2. Este regimento é datado de 10 de Dezembro de 1570, e acha-se na Colecção Sistemática das Leis Militares de Portugal, por António Ferreira da Costa, tomo IV.
  3. Veja-se o que fica dito a este respeito no ano de 1573, e o que se recomenda no fim do referido auto (Documento H**). O Porto Novo, que era o da vila de S. Sebastião, a Salga e o porto do Porto Judeu, eram os pontos mais carecidos de fortificação.
  4. Deste tremendo pirata foi depois feita justiça na cidade de Lisboa.
  5. Veja-se o que fica dito no ano de 1567. Os corsários roubadores da referida ilha andavam à roda da ilha Terceira para a saquearem, e diz o alvará de 18 de Maio de 1570, a fl. 144, verso, do Livro 1.º do Registo da Câmara de Angra, que Duarte Vaz Trigueiros despendera do armazém real 9 quintais de pólvora bombarda na defensão dela, e desta pólvora fez El-Rei mercê à cidade para que a não pagasse. Pelo que parece ter havido fogo em que ela se gastasse cá na ilha, e não em defensão da sobredita ilha da Madeira, como erradamente dissemos.
  6. Edificou-se este forte, que é um dos mais defensáveis na propriedade do capitão do André Gato, e se lhe deu o nome do orago da freguesia.
  7. Assim chamado dos filhas de João Coelho, um dos companheiros de Bruges, que ali fez assento, aos quais pertenceu este sítio.
  8. Veja-se o que dissemos na Primeira Época, Capítulo V, e o que se declara a respeito deste porto no artigo 16.º do foral do almoxarifado (Documento L*), (Documento O*) e (Documento H**).
  9. Assim denominado de Martim Anes, um dos primeiros habitantes deste lugar, no qual fez uns granéis mui grandes, e os primeiros da ilha. Parece ser o mesmo que serviu de vereador na Câmara de S. Sebastião no ano de 1526 [Nota do editor: Hoje a freguesia do Porto Martins
  10. Veja-se o ano de 1562, em que foi nomeado mestre das obras Luiz Gonçalves, sob a inspecção do provedor João da Silva do Canto: cuidava-se então da factura da Sé nova, das obras do cais e Porto de Pipas, e do castelo de S. Sebastião. E por estes mesmos anos se edificavam os sumptuosos conventos de S. Gonçalo, da Esperança, da Graça, e a igreja da Misericórdia; além de muitíssimas obras de particulares, soberbos edifícios, palácios, e o encanamento da Ribeira dos Moinhos.
  11. E aun-que — diz o citado Herreralos quiseron despedir, la gente comun no quisó, sino de tenerlos, pues El-Rei los habia embiado.
  12. Na verdade parece que este Príncipe escapava milagrosamente das mãos de seus inimigos; porque, ficando cativo no infeliz jornada de África, foi o primeiro que se livrou, por não ser conhecido; e esteve escondido no Reino, desde Outubro do 1580 até Janeiro de 1581. Em Setúbal, com o favor de uma mulher e de um frade de S. Francisco, fretou um navio, e, embarcando-se com dez companheiros, esteve à fala com Ambrósio de Aguiar; foi a Rouan, e depois de estar ali incógnito 3 ou 4 dias, passou a Inglaterra, aonde o mandou chamar a Rainha de França, que lhe deu os grandes auxílios com que ele debelou as forças de seu competidor D. Filipe.
  13. São estes os motivos alegados pelo historiador Herrera, e Mr. de la Clèd. A já mencionada Relação diz assim: — A armada de D. Lopo e a de D. Pedro, não sabiam o que era, ou o que podia ser, e, sem mandarem recado algum a terra, se amararam de noite, que quando foi pela manhã escassamente se enxergavam, e de todo desapareceram, e se foram sem mais tornarem,.... Parece que o autor desta Relação ignorou a principal coisa por que D. Lopo se retirou sem concluir o fim da sua expedição. Segundo ele, nem D. Lopo mandou recado algum a terra, nem a investiu jamais, porém o terror pânico de que o considera possuído, não seria causa suficiente, a nosso ver, para que ele deixasse de executar alguma tentativa, qualquer que ela fosse? Herrera, historiador espanhol, confessa que D. Lopo intentara meios de pacificação, e todavia não fala da repulsa que se fez aos castelhanos, talvez por não os querer aniquilar. O Padre Cordeiro, que teve presente a referida Relação (como ele acusa no Livro 6.º, capítulo 27, §35), deixa de a seguir nesta parte, antes adoptando a opinião do Doutor Frutuoso, menciona circunstanciadamente (no capítulo 26, § 292 do Livro 6.º) o nome do emissário desta embaixada, Frei Pedro, que fora guardião na Praia da Terceira, e então estava na ilha de S. Miguel por comissário das ilhas; e conclui que sendo este rejeitado, fugira o barco aos tiros que da terra lhe dispararam, o que resolveu D. Lopo em uma noite a investir a ilha; e o fizeram sem proveito algum seu. São estas as opiniões sobre a matéria: cada um siga a que mais lhe agradar.
  14. O citado Padre António Cordeiro, fundado no que diz o Doutor Frutuoso no Livro 4.º, capítulo 100. É tradição que os Castelhanos intentaram desembarcar na baía do Porto Novo, e que foram repelidos com muita força.