Astúcias de namorada/II

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Na véspera desse dia, em que se passara a cena que narramos recebera Lucinda duma sua amiga de colégio a seguinte carta:

Minha querida amiga

Que saudades eu tenho do nosso tempo de colégio! daqueles bons serões que passávamos juntas, quando todas já estavam adormecidas, enquanto nós deixávamos divagar a nossa imaginação por todos os assuntos, por todos os sonhos, por todas as fantasias deste mundo! como eu tenho impressa na memória a tua palavra eloqüente e colorida, e a audácia com que tu, com a superioridade da tua inteligência, julgavas tudo e te arrojavas aos devaneios mais longos, chegando a assustares-me a mim, pobre criança, tímida e frágil, que não ousava seguir-te nos teus vôos, e que ficava, pálida, vendo-te pairar por esses espaços desconhecidos, e contemplando na chama da tua pupila um reflexo do fogo íntimo, que te devorava.

Creio que foi mesmo essa diferença de gênio, que tornou mais forte a nossa ligação. Tu consagraste à pobre órfã a amizade protetora das mães, eu tive por ti a veneração e os extremos de filha. Eras o roble e eu o vime, ou antes a hera que me enroscava a ti.

Mais velha do que eu, saíste primeiro do colégio, e deixaste a pobre criança, isolada no meio de companheiras com as quais sempre me ligara pouco. Ah! como o colégio então me pareceu triste e sombrio, como a regente me pareceu insuportável, como olhei com raiva e frenesi para os altos muros do jardim, e que ódio tive à hora do recreio, outrora tão alegre, porque eu, fugindo às brincadeiras das meninas mais novas, tu às frívolas conversações das da tua idade, procuravam-nos uma à outra, e passávamos horas infinitas a contarmos as nossas impressões, e a explicarmos o sentido dos sonhos da nossa noite..

Depois, os meus dias de júbilo foram aqueles em que recebia as luas cartas: metia-as no seio, e esperava com impaciência a hora de descer ao jardim para as poder ler à vontade, longe do frívolo ruído dos jogos das educandas. Assim que ressoavam na pêndula as bem-aventuradas vibrações, aí descia eu toda jubilosa a escada, e ia esconder-me naquele caramanchão tão nosso favorito, que ficava junto daquela fresta gradeada por onde às vezes espreitávamos os raros passeantes que atravessavam a nossa rua solitária, tu achando sempre no teu espírito fértil um epigrama para arrojares aos pobres homens que passavam sem suspeitarem a rápida análise a que num dado instante ficavam sujeitos, eu rindo, como uma louca, das tuas chistosas malícias.

Aí lia pois, as tuas cartas, daí te seguia nesse mundo que me pintavas tão belo, como o espaço imenso assusta a avezinha apenas emplumada, que lança a cabeça fora do ninho, e que segue em parte com inveja, em parte com receio os graciosos vôos que a mãe descreve nos ares, para a convidar a segui-la. Mas a fascinação do teu espírito vencia, como sempre, os receios do meu, e ficava com a tua carta nas mãos, pensando nos bailes, de que tu eras rainha, nos amores, que voltejavam em torno de ti, como as borboletas em torno da luz, e a que ti, incorrigível coquete, te comprazias tanto em requeimar as asas.

Daí resultou que esperei ansiosa, bem que timidamente, a minha saída do colégio, e que os prismas das tuas cartas me fizeram sonhar um mundo cor de rosa, que está bem longe, devo confessá-lo, da realidade tal como ela se me tem mostrado nos quinze dias que já passei fora do ninho da nossa infância.

Efetivamente minha tia deu a minha educação por acabada, e levou-me para a sua companhia, muito contra vontade, segundo me parece. Não porque ela me não tenha afeto e pelo contrário; mas minha tia, ótima senhora no fundo, tem um terrível sestro; aos cinqüenta anos quer ainda inspirar amor, e combate, com uma energia desesperada, as asserções da sua certidão de batismo. Ora, uma sobrinha de dezenove anos, filha duma sua irmã mais nova, é um terrível documento, que protesta contra os cabelos dum ébano artificial, e contra a rebocada lisura do rosto de minha tia.

Ah! que vida vai ser a minha, se não acho jeito de diminuir a minha idade, e de usar de novo fato curto. Minha tia, que ainda aspira dançar com suficiente ligeireza, e que não deseja entrar no número das suplentes das contradanças, que só se convidam quando falta algum par para fazer a quadrilha completa, não me leva aos bailes, porque são, diz ela, perigosos para as meninas da minha idade, até contigo mesma, perdoa-lhe, minha boa amiga, se não quer relacionar, dando para isso razões frívolas, mas sendo o verdadeiro motivo os teus vinte e cinco anos que não podem ficar bem à amiga de colégio duma menina tão nova como eu devo ser, segundo os meus cálculos.

Aqui vivo, pois, nesta da rua de... mais triste do que no colégio, depois da tua partida, sem chegar uma única vez à janela lendo, bordando, desenhando, ou conversando com o meu piano, enquanto minha tia, preparada, enfeitada e auxiliada por todos os cosméticos imagináveis, passa o tempo à janela, travando cem namoros por dia, e apresentando, da altura do seu quarto no segundo andar, a cuja varanda se coloca de preferência, um rosto juvenil, que ilude um ou outro passeante ocioso, que anda procurando pelas janelas quem lhe aceite as homenagens.

O que me consola um pouco da minha vida insípida é um grande jardim, cheio de sombra e de mistério, de flores e de aromas, onde passo as tardes, e onde muitas vezes me esqueço e me esquecem à noite, ficando eu largas horas cismando ao luar, e deixando-me às vezes surpreender pelos primeiros clarões da alvorada.

Aí tens a vida que eu passo, minha querida Lucinda; não achas que tenho razão para me lembrar com saudades do colégio? Escreve-me tu ao menos, já que minha tia se obstina em me ter reclusa, e em não me permitir a doce consolação de te ver e de te abraçar; escreve-me, porque só as tuas cartas me ajudarão a suportar o fastio desta existência.

Tua boa amiga

Adelaide.

Comparem os leitores o que nesta carta se diz com as indicações dadas a Frederico por Lucinda, e perceberão qual era a travessa idéia da maliciosa rapariga.