Casa, não casa/IV

Wikisource, a biblioteca livre

Três dias depois da conversa de Júlio com Luísa, foi esta passar o dia em casa de Isabel, acompanhada de sua mãe.

A mãe de Luísa era de opinião que a filha era o seu retrato vivo, coisa que ninguém acreditava por mais que ela o repetisse. A mãe de Isabel não ousava ir tão longe mas afirmava que, no tempo de sua mocidade, fora ela muito parecida com Isabel. Esta opinião era recebida com incredulidade pelos rapazes e com resistência pelos velhos. Até o major Soares, que fora o primeiro namorado da mãe de Isabel, insinuava que essa opinião devia ser recebida com extrema reserva.

Oxalá porém fossem as duas moças como suas mães eram, dois corações de pomba, que amavam estremecidamente as filhas, e que eram com justiça dois tipos de austeridade conjugal.

As duas velhas entregaram-se às suas conversas e considerações sobre arranjos de casa ou assuntos de pessoas conhecidas, enquanto as duas moças tratavam de modas, músicas, e um pouco de amores.

— Então o teu tenente não volta do Sul? disse Luísa.

— Eu sei! Parece que não.

— Tens saudades dele?

— E terá ele saudades de mim?

— Isso é verdade. Todos esses homens são assim, disse Luísa com convicção; muita festa quando se acham presentes, mas ausentes são temíveis... valem tanto como o nome que se escreve na areia: vem a água e lambe tudo.

— Bravo, Luísa! Estás poeta! exclamou Isabel. Já falas em areias do mar!

— Pois olha, não namoro nenhum poeta nem homem do mar.

— Quem sabe?

— Sei eu.

— É então?...

— Um rapaz que tu conheces!

— Já sei, é o Avelar.

— Deus nos acuda! exclamou Luísa. Um homem vesgo.

— O Rocha?

— O Rocha anda todo caído pela Josefina.

— Sim?

— É uma lástima.

— Nasceram um para o outro.

— Sim, ela é uma moleirona como ele.

As duas moças gastaram assim algum tempo a tasquinhar na pele de pessoas que nós não conhecemos nem precisamos disso, até que voltaram ao assunto capital da conversa.

— Já vejo que não pode adivinhar quem é o meu namorado, disse Luísa.

— Nem você o meu, observou Isabel.

— Bravo! então o tenente...

— O tenente está pagando. É muito natural que as rio-grandenses o tenham encantado. Pois agüente-se...

Enquanto Isabel dizia estas palavras, Luísa ia folheando o álbum de retratos que estava sobre a mesa. Chegando à folha onde sempre vira o seu retrato, a moça estremeceu. Isabel notou-lhe o movimento.

— Que é? disse ela.

— Nada, respondeu Luísa fechando o álbum. Tiraste o meu retrato daqui?

— Ah! exclamou Isabel, isso é uma história singular. O retrato foi passar às mãos de terceira pessoa, a qual afirma que fui eu que lho levei alta noite... Ainda não pude descobrir esse mistério...

Luísa já ouviu de pé estas palavras. Seus olhos, muito abertos, fitaram-se no rosto da amiga.

— Que é? disse esta.

— Sabes bem o que estás dizendo?

— Eu?

— Mas isso foi o que me aconteceu também com o teu retrato... Naturalmente era zombaria comigo e contigo... Essa pessoa...

— Foi o Júlio Simões, o meu namorado...

Aqui devia eu pôr uma linha de pontos para significar o que se não pode pintar, o espanto das duas amigas, as diferentes expressões que tomou a fisionomia de cada uma delas. Não tardaram as explicações; as duas rivais reconheceram que o seu namorado comum era pouco mais ou menos um patife, e que o dever de honra e de coração era tomar dele uma vingança.

— A prova de que ele nos enganava uma à outra, observava Isabel, é que os nossos retratos apareceram lá e foi ele naturalmente quem os tirou.

— Sim, respondeu Luísa, mas é certo que eu sonhei alguma coisa que combina com a cena que ele alega.

— Também eu...

— Sim? Eu sonhei que me haviam falado do namoro dele com você, e que, tirando o retrato do álbum, fora levá-lo à casa dele.

— Não é possível! exclamou Isabel. O meu sonho foi quase assim, ao menos no final. Não me disseram que ele tinha namoro com você; mas eu mesma vi e então fui levar o retrato...

O espanto aqui foi ainda maior que da primeira vez. Nem estavam só espantadas as duas amigas; estavam aterradas. Embalde procuravam explicar a identidade do sonho, e mais que tudo a coincidência dele com a presença dos retratos em casa de Júlio e a narração que este fizera da noturna aventura.

Estavam assim nesta duvidosa e assustadora situação, quando as mães vieram em auxílio delas. As duas moças, estando à janela, ouviram-lhes dizer:

— Pois é verdade, minha rica Srª Anastácia, estou no mesmo caso da senhora. Creio que a minha filha é sonâmbula, como a sua.

— Tenho uma pena com isto!

— E eu então!

— Talvez casando-as...

— Sim, pode ser que banhos de igreja...

Informadas assim as duas moças da explicação do caso, ficaram um tanto abaladas; mas a idéia de Júlio e suas travessuras tomou logo o lugar que lhe competia na conversa das duas rivais.

— Que pelintra! exclamavam as duas moças. Que velhaco! que pérfido!

O coro de maldições foi ainda mais longe. Mas tudo acaba neste mundo, principalmente um coro de maldições; o jantar interrompeu aquele; as duas moças foram de braço dado para a mesa e afogaram as suas mágoas num prato de sopa.