Carta de guia de casados/Conclusão

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CONCLUSÃO


Ora, Senhor N., quando comecei a escrever a v. m. foi com ânimo de não passar de uma carta ; e acho me agora com um processo escrito. Eu de meu natural sou miúdo, e proluxo ; o estar só, e a melancolia, que de si é cuidadosa, me fizeram armar tam largas rêdes, para colhêr dentro delas todos os casos, e todos os avisos. Praza a Deus que nos não hajamos cansado debalde ; como seria, se no cabo de v. m. haver ouvido muito, e de haver eu dito multo, daqui não tirássemos algum proveito.

Rematarei com as generalidades que, a meu parecer, avultam bem a grandeza das casas ; isto como conclusão do muito que nestes pontos havia que dizer.

Ben vejo eu que se chegar e ser lido de alguma casada, ou casado (e mais ainda dos que estiverem para o ser) acharão medonho êste caminho, por onde pretendo guiá-los à prometida casa do descanso. Porque dirão êles o estão vendo cheio de abrolhos, e cautelas, que apenas parece poderá passá-lo a consideração, quanto mais a obra.

Dir-lhe hei a tôdas, que nesta carta sucede o que nas cartas de marear, que quem as vir assim cruzadas de linhas, e riscos, que se comem uns aos outros, parece que de tal confusão não pode haver quem se desempece ; e na verdade não é assim ; porque aqueles linhas tôdas são umas próprias, e apenas passam de quatro principais ; mas para fazer mais fácil o nosso uso, se multiplicam.

Quem com bom juízo considerar esta máquina de cousas, as verá tam semelhantes, atadas, e dependentes umas de outras, que não lhe parecerão muitas, mas uma só. E porque, como vêmos, a corda de poucos fios se quebra fàcilmente, se com ela apertam muito ; por isso é necessário tecer e torcer de muitos avisos, e remédios esta corda, de que está pendurada a honra, vida, e salvação dos casados ; porque com as fôrças do vício se nos não rompa. E como tôdas elas costumam quebrar pelo mais fraco, e esta fraqueza é própria da mulher ; por essa mesma razão convêm fortificá-la de sorte, com tanta cautela, e arte, que por mais que tire a ocasião, sempre se conserve sã, e inteira.

Mas se contudo parecer às mulheres excessivamente rigorosa esta minha doutrina, certifico-lhes que meu ânimo não foi êsse, senão encaminhar tudo à sua estimação, regalo, e serviço.

E porque assim se veja mais certamente, haja quem queira de mim outra carta para as casadas ; e então se verá quam bem advogo por sua parte, quando pelo que aos maridos deixo dito as mulheres se não dêem por satisfeitas.

Senhor meu. Casa limpa. Mesa asseada. Prato honesto. Servir quedo. Criados bons. Um que mande. Paga certa. Escravos poucos. Côche a ponto. Cavalo gordo. Prata muita. Ouro o menos. Jóias que se não peçam. Dinheiro o que se possa. Alfaias tôdas. Armações muitas. Pinturas as melhores. Livros alguns. Armas que não faltem. Casas próprias. Quinta pequena. Missa em casa. Esmola sempre. Poucos vizinhos. Filhos sem mimo. Ordem em tudo. Mulher honrada. Marido cristão ; é bôa vida, e bôa morte.

Tôrre Vélha, em 5 de março de 1650.

D. Francisco Manuel.