As Trevas
Tive um sonho que em tudo não foi sonho!..
O sol brilhante se apagára; e os astros,
Do eterno espaço na penumbra escura,
Sem raios e sem trilhos, vagueavam.
A terra fria balouçava céga
E tetrica no espaço ermo de lua.
A manhã ia, vinha... e regressava...
Mas não trazia o dia! Os homens pasmos
Esqueciam no horror dessas ruinas
Suas paixões. E as almas conglobadas
Gelavam-se n'um grito de egoismo
Que demandava — luz. Junto ás fogueiras
Abrigavam-se... e os thronos e os palacios.
Os palacios dos reis, o albergue e a choça
Ardiam por fanaes. Tinham nas chammas
As cidades morrido. Em torno ás brazas
Dos seus lares os homens se grupavam,
P'ra a vez extrema se fitarem juntos.
Feliz de quem viria junto ás lavas
Dos volcões sob a tocha alcantilada!
Hórrida esp'rança acalentava o mundo!
As florestas ardiam!... de hora em hora
Cahindo se apagavam; crepitando,
Lascado o tronco desabava em cinzas.
E tudo... tudo as trévas envolviam.
As frontes ao clarão da luz doente
Tinham do inferno o aspecto... quando ás vezes
As faíscas das chammas borrifavam-nas.
Uns, de bruços no chão, tapando os olhos
Choravam. Sobre as mãos cruzadas — outros
Firmando a barba, desvairados riam.
Outros correndo á tôa procuravam
O ardente pasto p'ra funercas pyras.
Inquietos, no esgar do desvario.
Os olhos levantavam p'ra o céo torvo,
Vasto sudario do universo — espectro
E após em terra se atirando em raivas,
Rangendo os dentes, blasphemos, uivavam!
Lugubre grito os passaros selvagens
Soltavam, revoando espavoridos
N'um vôo tonto co'as inuteis azas!
As féras 'stavam mansas e medrosas!
As viboras rojando s'enroscavam
Pelos membros dos homens, sibilantes,
Mas sem veneno... a fome lhes matavam!
E a guerra, que um momento s′extinguira
De novo se fartava. Só com sangue
Comprava-se o alimento, e após á parte
Cada um se sentava taciturno,
P'ra fartar-se nas trévas infinitas!
Já não havia amor!... O mundo inteiro
Era um só pensamento, e o pensamento
Era a morte sem gloria e sem detença!
O estertor da fome apascentava-se
Nas entranhas... Ossada ou carne putrida,
Resupino, insepulto era o cadaver.
Mordiam-se entre si os moribundos:
Mesmo os cães se atiravam sobre os donos,
Todos, excepto um só... que defendia
O cadaver do seu, contra os ataques
Dos passaros, das féras e doa homens,
Até que a fome os extinguisse, ou fossem
Os dentes frouxos saciar algures!
Elle mesmo alimento não buscava...
Mas, gemendo n'um uivo longo e triste.
Morreu lambendo a mão, que inanimada
Já não podia lhe pagar o affecto.
Faminta a multidão morrêra aos poucos.
Escaparam dous homens tão sómente
De uma grande cidade. E se odiavam.
Foi junto dos tições quasi apagados
De um altar, sobre o qual se amontoaram
Sacros objectos p'ra um profano uso,
Que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas
Reunindo nas mãos frias de espectros,
De seus sopros exhaustos ao bafejo
Uma chamma irrisoria produziram!...
Ao clarão que tremia sobre as cinzas
Olharam-se e morreram dando um grito.
Mesmo da propria hediondez morreram,
Desconhecendo aquelle em cuja fronte
Traçara a fome o nome de Duende!
O mundo fez-se um vácuo. A terça esplendida,
Populosa tornou-se n'uma massa
Sem estações, sem arvores, sem herva,
Sem verdura, sem homens e sem vida,
Cahos de morte, inanimada argila!
Calaram-se o oceano, o rio, os lagos!
Nada turbava a solidão profunda!
Os navios no mar apodreciam
Sem marujos! os mastros desabando
Dormiam sobre o abysmo, sem que ao menos
Uma vaga na quéda alevantassem.
Tinham morrido as vagas! e jaziam
As marés no seu tumulo... antes dellas
A lua que as guiava era já morta!
No estagnado céo murchára o vento;
Esvahiram-se as nuvens. E nas trevas
Era só trevas o universo inteiro
Bahia. 23 de Dezembro.