Caramuru/VII

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I

Era o tempo em que o sol na vasta esfera
O claro dia com a noite iguala,
E o velho outono, que o calor modera,
De seus pâmpanos tece a verde gala;
E quando todo monte Baco altera,
E os capazes tonéis na adega abala,
Tocava a franca nau do claro Sena
Na deliciosa foz a praia amena.

II

Na grã-Lutécia, capital do estado,
A ligeira falua dava fundo,
E esse orbe na cidade abreviado
Enchia Diogo de um prazer jocundo;
Templos, torres, palácios, casas, prados,
O famoso Ateneu mestre do mundo,
A corte mais augusta, que se avista,
Enche-lhe o coração e assombra a vista.

III

Paraguassu, porém, que jamais vira
Espetáculo igual, suspensa pára:
Nem fala, nem se volta, nem respira,
Imóvel a pestana e fixa a cara
E cheia a fantasia do que admira,
Causa lhe tanto pasmo a visão rara,
Que estúpida parece ter perdido
O discurso, a memória, a voz e o ouvido.

IV

Qual pende o terno infante ao colo da ama,
Se um novo e belo objeto tem presente,
Que nem a doce mãe, que ao peito o chama,
Nem os mimos do pai pasmado sente,
Toda alma no que vê fixo derrama,
E só parece pelo olhar vivente,
Não foi da americana o ar diverso,
Vendo em Paris a suma do universo.

V

Por fama que se ouviu da novidade,
A admirar o espetáculo se ajunta
Curiosa do sucesso a grã-cidade,
E um se admira, outro o conta, algum pergunta.
Cresce o vago rumor sobre a verdade;
E a plebe, que a Diogo acode junta,
Dele e da esposa divulgada tinha
Que era o rei do Brasil e ela a rainha.

VI

E já avistavam do palácio augusto
Em bela perspectiva o régio espaço,
E o átrio vendo de troféus onusto,
Entram do franco rei no excelso paço.
Cinge as portas exército robusto,
Brilhante guarda, de que o invicto braço
Ao lado sempre da real pessoa,
Sustenta as lises e defende a cr’oa.

VII

Era ali cristianíssimo reinante
Entre os franceses o segundo Henrique,
Meta então do germano fulminante,
Que opôs de Carlos às vitórias dique:
Ortodoxo monarca, da fé amante,
Que faz que em toda a França imóvel fique
O antigo culto e religião paterna,
Que invadiu de Calvino a fúria averna.

VIII

Senta se ao régio lado a grã-princesa,
Formosa Lis, que do Arno florentino
Trouxe à França um tesouro de beleza,
E outro maior no engenho peregrino:
Formoso par, que a sábia natureza
Não sem instinto conjugou divino;
Por que, roubando Henrique a dura morte,
Sustente França Catarina a forte.

IX

Ao trono cristianíssimo prostrado,
A régia mão dos dois monarcas beija
O bom Diogo, tendo a esposa ao lado,
E faz que atenta toda a corte esteja;
E, havendo por três vezes humilhado,
A fronte aos reis, que respeitar deseja,
É fama que com gesto reverente
Falara deste modo ao rei potente:

X

"Tendes a vossos pés, Sire, invocando
No trono da grandeza a majestade,
Estes dois peregrinos, que, sulcando
Do poderoso mar a imensidade,
No império, que regeis com sábio mando,
Buscam asilo na real piedade;
E a vós e ao vosso reino se dirigem,
Donde tem Portugal o nome e a origem.

XI

O Brasil, Sire, infunde-me a confiança
Que ali renasça o português império,
Que, estendendo-se ao Cabo da Esperança,
Tem descoberto ao mundo outro hemisfério.
Tempo virá, se o vaticínio o alcança,
Que o cadente esplendor do nome hespério
O século, em que está, recobre de ouro,
E lhe cinja o Brasil mais nobre louro.

XII

E tu, que ao luso reino um germe augusto
No grão-Burgundo a propagar mandaste,
Contempla, ó França heróica, o império justo
Como ramo do teu, que ali plantaste;
E, se o inculto Brasil, se o Cafre adusto
Por teus famosos netos subjugaste,
Admite ao trono do Solar primeiro
Este teu não indigno aventureiro.

XIII

E esta, que ao lado meu teu cetro beija,
Princesa do Brasil, que um tempo fora,
No seio da cristã piedosa Igreja,
Como mãe pia regenera agora.
É bem que a mãe primeira o Brasil veja,
Donde a gente nasceu, que lhe é senhora;
E, quando Lusitânia lhe é rainha,
Tome o Brasil a França por madrinha."

XIV

Disse o herói generoso, e o rei potente,
Recordando os anais de antiga história,
Com vista majestosa, mas clemente,
Deu sinal de agradar-lhe esta memória.
Com sussurro entretanto a áulica gente
Celebra, como própria, a lusa glória;
E, impondo-lhe silêncio alto respeito,
Respondem com os olhos e co peito.

XV

Mongoméry, que serve na assembléia
De intérprete do rei, falou benigno,
Conforme na resposta à justa idéia,
De que o bom Diogo se mostrou tão digno,
Nem vendo a Lísia de conquistas cheia
Lhe inspira o impulso da ambição maligno,
A invejar-lhe já mais troféus tamanhos,
Que em prole sua não reputa estranhos.

XVI

"Ide, disse a rainha, ó par ditoso,
Que o banho santo, donde a culpa amara
Se apague nesse peito generoso,
Comigo a França apadrinhar prepara.
E, quando o sol seu curso luminoso
Três vezes repetir na esfera clara,
Será das nódoas do tartáreo abismo
Lavada a bela dama no batismo."

XVII

Era o dia em que é fama que o homem feito
De terra foi na estátua preciosa,
Em que Deus lhe infundira no seu peito
Do soberano ser cópia formosa.
Dia do nosso rito ao culto eleito
De Simão e Tadeu, quando formosa
Entrou Paraguassu com feliz sorte
No banho santo, rodeando-a a corte.

XVIII

À roda o real clero e grão-Jerarca
Forma em meio à capela a augusta linha;
Entre os pares seguia o bom monarca,
E ao lado da neófita a rainha.
Vê-se cópia de lumes nada parca,
E a turba imensa que das guardas vinha,
E, dando o nome a augusta à nobre dama,
Põe-lhe o seu próprio e Catarina a chama.

XIX

Banhada a formosíssima donzela
No santo Crisma, que os cristãos confirma,
Os desposórios na real capela
Com o valente Diogo amante firma.
Catarina Alves se nomeia a bela,
De quem a glória no troféu se afirma,
Com que a Bahia, que lhe foi senhora,
Noutro tempo, a confessa, e fundadora.

XX

Prepara-se um banquete com grandeza,
Em que a cópia compita coa elegância,
E aos dois consortes se dispõe a mesa
No magnífico paço em régia estância.
Nem se dedigna a Soberana Alteza,
Depois de os regalar com abundância,
De dar rainha e rei, de ouvir curiosos,
Uma audiência privada aos dois esposos.

XXI

"Depois (disse o monarca) que informado
De meus ministros tenho a história ouvido,
Como foste das ondas agitado,
Como da gente bárbara temido,
Sabendo que os sertões tens visitado,
E o centro do Brasil reconhecido,
Quero das terras, dos viventes, plantas,
Que a história contes de províncias tantas."

XXII

"Mandas-me, rei augusto, que te exponha
(Diz cheio de respeito o herói prudente),
E aos olhos teus em um compêndio ponha
A história natural da oculta gente;
Se esperas de mim, Sire, que componha
Exata narração de cópia ingente,
Empresa tanta é, quando obedeça,
Que faz que o tempo falte e a voz faleça.

XXIII

Mil e cinqüenta e seis léguas de costa,
De vales e arvoredos revestida,
Tem a terra brasílica composta
De montes de grandeza desmedida.
Os Guararapes Borborema posta
Sobre as nuvens na cima recrescida,
A serra de Aimorés, que ao pólo é raia,
As de Ibo-ti-catu e Itatiaia.

XXIV

Nos vastos rios e altas alagoas
Alares dentro das terras representa;
Coberto o Grão-Pará de mil canoas,
Tem na espantosa foz léguas oitenta.
Por dezessete se deságua boas
O vasto Maranhão; léguas quarenta
O Jaguaribe dista; outro se engrossa
De S. Francisco, com que o mar se adoça.

XXV

O Sergipe, o real de licor puro,
Que com vinte o sertão regando correm,
Santa Cruz, que no porto entra seguro,
Depois de trinta, que no mar concorrem;
Logo o das Contas, o Taigipe impuro,
Que, abrindo a vasta foz, no oceano morrem.
O Rio Doce, a Cananéia, a Prata,
E outros cinqüenta mais, com que arremata.

XXVI

O mais rico e importante vegetável
É a doce cana, donde o açúcar brota,
Em pouco às nossas canas comparável;
Mas nas do milho proporção se nota:
Com manobra expedita e praticável,
Espremido em moenda, o suco bota,
Que acaso a antiguidade imaginava,
Quando o néctar e ambrósia celebrava.

XXVII

Outra planta de muitos desejada,
Por fragrância que o olfato ativa sente,
Erva santa dos nossos foi chamada,
Mas tabaco depois da espana gente,
Pelo franco Nicot manipulada,
Expele a bile, e o cérebro cadente
Socorre em modo tal, que em quem o tome
Parece o impulso de o tomar que é fome.

XXVIII

É sustento comum raiz presada,
Donde se extrai com arte útil farinha,
Que, saudável ao corpo, ao gosto agrada,
E por delícia dos Brasis se tinha.
Depois que em bolandeiras foi ralada,
No Tapiti se espreme e se convinha;
Fazem a puba então e a tapioca,
Que é todo o mimo e flor da mandioca.

XXIX

Chama o agricultor raiz gostosa
Aipi por nome, e em gosto se parece
Com a mole castanha saborosa,
De que tira o país vário interesse,
Ótimo arroz em cópia prodigiosa
Sem cultura nos campos aparece,
No Pará, Cuiabá, por modo feito,
Que iguala na bondade o mais perfeito.

XXX

Ervilha, feijão, favas, milho e trigo,
Tudo a terra produz, se se transplanta;
Fruta também, o pomo, a pera, o figo
Com bífera colheita e em cópia tanta,
Que mais que no país que o dera antigo
No Brasil frutifica qualquer planta;
Assim nos deu a Pérsia e Líbia ardente
Os que a nós transplantamos de outra gente.

XXXI

Nas comestíveis ervas, é louvada
O quiabo, o jiló, os maxixeres,
A maniçoba peitoral presada,
A taioba agradável nos comeres,
O palmito de folha delicada,
E outras mil ervas, que, se usar quiseres,
Acharás na opulenta natureza
Sempre com mimo preparada a mesa.

XXXII

Sensível chama-se erva pudibunda,
Que, quando a mão chegando, alguém lhe ponha,
Parece que do tato se confunda
E que fuja o que o toca por vergonha.
Nem torna a si da confusão profunda,
Quando ausente o agressor se lhe não ponha,
Documento à alma casta, que lhe indica
Que quem cauta não foi nunca é pudica.

XXXIII

De ervas medicinais cópia tão rara
Tem no mato o Brasil e na campina,
Que quem toda a virtude lhe explorara
Por demais recorrera a Medicina.
Nasce a gelapa ali, a sene amara,
O filopódio, a malva, o pau da China,
A caroba, a capeba, e mil que agora
Conhece a bruta gente e a nossa ignora.

XXXIV

Tem mimosos legumes, que não cedem
Aos que usamos na Europa mais presados:
Gingibre, gergelim, que os mais excedem,
Mendubim, mangaló, que usam guisados;
Alguns medicinais, com que despedem
Do peito estilicídios radicados;
Tem o cará, o inhame, e em cópia grata
Mangarás, mangaritos e batata.

XXXV

Das flores naturais pelo ar brilhante
É com causa entre as mais rainha a rosa,
Branca saindo a aurora rutilante,
E ao meio-dia tinta em cor lustrosa;
Porém, crescendo a chama rutilante,
É purpúrea de tarde a cor formosa;
Maravilha que a Clície competira,
Vendo que muda a cor, quando o sol gira.

XXXVI

Outra engraçada flor, que em ramos pende
(Chamam de S. João), por bela passa
Mais que quantas o prado ali comprende,
Seja na bela cor, seja na graça:
Entre a copada rama, que se estende
Em vistosa aparência, a flor se enlaça
Dando a ver por diante e nas espaldas
Cachos de ouro com verdes esmeraldas.

XXXVII

Nem tu me esquecerás, flor admirada.
Em quem não sei se a graça, se a natura
Fez da Paixão do Redentor Sagrada
Uma formosa e natural pintura;
Pende com pomos mil sobre a latada,
Áureos na cor, redondos na figura,
O âmago fresco, doce e rubicundo,
Que o sangue indica que salvara o mundo.

XXXVIII

Com densa cópia a folha se derrama,
Que muito à vulgar hera é parecida,
Entressachando pela verde rama
Mil quadros da Paixão de Autor da vida;
Milagre natural, que a mente chama
Com impulsos da graça, que a convida,
A pintar sobre a flor aos nossos olhos
A cruz de Cristo, as chagas e os abrolhos.

XXXIX

É na forma redonda, qual diadema,
De pontas, como espinhos, rodeada,
A coluna no meio, e um claro emblema
Das chagas santas e da cruz sagrada;
Vêem-se os três cravos e na parte extrema
Com arte a cruel lança figurada;
A cor é branca, mas de um roxo exangue,
Salpicada recorda o pio sangue.

XL

Prodígio raro, estranha maravilha,
Com que tanto mistério se retrata!
Onde em meio das trevas a fé brilha,
Que tanto desconhece a gente ingrata!
Assim, do lado seu nascendo filha
A humana espécie, Deus piedoso trata,
E faz que quando a graça em si despreza,
Lhe pregue co esta flor a natureza.

XLI

Outras flores suaves e admiráveis
Bordam com vária cor campinas belas,
E em vária multidão por agradáveis
A vista encantam, transportada em vê-las;
Jasmins vermelhos há, que inumeráveis
Cobrem paredes, tetos e janelas;
E, sendo por miúdos mal distintos,
Entretecem purpúreos labirintos.

XLII

As açucenas são talvez fragrantes,
Como as nossas na folha organizadas;
Algumas no candor lustram brilhantes,
Outras na cor reluzem nacaradas.
Os bredos namorados rutilantes,
As flores de courana celebradas,
E outras sem conto pelo prado imenso,
Que deixam quem as vê como suspenso.

XLIII

Das frutas do país a mais louvada
É o régio ananás, fruta tão boa,
Que a mesma natureza namorada
Quis como a rei cingi-la da coroa.
Tão grato cheiro dá, que uma talhada
Surprende o olfato de qualquer pessoa;
Que, a não ter do ananás distinto aviso,
Fragrância a cuidará do Paraíso.

XLIV

As fragrantes pitombas delicadas
São como gemas de ovos na figura;
As pitangas com cores golpeadas
Dão refrigério na febril secura;
As formosas goiabas nacaradas,
As bananas famosas na doçura,
Fruta, que em cachos pende e cuida a gente
Que fora o figo da cruel serpente.

XLV

Distingue-se entre as mais na forma e gosto
Pendente de alto ramo o coco duro,
Que em grande casca no exterior composto,
Enche o vaso interior de um licor puro;
Licor que, à competência sendo posto,
Do antigo néctar fora o nome escuro;
Dentro tem carne branca como a amêndoa,
Que a alguns enfermos foi vital, comendo-a.

XLVI

Não são menos que as outras saborosas
As várias frutas do Brasil campestres:
Com gala de ouro e púrpura vistosas,
Brilha a mangaba e os mocuiés silvestres;
Os mamões, morieis, e outras famosas,
De que os rudes cabelos foram mestres,
Que ensinaram os nomes, que, se estilam,
Janipo e caju vinhos distilam.

XLVII

Nas preciosas árvores se conta
O cacau, droga em Espanha tão comua,
Pouco na altura mais que arbusto monta,
E rende novo fruto em cada lua;
A baunilha nos cipós desponta,
Que tem no chocolate a parte sua,
Nasce em bainhas, como paus de lacre,
De um suco oleoso, grato o cheiro e acre.

XLVIII

Ótimo anil de planta pequenina
Entre as brenhas incultas se recolhe;
Tece-se a roupa do algodão mais fina,
Que em cópia abundantíssima se colhe;
Que, se a abundância à indústria se combina,
Cessando a inércia, que mil lucros tolhe,
Houvera no algodão, que ali se topa,
Roupa com que vestir-se toda a Europa.

XLIX

O uruçu, fruta de árvore pequena,
Como lima, em pirâmide elevada,
De que um extrato a diligência ordena,
Que a escarlata produz mais nacarada;
De imortal tronco a tarajaba amena
Rende a áurea cor dos belgas desejada,
O pau brasil, de que o engenhoso norte
Costuma extrair cor de toda a sorte.

L

Há de bálsamos árvores copadas,
Que por léguas e léguas se dilatam;
Folhas cinzentas, como a murta, obradas,
E em grato aroma os troncos se desatam,
Se neles pelas luas são sangradas;
E uso vário fazendo os que contratam,
Lavram remédios mil e obras lustrosas,
Contas de cheiro e caixas preciosas.

LI

A copaíba em curas aplaudida,
Que a médica ciência estima tanto,
A bicuíba no óleo conhecida,
A almécega, que se usa no quebranto;
A preciosa madeira apetecida,
Que o nome nos merece de pau-santo,
O salsafraz cheiroso, de que as praças
Se vêem cobertas com formosas taças.

LII

Quais ricas vegetáveis ametistas,
As águas do violete em vária casta,
O áureo pequiá com claras vistas,
Que noutros lenhos por matiz se engasta;
O vinhático pau, que quando avistas
Massa de ouro parece extensa e vasta;
O duro pau que ao ferro competira,
O angelim, tataipeva, o supopira.

LIII

Troncos vários em cor e qualidade,
Que inteiriças nos fazem as canoas,
Dando a grossura tal capacidade,
Que andam remos quarenta e cem pessoas.
E há por todo o Brasil em quantidade
Madeiras para fábricas tão boas,
Que, trazendo-as ao mar por vastos rios,
Pode encher toda a Europa de navios.

LIV

Nutre a vasta região raros viventes
Em número sem conta e em natureza
Dos nossos animais tão diferentes,
Que enchem a vista da maior surpresa.
Os que têm mais comuns as nossas gentes
Ignora esta porção de redondeza:
O boi, cavalo, a ovelha, a cabra e o cão;
Mas, levados ali, sem conta são.

LV

Todo o animal é fero ali, levado
Donde tinha o seu pasto competente;
Nem era lugar próprio ao nosso gado,
Que fora o bruto manso e fera a gente.
Como entre nós é o tigre arrebatado,
Cruel a onça, o javali fremente,
Feras as antas são americanas,
E próprias do Brasil as suraranas.

LVI

Vêem-se cobras terríveis, monstruosas,
Que afugentam coa vista a gente fraca;
As jibóias, que cingem volumosas
Na cauda um touro, quando o dente o ataca;
Voa entre outras com forças horrorosas,
Batendo a aguda cauda a jararaca,
Com veneno, a quem fere tão presente,
Que logo em convulsão morrer se sente.

LVII

Entre outros bichos de que o bosque abunda,
Vê-se o espelho da gente, que é remissa,
No animal torpe de figura imunda,
A que o nome pusemos da preguiça:
Mostra no aspecto a lentidão profunda,
E, quando mais se bate e mais se atiça,
Conserva o tardo impulso por tal modo,
Que em poucos passos mete um dia todo.

LVIII

Vê-se o cameleão, que não se observa
Que tenha, como os mais, por alimento
Ou folha, ou fruto, ou nota carne, ou erva,
Donde a plebe afirmou que pasta em vento;
Mas sendo certo que o ambiente ferva
De infinitos insetos, por sustento
Creio bem que se nutra na campanha
De quantos deles, respirando, apanha.

LIX

Gira o sareué, como pirata,
Da criação doméstica inimigo;
À canção da guariba sempre ingrata
Responde o guassinim, que o segue amigo.
Da vária caça, que o cabelo mata,
A narração por longa não prossigo,
Veados, capivaras e coatias,
Pacas, teus, periás, tatus, cotias.

LX

O mono, que a espessura habita astuto,
De um ramo noutro buliçoso salta,
E para não se crer que nasceu bruto,
Parece que o falar somente falta;
O riso imita, e contrafaz o luto,
E a tanto sobre os mais o instinto exalta,
Que onde a espécie brutal chegar lhe veda
Tem arte natural com que o arremeda.

LXI

Entre as voláteis caças mais mimosa,
A zabelé, que os francolins imita.
É de carne suave e deliciosa,
Que ao tapuia voraz a gula incita.
Logo a enha-popé, carne preciosa,
De que a titela mais o gosto irrita;
Pombas verás também nesses países,
Que em sabor, forma e gosto são perdizes.

LXII

Juritis, pararis, tenras e gordas,
A hiraponga no gosto regalada,
As marrecas, que ao rio enchem as bordas,
As jacutingas, e a aracã presada.
E, se do lago na ribeira abordas
De galeirões e patos habitada,
Verás, correndo as águas na canoa,
A turba aquátil que, nadando, voa.

LXIII

Negou às aves do ar a natureza,
Na maior parte a música harmonia;
Mas compensa-se a vista na beleza
Do que pode faltar na melodia:
A pena no tucano mais se presa,
Que feita de ouro fino se diria,
Os guarazes pelo ostro tão luzidos,
Que parecem de púrpura vestidos.

LXIV

Vão pelo ar loquazes papagaios,
Como nuvens voando em copia ingente,
Iguais na formosura aos verdes Maios,
Proferindo palavras como a gente.
Os periquitos com iguais ensaios.
O canindé, qual Íris reluzente;
Mas falam menos, da pronúncia avaras,
Gritando, as formosíssimas araras .

LXV

Como melros, são negros os bicudos,
Mais destros e agradáveis no seu canto;
Na terra os sabiás sempre são mudos,
Mas junto d'água têm a voz que encanto.
Os coleirinhos no entoar agudos,
As patativas, que o saudoso pranto
Imitam requebrando com sons vários,
Os colibris e harmônicos canários.

LXVI

Das espécies marítimas de preço
Temos pérolas nestas preciosas;
Nem melhores aljôfares conheço
Que os das ostras brasílicas famosas;
Âmbar gris do melhor, mais denso e espesso,
Nas costas do Ceará se vê espaçosas,
Madrepérolas, conchas delicadas,
Umas parecem de ouro, outras prateadas.

LXVII

Piscoso o mar de peixes mais mimosos,
Entre nós conhecidos rico abunda,
Linguados, sáveis, meros preciosos,
A agulha, de que o mar todo se inunda,
Robalos, salmonetes deliciosos,
O xerne, o voador, que na água afunda,
Pescadas, galo, arraias, e tainhas,
Carapaus, encharrocos e sardinhas.

LXVIII

Outros peixes, que próprios são do clima,
Berupiras, vermelhos, e o garopa,
Pâmpanos, corimas, que o vulgo estima,
Os dourados, que presa a nossa Europa,
Carepebas, parus, nem desestima
A grande cópia, que nos mares topa,
A multidão vulgar do charéu vasto,
Que às pobres gentes subministra o pasto.

LXIX

De junho a outubro para o mar se alarga,
Qual gigante marítimo, a baleia,
Que palmos vinte seis conta de larga,
Setenta de comprido, horrenda e feia;
Oprime as águas com a horrível carga,
E de oleosa gordura em roda cheia,
Convida o pescador que ao mar se deite,
Por fazer, derretendo-a, útil azeite.

LXX

Tem por espinhas ossos desmarcados,
O ferro as duras peles representam,
Donde pendem mil buzios apegados,
Que de quanto lhe chupam se sustentam;
Não parecem da fronte separados
Os vastos corpos que na areia assentam.
Entre os olhos medonhos se ergue a tromba,
Que ondas vomita como aquátil bomba.

LXXI

Na boca horrível, como vasta gruta,
Doze palmos comprida a língua pende.
Sem dentes, mas da boca imensa e bruta
Barbatanas quarenta ao longo estende.
Com elas para o estomago transmuta
Quanto por alimento nágua prende,
O peixe ou talvez carne, e do elemento
A fez imunda, que lhe dá sustento.

LXXII

Duas asas nos ombros tem por braços,
Que aos lados vinte palmos se difundem,
Com asa e cauda os líquidos espaços
Batendo remam, quando o mar confundem;
E excitando no pélago fracassos,
Chorros de água nas naus de longe infundem.
E, andando o monstro sobre o mar boiante,
Crê que é ilha o inexperto navegante.

LXXIII

Brilha o materno amor no monstro horrendo,
Que, vendo prevenida a gente armada,
Matar se deixa nágua combatendo,
Por dar fuga, morrendo, à prole amada.
Onde no filho o arpão caçam metendo,
Com que atraindo a mãe dentro à enseada
Desde a longa canoa se alenceia,
Ao lado de seus filho a baleia.

LXXIV

Sobre a costa o marisco apetecido
No arrecife se colhe e nas ribeiras,
As lagostas, e o polvo retorcido,
Os lagostins, santolas, sapateiras,
Ostras famosas, camarão crescido,
Caranguejos também de mil maneiras,
Por entre os mangues, donde o tino perde
A humana vista em labirinto verde."