Athena/Os Poemas Finaes de Edgar Poe

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Os Poemas Finaes de Edgar Poe

(Traducção de Fernando Pessoa, rhythmicamente conforme com o original)

Annabel Lee


Foi ha muitos e muitos annos já,
Num reino de ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquella que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.

Eu era creança e ella era creança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor —
O meu e o d'ella a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
A ambos nós invejar.

E foi esta a razão porque, ha muitos annos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento sahiu d'uma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulchro
Neste reino ao pé do mar.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento sahiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.

Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,

E nem os anjos no céu lá em cima,
Nem demonios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.

Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrellas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulchro ao pé do mar,
Ao pé do murmurio do mar.


Ulalume


O céu era livido e frio,
As folhas de um louro mortal,
As folhas de um secco mortal;
Era noite no Outubro vazio
No fim do meu anno fatal;
Era ao pé d'esse lago sombrio
Na media região spectral —
Era perto do pego sombrio
Na fria floresta spectral.

Aqui, por uma alea titanica,
Cyprestea, errei com minha alma —
Cyprestea, com Psyche, minha alma.
Eram dias de mente vulcanica
Como o rio que quente se espalma —
Como a lava que em rio se espalma,
Em furia sulphurea e vesanica
Nas ultimas terras sem calma —
Que geme com magua vesanica
Nas terras extremas sem calma.

Cada um no fallar fôra frio,
Mas na alma d'um gelo mortal —
Na alma d'um dolo mortal,
Pois não demos p'lo Outubro vazio
Nem p'la noite do anno fatal —
(Ah noite entre todas fatal!),

Nem notámos o lago sombrio
(Que outrora já viramos tal),
Nem lembrámos o pego sombrio
Nem a fria floresta spectral.

Mas a noite era já senescente
E os astros sonhavam com dia —
E os astros mostravam o dia,
Quando um baço luzir liquescente
Ao fim do caminho surgia,
E da luz se formou um crescente
Que com pontas distinctas luzia —
O de Astarte subido crescente
Com as pontas agudas luzia.

E eu disse, «Ella é lua em verão,
Num ether de amor a boiar;
Vae num ether de ardor a boiar.
Viu que as lagrimas não poderão
Nestas faces comidas seccar,
E as estrellas passou do Leão
O caminho do céu a mostrar —
A paz que ha nos céus a mostrar;
Veio aqui apesar do Leão
Nos trazer o amor no olhar —
Atravez da caverna do Leão
Com amor no seu lucido olhar.»

Mas Psyche, erguendo seu dedo,
Disse, «Nada a esta estrella me dou —
A seu pallido ser me não dou.
Não tardeis! Não tardeis! Vinde cedo
Para longe, onde a alma está só.»
Fallou pallida e triste, e com medo
Suas azas cahiram no pó —
Soluçou angustiada, e com medo
Suas plumas roçaram no pó,
Tristemente roçaram no pó.

Respondi, «Isto é sonho sòmente.
Que nos guie esta tremula luz!
Que nos banhe esta nitida luz!
Seu sibyllio splendor é fulgente
De belleza e speranças a flux —

Ah, no ar e na noite stá a flux!
Confiemos em sua luzente
Visão que nos certos conduz!
Poderemos confiar na luzente
Visão que nos certos conduz,
Que na noite e no ar stá a flux.»

E a Psyche eu affago e a beijo,
E a tiro da dor que a consume —
Da duvida e a dor que a consume,
E no fim do caminho nos vejo
Que um sepulchro com porta resume»
Um sepulchro lendario resume.
Perguntei, «Que legenda é que vejo
Que esta lugubre porta resume?»
E ella disse, «Ulalume! Ulalume!
Stá aqui tua amada Ulalume!»

E o meu ser ficou livido e frio
Como as folhas d'um louro mortal —
Como as folhas d'um secco mortal,
E exclamei, «Era o Outubro vazio,
E esta noite do anno fatal,
Que aqui vim, aqui vim afinal,
Que aqui trouxe esse fardo final!
Nesta noite de todas fatal
Que demonio me trouxe afinal?
Ah, conheço este lago sombrio,
Esta media região spectral !
Bem conheço este pego sombrio
E esta fria floresta spectral!»