As Victimas-Algozes/I/I

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I

SIMEÃO — O CRIOULO

I

No interior e principalmente longe da villa, ou da freguezia e dos povoados ha quasi sempre uma venda perto da fazenda: é a parasita que se apéga á arvore, peior que isso, é a inimiga hypocrita que rende vassalagem á sua victima.

A venda de que fallo é uma taberna especialissima que não poderia existir, manter-se, medrar em outras condições locaes, e em outras condições do trabalho rural e nem se confunde com a taberna regular que em toda parte se encontra, quanto mais com as cazas de grande ou pequeno commercio, onde os lavradores ricos e pobres se provém do que precisa a caza, quando não lhes é possivel esperar pelas remessas dos seus consignatarios ou freguezes.

Essa parasita das fazendas e estabelecimentos agrícolas das visinhanças facilmente se póde conhecer por suas feições e modos característicos, se nos é licito dizer assim: uma se parece com todas e não ha hypothese em que alguma dellas por mais dissimulada que seja, chegue á perder o caracter da familia.

É uma pequena casa de taipa e coberta de telha, tendo as vezes na frente varanda aberta pelos tres lados, tambem coberta de telha e com o tecto sostido por esteios fortes, mas rudes e ainda mesmo tortos: as paredes nem sempre são caiadas, o chão não tem assoalho nem ladrilho: quando ha varanda, abrem-se para ella uma porta e uma janella: dentro está a venda: entre a porta e a janella encostado á parede um banco de páo, defronte um balcão tosco e no bojo ou no espaço que se vê além, grotesca armação de taboas contendo garrafas, botijas, latas de tabaco em pó, á um canto algumas voltas de fumo em rolo e uma ruim manta de carne secca. Eis a venda.

Ha muitas que nem chegam á opulencia da que ahi fica descripta; em todas porém apparece humilde no fundo do quasi vasio bojo a porta baixa que communica pelo corredor immundo com dous ou mais quartos escuros, onde se recolhem as pingues colheitas agrícolas do vendelhão que aliás não tem lavoura.

A venda é pouco frequentada á luz do sol nos dias de serviço; nunca porém ou raramente se acha solitária: ainda nesses mesmos dias de santo dever do trabalho, homens ociosos, vadios e turbulentos jogam ao balcão com um baralho de cartas machucadas, enegrecidas e como oleosas desde a manhã até o fim da tarde e é milagre faltar algum incansável tocador de viola; mas apenas chega a noute, começa a concurrencia e ferve o negocio.

Explorador das trevas protectoras dos vicios e do crime, o vendelhão baixo, ignobil, sem consciência, paga com abuso duplo e escandaloso á garrafas de aguardente, á rolos de fumo, e á chorados vintens o café, o assucar e os cereaes que os escravos furtam aos senhores, e complice no furto effectuado pelos escravos, é ladrão por sua vez, roubando á estes nas medidas e no preço dos generos.

A venda não dorme: ás horas mortas da noute vem os quilombolas, os escravos fugidos e acoutados nas florestas trazer o tributo de suas depredações nas roças visinhas ou distantes ao vendelhão que apura nellas sogunda colheita do que não semeou e que tem sempre de reserva para os quilombolas recursos de alimentação de que elles não podem prescindir, e tambem não raras vezes a polvora e o chumbo para a resistencia nos casos de ataque aos quilombos.

E o vendelhão é em regra a vigilância protectora do quilombola e o seu espião dissimulado que tem interesse em contrariar a policia, ou as diligencias dos senhores no encalço dos escravos fugidos.

Despresivol e nociva durante o dia a venda é esqualida, medonha, criminosa e atroz durante a noute: os escravos que ahi então se reunem, embebedam-se, espancam-se, tornando-se muitos incapazes de trabalhar na manhã seguinte; misturam as rixas e as pancadas com a conversação mais indecente sobre o caracter e a vida de seus senhores, cuja reputação é ultrajada ao som de gargalhadas selvagens: inspirados pelo odio, pelo horror, pelos soffrimentos inseparáveis da escravidão, se expandem em calumnias terriveis que ás vezes chegam até a honra das esposas e das filhas dos senhores; atiçam a raiva que todos elles tem dos feitores, contando historias lugubres de castigos exagerados e de cruelissimas vinganças, á cuja idéa se habituam; em sua credulidade estupida e illimitada esses desgraçados escutam boqui-abertos a relação dos prodigios do feitiço, e se emprazam para as reuniões nocturnas dos feiticeiros; e uns finalmente aprendem com outros mais sabidos á conhecer plantas maleficas, raizes venenosas que produzem a loucura ou dão a morte, e tudo isto e muito mais ainda de envolta com a embriaguez, com a desordem, com o quadro da abjecção e do desavergonhamento já natural nas palavras, nas arções, nos gozos do escravo.

Aos domingos e nos dias santificados a venda tem centuplicadas as suas glorias nefandas, aproveita a luz e as trevas, o dia e a noute, e por isso mesmo cada lavrador conta de menos na roça e demais na enfermaria alguns escravos na manhã do dia que se segue.

De ordinario, pelo menos muitas vezes, é nessas reuniões, é nesse fóco de peste moral que se premeditam e planejam os crimes que ensanguentam e alvoroçam as fazendas. Na hypothese de uma insurreição de escravos a venda nunca seria alheia ao tremendo acontecimento.

Todavia tolera-se a venda: o governo não póde ignorar, a policia local sabe, os fazendeiros e lavradores conhecem e sentem que essa espelunca ignobil é fonte de vicios e de crimes, manancial turvo e hediondo de profunda corrupção, constante ameaça á propriedade, patibulo da reputação, e em certos casos forja de arma assassina; porque é e será sempre o ponto de ajuntamento de escravos onde se conspire ou se inicie a conspiração; e ainda assim a venda subsiste e não ha força capaz de anniquilal-a.

Porque?....

É que se prohibissem a venda, de que trato, se lhe fechassem a porta, se lhe destruissem o tecto, ella renasceria com outro nome. e, como quer que fosse, e, onde quer que fosse, havia de manter-se, embora dissimulada, e abusivamente.

A logica é implacavel.

Não é possivel que haja escravos sem todas as consequencias escandalosas da escravidão: querer a ulcera sem o puz, o cancro sem a podridão é loucura, ou capricho infantil.

Perigosa e repugnante por certo, e ainda assim não das mais formidaveis consequencias da escravidão, a venda de que estou fallando, é inevitavel; porque nasce da vida, das condições, e das exigencias irresistiveis da situação dos escravos.

A venda é o espelho que retrata ao vivo o rosto e o espirito da escravidão.

Se não fosse, se não se chamasse venda, teria outro e mil nomes no patuá do escravo; seria uma casa no deserto, um sitio nas brenhas; estaria na gruta da floresta, em um antro tomado ás feras, mas onde iria sempre o escravo, o quilombola, vender o furto, embriagar-se, ultrajar a honra do senhor e de sua familia, a quem detesta, engolphar-se em vicios, ouvir conselhos envenenados, inflammar-se em odio, e habituar-se á idéa do crime filho da vingança; porque o escravo, por melhor que seja tratado, é, em regra geral pelo facto de ser escravo, sempre e natural e logicamente o primeiro e mais rancoroso inimigo de seu senhor.

O escravo precisa dar expansão á sua raiva, que ferve incessante, e esquecer por momentos ou horas as miserias e os tormentos insondaveis da escravidão; é na venda que elle se expande e esquece; ahi o odio falla licencioso e a aguardente afoga em vapores e no atordoamento a memoria.

Entretanto, a venda é horrivel; é o recinto da assembléa selvagem dos escravos, onde se eleva a tribuna malvada da lascivia feroz, da diffamação nojenta e do crime sem susceptibilidade de remorso; alli a matrona veneranda, a esposa honesta, a donzella-anjo são julgadas e medidas pela bitola da moralidade dos escravos; o aleive é applaudido e sanccionado como verdade provada, e o aleive se lança com as fórmas esqualidas da selvatiqueza que falla com a eloquencia do rancor sublimisado pelo alcool; alli se acendem furias contra os feitores e os senhores; alli se rouba a fazenda e se fazem votos ferozes pela morte daquelles que se detestam, porque, é impossivel negal-o, são oppressores.

E não ha para supprimir a venda, cssa venda fatal, que rouba, desmoralisa, corrompe, calumnia e ás vezes mata, senão um só, um unico meio é supprimir a escravidão.

Não ha; porque a venda está intimamente presa, imprescindivelmente adunada á vida do escravo; sem ella, os suicidios dos escravos espantariam pelas suas proporções.

Onde houver fazendas, haverá por força a venda perversa, ameaçadora, infamissima, como a tenho descripto e a conhecem todos, sem excepção, todos os lavradores.

Não ha rei sem throno, não ha familia sem lar, nem aves sem ninho, nem fera sem antro; o throno, o lar, o ninho, o antro do escravo é, antes da senzala, a venda.

A venda, que vos parece apenas repugnante, corruptora, ladra e infame, é, ainda mais, formidavel e atroz; mas em todos esses attributos digna, legitima filha da escravidão, que a gerou, criou, sustenta, impõe e que ha de mantel-a arraigada á sua existencia.

É um mal absolutamente dependente, porém inseparavel de outro mal; não é causa, é effeito; não é arvore, é fructo de arvore.

Se quizerdes supprimir a venda-inferno, haveis de supprimir primeiro a — escravidão-demonio.

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