As Vítimas-Algozes/III/III
Cândida chegara aos onze anos de idade com a perfeita inocência de sua primeira infância; seu espírito cultivado pelos mestres e na leitura de livros escolhidos cautelosamente, enchia-se de luz suave, de idéias serenas e preciosas, dentro porém do recatado horizonte da ciência concedida pelo santo respeito que se deve à idade santa, principalmente em uma menina; seu coração era um altar adornado pelo amor de seus pais e pela feliz influência da companhia de sua ama, simples, boa e religiosa mulher.
Esta excelente base de educação não fora em seu elemento principal fruto de sábio plano de Florêncio da Silva, mas resultado de uma afortunada circunstância: sem dúvida o ensino recebido por Cândida, sob a vigilância protetora de sua mãe, e a prática prudente de não ter sido a menina levada até então aos bailes, e às sociedades sem caráter de reunião limitada a famílias de íntima amizade e confiança, contribuíram não pouco para aquele belo efeito; o essencial, porém, tinha sido a não pensada, não refletida, mas ditosa exclusão de mucama escrava, graças ao amor, à terna dedicação maternal da ama, que extremosa quase ciumenta, tomara para si o cuidado e o serviço da menina que aleitara em seus peitos.
Cândida cresceu sem ter escrava ao pé de si: a ama só a deixava a Leonídia, talvez por que não lha pudesse disputar.
Ditosa, alegre, meiga, expansiva, Cândida nem uma só vez mesmo de relance suspeitara ainda da ignorância que a conservava anjo; até bem poucos meses a ama a despia à noite, e ajudava-a a vestir-se de manhã sem que ela hesitasse passageiramente em um instante de confusão, ou mostrasse de leve a cor do pejo acesa em suas faces. Cândida ainda não tinha a consciência, tinha apenas o instinto do pudor.
Nesse estado de admirável e extasiadora candura, tendo perdido sua ama, a menina recebeu em breve o presente da mucama escrava.
E que o não tivesse recebido, e que ainda e sempre pudesse ter consigo a excelente ama, estava perto a idade em que Cândida seria apresentada nos salões e exigida pela sociedade, e ali de todo ou em parte havia de ir desmoronando o edifício de sua educação.
Sabeis por quê?... Porque ainda a mais escrupulosa, a mais digna e verdadeiramente nobre sociedade de país onde se tolera o serviço escravo, ressente-se por força da infecção terrível e inevitável dessa peste que se chama escravidão.