Dicionário de Cultura Básica/Fausto

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FAUSTO (o pacto com o Diabo) → Goethe

Se estiver com lazer num leito de delícias,
não me importa morrer! Assim fico liberto!
(Fausto ao diabo Mefistófeles)

O Doutor Fausto foi uma figura que existiu no mundo real tendo vivido na Alemanha entre 1480 e 1540. Foi qualificado por historiadores como um pseudomédico, humanista, praticante de alquimia e de magia, audacioso aventureiro, milagreiro e charlatão, luxurioso e homossexual. Logo após sua morte, a sua singular personalidade foi envolta por lendas, especialmente as relacionadas com um pacto que o Doutor Fausto teria estabelecido com o Demônio ( → Satã). Já em 1587, saiu publicado O livro de Fausto, a fonte das posteriores obras científicas e literárias sobre esse personagem. Mas foi com o poema dramático de Goethe que a figura de Fausto se tornou mundialmente famosa. O poeta alemão trabalhou a vida inteira nas sucessivas elaborações do protagonista do seu drama, desde a juventude, quando, pela primeira vez, sua fantasia entrou em contacto com a figura lendária de Fausto, até os últimos meses de sua vida, quando ainda tentou retocar a obra já várias vezes publicada. Em 1808, saiu a primeira edição do drama Fausto, posteriormente chamado de Urfaust (O primeiro Fausto) para distingui-lo de O Segundo Fausto, a última obra do poeta, publicada em 1832, um mês antes de sua morte. Em verdade, apesar da homonímia, O Segundo Fausto é um drama bem diferente do primeiro pelo assunto e pelo sentido. O primeiro Fausto é a obra mais conhecida, mais representada e a que melhor encarna os ideais do Sturm und Drang, o manifesto da estética romântica. Desta primeira peça apresentamos um resumo da fábula e uma tentaiva de interpretação, citando alguns trechos da tradução de Sílvio Meira.

. O drama é composto de uma parte introdutória ("Dedicatória", "Prólogo no teatro" e "Prólogo no céu") e de vinte e seis cenários, cada qual com um título, como se fossem pequenos capítulos ("Noite", "Em frente à porta da cidade", "Fausto e Wagner" etc.). No prólogo encontramos o que na poesia épica se chama de "proposição", isto é, a proposta do assunto da obra. O Senhor diz a Mefistófeles que logo o jovem devoto Fausto, pelas suas qualidades intelectuais e espirituais, conseguirá a "Luz Divina", que lhe resolverá todas as dúvidas. O Diabo, então, desafia Deus:

Que queres apostar? Perdê-lo-ás, a ruína
dele será fatal. Se me dás permissão
de levá-lo comigo e de traçar-lhe a sina.

O Senhor aceita o desafio:

Ora seja! Permito a dura experiência!
Vê se afastá-lo tentas da divina origem,
seguro está do rumo a percorrer na vida.

Está feita a aposta entre O Senhor e Mefistófeles. Para vencê-la, o Diabo irá seduzir Fausto na terra, com ele estabelecendo o famoso pacto da troca da alma pelos bens materiais. A trama começa com uma cena, na véspera da Páscoa, num quarto com decoração gótica, onde Fausto, através de um longo solilóquio, se queixa da inutilidade do saber humano:

Estudei com ardor tanta filosofia,
direito e medicina,
e infelizmente até muita teologia;
a tudo investiguei com esforço e disciplina,
e assim me encontro eu, qual pobre tolo, agora,
tão sábio e tão instruído quanto fora outrora!

Como se vê, Goethe retoma o tema bíblico da vanitas vanitatum e o adágio socrático de que o verdadeiro sábio é aquele que tem consciência de não saber nada. É bom salientar também que a característica principal da personagem Fausto apresenta fortes traços de semelhança com a biografia do histórico Fausto e do próprio Goethe. Nos três perfis psicológicos encontramos a ansiosa aplicação ao estudo de matérias biológicas e humanísticas e a conseqüente frustração. Para superar este estado de insatisfação, Fausto decide dedicar-se ao estudo da magia. Invocando ardorosamente a lua cheia, abre o livro de Nostradamus, autor florentino famoso pela sua obra profética Centúrias, escrita ao redor de 1550. Folheando o livro, Fausto descobre o sinal do Gênio do Universo e o sinal do Espírito da Terra. Entusiasmado, sente eflúvios inebriar-lhe o corpo e calorosamente invoca o Espírito, que lhe se torna visível. O diálogo entre Fausto e o Espírito é interrompido pela entrada em cena do discípulo Wagner, que deseja conversar com o mestre e dele receber lições de vida. Fausto reprocha-lhe a interrupção de suas meditações e, ficando outra vez só, sente-se um ser desprezível e é tentado a tomar o veneno contido numa ânfora antiga. Mas o tocar dos sinos anuncia a festa da Ressurreição de Cristo, e coros de anjos, de mulheres e de discípulos entram no seu quarto cantando hinos de aleluia. Numa outra cena, Fausto, de noite, recolhe-se ao seu escritório, seguido de um estranho cachorro. A ele confidencia suas angústias e aspirações. Reflete sobre a passagem do Gênese "No princípio era o Verbo", e corrige Verbo por Inteligência, depois por Força e, enfim, por Ação. Irritado com os latidos do cão, tenta expulsá-lo do seu gabinete, mas o cachorro começa a inchar-se, adquirindo um aspecto monstruoso, transformando-se numa nuvem negra e depois num estudante andarilho, em que se encarna o diabo Mefistófeles. Este assim se define:

Eu sou aquele Gênio que nega e que destrói!
E o faço com razão; a obra da Criação
Caminha com vagar para a destruição.
Seria bem melhor se nada fosse criado.
Por isso, tudo aquilo a que chamas pecado,
ou também "destruição" ou simplesmente "o Mal"
constitui meu elemento eleito e natural.

Segue-se um longo diálogo entre Fausto e Mefistófeles, culminando com o estabelecimento do pacto. Fausto:

Se estiver com lazer num leito de delícias,
não me importa morrer! Assim fico liberto!
Se podes me enganar com coisas deliciosas,
doçuras a sentir, prazeres! alegria!
Se podes me encantar com coisas saborosas,
que seja para mim o meu último dia!
Quero firmar o acordo.

Continua o diálogo entre os dois. Batem à porta. Fausto sai, após ter emprestado sua longa beca a Mefistófeles. Entra um estudante que, pensando Mefistófeles ser Fausto, pede conselhos sobre a profissão a seguir. O diabo descarta o direito, a filosofia e a teologia, sugerindo-lhe um curso de medicina, profissão essa que lhe dará mais oportunidade para satisfazer o vício da luxúria. Seguem-se as cenas da Adega de Auerbach e da Tenda da Feiticeira. Fausto, já rejuvenescido por um elixir da bruxa, vê passar na rua a belíssima Margarida, mocinha de quinze anos, e fulminantemente se apaixona por ela. Mas a jovem recusa a corte do protagonista, pois é pura, honesta e religiosa. Mefistófeles explica ao discípulo que sobre uma tal criatura o diabo não tem poderes. É preciso, então, ter paciência e armar todo um plano de sedução. Margarida não resiste ao fascínio de um presente encontrado no seu armário: um cofre cheio de jóias preciosas. Na cena do jardim, após vários galanteios, acontece a primeira troca de beijos ardorosos entre Fausto e Margarida. Esta, numa outra cena que se passa no seu pobre aposento, através de um solilóquio, revela a forte paixão que lhe tirou a paz de espírito. Na cena do Jardim de Marta, uma sua amiga, Margarida reprova Fausto pela sua incredulidade e se queixa da assídua presença de Mefistófeles, pessoa de que ela não gosta, pressentindo algum dano. Fausto, então, aconselha a namorada a ministrar um soporífero a sua mãe para poder passar a noite com ela no seu quarto. Em frente à casa da jovem, de noite, o soldado Valentim, irmão de Margarida, manifesta sua dor pela desonra da irmã, aquela que outrora fora um exemplo de virtude e agora seu nome está na boca do povo por ter-se tornada amásia de Fausto. Este entra em cena junto com Mefistófeles. O soldado os ataca e Fausto, com a ajuda do Diabo, fere mortalmente Valentim. Acorrem Marta e Margarida e o soldado, antes de morrer, reprova a conduta indecorosa da irmã. Na cena da Catedral, Margarida é tomada por um forte sentimento de culpa, sente falta de ar e cai desfalecida. O coro, ao som do órgão, canta trechos de liturgia fúnebre em latim. "A noite de Valpurga" é um cenário que apresenta uma montanha da Alemanha, na noite de 30 de abril. Valburga é o nome de uma santa muito popular, cujos festejos se realizavam no dia primeiro de maio, coincidindo com as festas pagãs pelo início da primavera. Segundo a lenda, nesta noite misteriosa os demônios e as feiticeiras se amavam nas montanhas. Os dois amigos, Fausto e Mefistófeles, andam por caminhos íngremes, iluminados por um fogo-fátuo. Dialogam sobre as belezas da paisagem, admirando as montanhas verdejantes e os lindos rios, cujos sons parecem cantos. Durante a longa caminhada rumo ao monte Brock, lugar da festa, encontram bruxas que cantam em coros, um general, um ministro, um novo-rico, um autor de livros, uma jovem de nome Bela. No meio de estranhas visões, Fausto percebe um rosto pálido, que lhe parece ser o de Margarida:

Os olhos, penso eu,
são de alguém que morre.
Falta-lhe a luz da vida...
Não teve uma só mão carinhosa a cerrá-los.
Reconheço esses seios, deu-mos Margarida;
Reconheço o seu corpo, nele repousei.

A cena seguinte, intitulada "Sonho da noite de Valburga", é um interlúdio lírico, inspirado em duas peças de Shakespeare: Sonho de uma noite de verão e A tempestade. Desta última, aparece o mesmo personagem Ariel, o gênio do ar. O tema do episódio é a festa das bodas de ouro de Oberon e Titânia, figuras da mitologia nórdica. O cenário seguinte representa a cela de uma prisão, onde se vê Margarida acorrentada. A jovem está num estado de alucinação, custando a reconhecer o próprio amante Fausto. Pela sua fala aloucada, ficamos sabendo que ela matara a mãe e o seu filhinho. Esta seria a causa da prisão e do seu temor de ser justiçada. Ela chega até delinear a localização de seu túmulo. Pede a Fausto para ser sepultada perto da mãe e do irmão com o nenê no peito. Mas, de outro lado, Fausto afirma que seu crime não é mais que pura fantasia. O leitor, ou o espectador, fica, portanto, sem saber se a culpa de Margarida é real ou imaginária, causada pelo remorso da sua relação pecaminosa. Fausto suplica à amante a acompanhá-lo fora da prisão, pois viera para salvá-la. Mas Margarida se recusa a sair do cárcere:

Lá fora é a sepultura.
A morte espreita, escura!
Vem para a Eternidade
E nenhum passo adiante.
Vais embora? Oh Henrique, é atroz abandonar-te
Quisera acompanhar-te!

Mefistófeles, aparecendo do lado de fora, intima os dois a saírem, pois o dia se aproxima e seus corcéis não cavalgam à luz do sol. Margarida sente horror à presença do Diabo e prefere entregar-se à Justiça de Deus, suplicando pela salvação da sua alma. Vozes vindo do Alto anunciam que ela está salva. Fausto e Mefistófeles desaparecem. Cai o pano.

Após essa breve reconstrução do enredo, que teve a finalidade de facilitar a compreensão do conteúdo fabular da complexa peça goetheana, passamos a apontar alguns aspectos estilísticos e semânticos, que fazem do Fausto a tragédia mais representativa da estética e da ideologia do Romantismo, rompendo definitivamente com as regras da dramaturgia clássica. A peça não apresenta unidade de ação, nem de tempo, nem de lugar. Como temos visto, os fatos acontecem em vários lugares diferentes, em ambientes dos mais fechados (quartos e celas) aos mais abertos (montanhas e planícies). O tempo de duração das ações, embora indefinido, deixa supor uma longa extensão: Fausto leva quinze dias para fazer a corte a Margarida; esta tem um filho do seu amante. A ação principal do drama (o pacto entre Fausto e Mefistófeles e a conseqüente conquista do amor de Guida) é interrompida por vários episódios secundários, ligados à história encaixante por um nexo muito frouxo ("Adega de Auerbach", "Floresta e caverna", "Noite de Valburga"). A presença de quadros líricos e folclóricos também prejudica a intensidade dramática. Enfim, pela riqueza e multiplicidade dos cenários e pela complexidade e diluição das ações, o Fausto de Goethe nos dá a impressão de estarmos mais diante de um poema épico do que de uma peça dramática, que deveria restringir-se a focalizar apenas um problema existencial. É que a epopéia, na medida em que vai deixando de ser produzida como gênero à parte, passa a transferir para outros gêneros literários a sua função de representar a vida humana em toda a sua complexidade. Aspectos épicos podem ser encontrados também em obras de outros autores românticos, realistas ou modernistas, destacando Hugo, Tolstoi, Joyce, Guimarães Rosa. Outro aspecto romântico da dramaturgia de Goethe é a sua linguagem extremamente variada, que do mais alto lirismo desce até expressões tão vulgares a ponto de palavras e gestos deverem ser eliminados em edições ou representações para jovens. A irreverência de Mefistófeles se traduz numa crítica mordaz contra todas as classes sociais e atividades humanas. A ciência, a medicina, o governo, a religião, o amor, a amizade, tudo é apresentado pelo seu lado negativo, ridículo ou irônico. A mistura do sublime e do grotesco envolve o tratamento do próprio tema central do Fausto, que é a representação da frustração da humanidade na sua busca de um ideal impossível. A insatisfação do homem com a sua condição de ser contingente, nascido para a morte, tendo aspirações infinitas e realizações efêmeras, criou mitos belíssimos na cultura ocidental. Titãs, Prometeu, Ícaro, são idealizações de revolta do homem contra as leis do Universo, na tentativa de se igualar à divindade. O personagem Fausto de Goethe é a versão romântica da utopia do homem que, insatisfeito com a sua condição de mortal, recorre a qualquer meio para realizar seu sonho de atingir a eternidade. Só que o processo se desenvolve pelo modo irônico: chegar a Deus pela ajuda do Demônio; ser feliz renunciando à própria alma; conquistar um amor angelical mediante trapaças diabólicas. A renúncia à alma imortal em troca de bens materiais só poderia resultar numa degradação, nunca num melhoramento. Daí a conseqüência trágica da loucura de Margarida, vítima de sua paixão desenfreada. Talvez a beleza desta peça de Goethe esteja mesmo na representação do mundo angelical, puro, personificado em Margarida com seu sonho do primeiro amor virginal, e do mundo diabólico, sinistro, de Mefistófeles, símbolo da sedução e do encanto dos desejos carnais. Atraído pelas duas visões de vida contrárias, está Fausto, o amante de Margarida e o amigo de Mefistófeles, símbolo da alma romântica constantemente balançando entre o ideal do sonho e o grotesco da vida real.