Carta de guia de casados/Govêrno doméstico

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XII


Govêrno doméstico


Disse que seria bom ocupar a mulher no govêrno doméstico ; e é bom, e é necessário, não só para que ela viva ocupada, senão para que o marido tenha menos êsse trabalho.

Cousas tão miúdas não é bem que pejem o pensamento de um homem ; e para os da mulher são muito convenientes. Pergunto : ¿ Não se rira v. m. se vira ir um elefante carregado com um grão de trigo na tromba ? Sim, por certo ; e logo louvára a Deus se o visse levar no bico a uma formiga. Diz bem por isso o rifão : Do homem a praça, da mulher a casa. Os maridos que em tudo querem mandar, são dignos de repreensão, igualmente aos que não querem mandar em nada.

Enfim, snr. N., fique assentado, que o gasto ordinário convém que se entregue à mulher pela contentar, pela ocupar, pela confiar, por lhe dar aqueles cuidados, por lhe desviar outros.

Se o faz como é razão, ¿ que maior ventura ? Fará conta o marido que achou um criado tam bom como êle, e tam fiel, que o serve de graça. Se o faz menos bem, ainda é mal bem tolerável. ¿ Quanto melhor será que o desaproveite a mulher que não o criado ? Que ela sempre errará contra sua vontade, ou pelo menos com vergonha ; e o criado pode ser que muito por sua vontade, e sem nenhum pejo, desacerte.

As casas da gente ordinária soem ser melhor governadas ; porque infalivelmente guardam esta regra : um traz, outro aproveita.

Dissera eu que à mulher se entregasse uma tal porção de dinheiro, que pouco excedesse o gusto quotidiano. Não por exercitar com ela alguma avareza ; porém, porque tenho por sem dúvida não convém as mulheres demasiado cabedal. Costumam gastar sem ordem aquelas que sem ordem recebem.

Diga-lhe o marido, que êle se oferece para seu escritório, que acuda a êle quando lhe falta o dinheiro, como pudera a uma gaveta de seus contadores ; e faça-lho assim certo. Leve-a pela vaidade de grande govêrno ; mostre espantar-se do muito a que chega sua indústria. Não se vê o bom alfaiate onde há muito pano, nem o bom cocheiro nas ruas largas. Eu fico que se a mulher é gloriosa, para o seguinte mês, gaste um têrço menos.

Para que lhe não seja molesto o pedir-lhe contas, dê-lhe contas seu marido daquilo que gasta, e corre por sua conta. Mostrar-lhes confiança as obriga a que façam o mesmo.

Estas contas de fazenda entre casados, não seria eu de parecer que jàmais se ajustassem, nem levassem ao cabo ; seja só reconhecimento, que na mulher haja ao marido. Tira-se daqui uma grande conveniência ; a qual é, que a mulher está sempre como que não é senhora disso mesmo que possui. Igualmente convém que gaste a mêdo, e goze a mêdo ; mas jàmais seja despojada do que logra ; porque então agradece, como que lhe deram, aquilo que lhe não tiram.

Agora inventou a cautela outras cautelas contra esta bôa política, ajustando-se logo nos contratos do casamento (especialmente entre pessoas poderosas) os alimentos que hão-de dar os maridos a suas mulheres, durante o matrimónio. A quem o prometeu assim, aconselharei que o satisfaça ; a quem o não prometeu, aconselharei que o não faça.

Não é, a êste propósito, pequeno o inconveniente que há quando se casa com filha herdeira ; as quais com maior razão pretendem ser senhoras do que é seu, e ter na governança de seus bens maior mão que seus maridos ; donde lemos haver algumas discórdias entre o Rei D. Fernando, e D. Isabel. Quando a mulher tal pretendesse, certifique-a seu marido, que quem é senhor da pessoa, e da vida, o é também da fazenda. Quem deu um anel de diamantes em uma caixinha de veludo, que não desse também a caixa, como deu o anel !