Carta de guia de casados/Horas de recolher

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XLI


Horas de recolher


Dias há que me perguntou um fidalgo sisudo, casado de poucos tempos, a que hora seria conveniente se recolhesse à noite para casa. Lembra-me que lhe disse, que essa hora daria o amor, ou ocupação, e não o relógio ; mas êle não satisfeito, fez que discorrêssemos naquele ponto.

A uns parece que se deve recolher o casado sempre a uma hora ; e tal, que possa muito bem antes dela haver negociado o que lhe pode suceder, sem dar sobressalto na tardança. A outros, que não deve ser assim, senão à hora que fôr possível ; porque vindo umas vezes cedo, se mostra que as outras que se tarda, teve a culpa a ocasião, e não a vontade.

Tenho para mim que nada disto é seguro : porque os alicerces da confiança do casado devem-se de lançar no crédito, e não no artifício. Inclino-me mais ao recolher sempre a uma hora justa, e proporcionada com as ocupações, ou de casa, ou de fóra. Sobretudo parece que os casados de pouco devem guardar mais cortesia a suas mulheres, assistindo-lhes com maior cuidado aqueles anos primeiros.

Também nesta obrigação não deixou de haver opiniões bem contrárias ; e tanto, que entre dous esposados de grande juízo ouvimos contar de um, que indo-se a recolher, dissera ao seu estribeiro : Fazei ter prestes àmanhã bem cedo para irmos à caça ; que visita de cada dia não pode ser larga. E de outro, que sendo-lhe perguntado pelo moço que lhe dava de vestir, que vestido queria lhe concertasse para o outro dia, lhe respondeu : Vai-te para casa de teu pai até que te mande vir ; porque primeiro se há-de segar aquele trigo, que ali andam semeando, que eu haja mister vestido. Tais são, e tam várias as opiniões dos homens ; pelo que um entendido dizia : ¿ Sabeis vós porque o corpo é negro ? Porque se vos não pergunta se é negro, ou branco.

Já v. m. tem visto como nestes avisos não sigo alguma ordem, senão aquela, e aquilo, que a memória me vai oferecendo. Creio que longe fica de seu logar (mas em qualquer parte vem a tempo) o amoestar ao casado, que com o mesmo tento que deve falar diante de sua mulher louvando as alheias, deve (e com maior ainda) de gabar a própria diante dos homens.