Carta de guia de casados/Avisos

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XLV


Avisos


Entre os conselhos tocantes às virtudes do ânimo, que vàriamente tenho apontado a v. m., convém fazer-lhe presente de alguns avisos concernentes ao bom govêrno de sua casa : cousa que por outro nome mais elegante chamam os filósofos virtude económica, segunda parte da sciência civil, que também é segunda parte da filosofia moral. Isto enfim não é outra cousa que a indústria, e prudência com que o cidadão, o fidalgo, o grande, e também o pequeno, governam sua família ; que no príncipe é arte política, ou matéria de estado ; chamem-lhe os filósofos como lhe chamarem.

Êsse capitão romano, que tinha para si saberia bem dispôr uma batalha aquele que bem sabia dispôr um banquete, dissera melhor quando afirmasse saberia bem governar uma rèpública, quem sabia bem governar sua casa ; pois é certo que a cidade é uma família grande, e a família uma cidade pequena.

Aconteceu-me um dia (e porque o conto com tôda a verdade, era uma véspera de Reis) ir a visitar um fidalgo meu amigo, que por morar longe da minha pousada , e serem dias de inverno, cuidei que o não achasse já em casa. Era mancebo, e notados de pouco govêrno, êle, e sua mulher. Cheguei enfim à sua porta, e mandando saber se estava em modo de receber minha visita, enquanto lidava nesta averiguação um pagem (batendo em vão a muitas portas) ouvi eu muito bem lá de dentro uma voz que dizia : Fulano, ide a casa do cura, e perguntai-lhe da parte do snr. D. Fulano, se é hoje dia de peixe, ou de carne. Se disser que de peixe, trazei-o da ribeira ; se disser que de carne, trazei-a do açougue ; ide de-pressa, para que se faça de jantar. Era isto, quando menos, de uma para as duas horas. Veja v. m. que tal seria para os servos o govêrno daquela casa, quando para os senhores dela era desta maneira.

Não são numeráveis os descontos, que causa um senhor frouxo. Vulgar, mas certíssima, sentença é aquela, de que então doem todos os membros, quando a cabeça está doente. Conheci um homem de grande qualidade, e juízo, em tanta maneira remisso, que mandava pedir a um seu amigo viesse a pelejar com os seus criados e obrigá-los a que o servissem.

Ora êstes excessos contam-se como monstruosidade ; e não poucas vezes convém trazê-los à memória para os aborrecer.

Tôda a governança de uma casa, eu reduzo a dous pontos : Pão, e pano ; ou prato, e trato, regra, que muitos dias há que sabe a prudência. Pelo pão, ou prato, podemos entender todos os bens, e cómodos das portas adentro. Pelo pano, ou trato, entenderemos todos os bens, e cómodos das portas afóra. Alguma cousa disto toquei nos avisos passados ; menos porém do necessário.

Mas especializando de novo esta matéria, convém que o senhor da casa procure que sua família ande acomodada, e lustrosa, segundo seu estado, desvelando-se, e buscando os efeitos para a conservar inteira em ambas estas qualidades. O cómodo do pão, porque se denota o mantimento ordinário, deve com grande providência ser provida, para que a casa seja abundante, e que nela com ordem, e sem miséria se reparta. Pouco importará que de fóra se tragam a casa os meios que a podem fazer abastecida, se nela se vive em proluxa abstinência. Muito pior levam os criados a abundância miserável, que a pobreza liberal.

Outros, com o escritório bem provido, pagam mal, vestem pior. Não me ponho da parte da fortuna, que muitas vezes faz que os amos que menos bem tratam seus servos, sejam os mais bem servidos ; advogo pela razão, que obriga, desengana, e manda a quem quere ter bons criados, que lhe queira ser bom senhor. Aquele, que de seus criados espera adivinhem seus pensamentos, adivinhe também suas necessidades.

Tenho por regra geral muito conveniente, que o prato da família seja mais copioso que curioso ; e o trato mais curioso que custoso. Comer a horas, vestir a tempo. Dizia um grande senhor, por outro de muito menos estado, mas de grande concêrto, que nunca desejára cousa como ser criado de fulano ; porque assim os tratava, e conservava inteiros, que não só não envelheciam jàmais nos vestidos, mas que nem na idade.

Pague bem ; isto é, a tempo. Aos criados o que lhes prometeu ; aos oficiais o que valer seu trabalho. Será bem servido de uns, e outros. O prémio deve seguir ao serviço, para que o serviço acuda à necessidade. Quem paga logo, paga com menos ; porque se o dar logo, é dar duas vezes, verdadeiramente se estima em muito mais do que é. Quem paga tarde, tem já os ânimos tam desabridos, que com outro tanto mais do que deve os não deixa satisfeitos. Perguntavam a um criado, a quem servia ? e respondia que a um filho seu ; e tornando-lhe a perguntar que dizia nisto ? respondeu : Sirvo a meu herdeiro. Por semelhante razão disse um discreto, andava errado o provérbio de que quem bem paga é herdeiro do alheio, porque muito mais certo é ser herdeiro do alheio, aquele que o alheio não paga.