Esboço biográfico do conselheiro José Maria Velho da Silva/3

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III.

Ha alguns povos e certos individuos que só reputam serem dignos de passar a posteridade os nomes d'aquelles que se assignalaram pelos seus feitos, e pelas suas opiniões na scena politica do mundo.

Esta enfermidade é constitucional por assim dizer no corpo da sociedade do nosso seculo; e conseguintemente não é para maravilhar que quasi todos os povos, que cacarejam de civilisados, padeçam este achaque; mas isto não quer dizer que só sejam dignos de louvor os homens que figuraram n'essa vertiginosa palestra dos tempos modernos.

Para cingir a fronte com louros é necessario ser estadista, litterato ou escriptor publico : se não fôr uma destas tres cousas, deve-se ser um Cresso ou um Harlibt para esperar grinaldas e thymiamas dos filhos do seculo positivista.

Senhores, cada éra tem seus defeitos e suas virtudes, e os homens participam em geral d'essas aberrações caracteristicas da sua época.

Nos seculos da cavalleria não se celebravam senão as proesasdos paladinos e dos grandes capitães: nos do luxo e da dissipação não se cantavam senão as opulentas orgias dos potentados: nos do mysticismo não se escrevia senão da vida contemplativa e dos enlevos dos illuminados: nos


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da philosophia não se exaltavam senão as doutrinas dos academicos: nas épocas dos galanteios não se pintavam se não os namoros dos Amadis: nas das invenções e descobertas não se fallou senão dos inventores e descobridores.

O homem de bem, o pai de familia virtuoso, o consorte dedicado, o amigo sincero, o cidadão integro, o patriota sem ouropel, o homem illustrado e modesto, raras vezes têm merecido das pennas do seu seculo essas paginas enthusiastas que registra a chronica dos tempos a respeito dos felizes mortaes que alumiaram o estro dos poetas com fogos patrios.

Humilde como é a nossa penna não quer, nem pôde aspirar senão a celebrar varões modestos nos seus actos; porém que no meio da sua pouco estrondosa peregrinação mereceram bem da patria e da humanidade.

Não são os raudaes torrentosos os que mais agua pagam em tributo á immensidade do mar: os rios quando mais caudalosos, mais modestos se apresentam na sua marcha tranquilla ao olhar do observador.

Ouvi, e vereis quanto a vida de José Maria Velho da Silva, desde 1821 até 1851, foi modesta, mas não obscura: foi na realidade uma continuada abnegação, um sacrifício constante, e uma fonte perenne de virtudes publicas e domesticas.

O brado magestoso da independencia, que tão destra quão sabiamente prepararam para a terra de Santa Cruz el-rei Dom João VI de Portugal e seu filho o imperador cavalleiro do Brasil, encontrou a José Maria Velho da Silva nas fileiras dos patriotas.

Professava tamanha estima ao seu paiz de adopção que não só enchia-se de soberba com os progressos que fazia na róta da verdadeira civilisação, mas tambem sacrificou
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algumas vezes as honras, na riquezas, o fausto e um futuro risonho— que outrem que não fosse José Maria Velho da Silva não teria immolado na fogueira do amor patrio.

Releve-se-me que eu alce o panno que cobre um d'esses actos que caracterisam a vida intima do nosso consocio, para que possais avaliar no seu justo valor o seu modesto merecimento.

Não vos cause estranheza que eu esqueça por um momento a época da minha narração, nem que corte o fio chronologico dos factos, pois a executal-o assim me vejo impellido pela asada conjunctura.

Rezam os documentos que me fornecem os materiaesd'esta biographia, que, quando o duque de Bragança,— depois de abdicar a coroa diamantina,— se encontrava em Portugal, defendendo os direitos de sua augusta filha, como seu primeiro soldado, convidou a José Maria mui encarecidamente para que fosse áquelle paiz, onde confiar-lhe-hia importantes commissões, dignas da altura do seu caracter e das suas valiosas qualidades.

Magnifico ensejo para um espirito mingoado e ambicioso! Quantos outros, menos nobres d'alma do que elle, teriam-se aproveitado da fortuna que entrava voluntaria nos seus umbraes 1 Mas José Maria era primeiro brasileiro e depois antigo servidor do primeiro monarcha da sua terra, e conseguintemente respondeu ao duque de Bragança com a franqueza fidalga que o distinguia que, embora fosse mui subida a honra que queria dispensar-lhe tão poderoso quão nobre senhor « a sua terra era o Brasil, e que o Brasil só tinha direito de exigir seus serviços. »

Haverá muitos homens do nosso seculo que, depois de consultar o seu coração, possam responder conscienciosamente outro tanto em iguaes ou semelhantes circumstancias?
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Por sem duvida este rasgo colloca o nosso finado consocio no numero dos patriotas mais benemeritos de que pode orgulhar-se o Brasil. A sua modestia e o seu caracter recto ocultaram durante a sua vida este e outros actos de patriotismo, e esta é a razão porque não duvido applicar aos seus manes as palavras de Agesiláo: maximas est, qui justissimus et modestissimus. »

Assim não deve parecer estranho que o Sr. Dom Pedro I. que conhecia o valor das suas virtudes civicas, antes mesmo da sua abdicação, o elevasse ás mais distinctas honras, durante o seu reinado.

A 26 de Janeiro de 1826 foi nomeado guarda-roupa honorario da imperial casa, passando a effectivo em 20 de Outubro do mesmo anno.

A 20 de Novembro de 1829 foi condecorado com a commenda da ordem de Christo, e nomeado fidalgo cavalleiro da casa imperial.

Nem era só no paço que foi aproveitado o seu préstimo: a sua idoneidade em materias economico-administrativas era reconhecida por todos os que o tratavam de perto.

A 5 de Abril de 1830 foi nomeado deputado do tribunal da junta do commercio, agricultura, fabricas e navegação: e no mesmo mez e anno foi escolhido para superintendente interino das imperiaes quintas e fazendas, lugar de importancia, em que José Maria Velho da Silva prestou relevantes serviços á casa imperial : notarei de passagem que despachava directamente, sobre todos os negocios relativos à superintendencia, com S. M. o Imperador Dom Pedro I.

Mesmo antes de ter recebido provas tão decididas de fidelidade da parte de José Maria, como veremos dentro de poucas paginas, o nosso finado consocio era tido em grande consideração pelo monarcha cavalleiro do Brasil, o Sr. Dom
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Pedro I; e como prova do que acabo de avançar accrescentarei que em diversas occasiões foi nomeado pelo mesmo augusto senhor para servir de mordomo e porteiro-mór junto de S. M. a Sra. D. Maria II, Rainha de Portugal, quando esta princeza estava no Brasil,

O zelo, a dedicação, a fidalguia com que se houve em todas estas occasiões, mereceram sempre a imperial approvação.

Eis-nos-ahi chegado a uma época em que por motivos, que não é do momento desenvolver, começou a empallidecer no occidente do mundo a estrella de S. M. o Sr. Dom Pedro de Bragança, primeiro imperador do Brasil.

« Donec eris felix, muitos numerabis amicos. »

Esta é desgraçadamente a condição dos homens collocados no apice do poder, desde as idades mais remotas do mundo. O poeta latino sabia por experiencia propria esta maxima, e a consignou á posteridade, como uma verdade eterna que servisse de lição aos vindouros pouco cautos; o coração humano, porém, é plasmado d'um barro tão semelhante ao que serviu ao Creador para formar o primeiro homem que para deixar de ser ingrato devia Deus inventar outra materia menos lodosa.

José Maria Velho da Silva era uma d'esssas raras excepções que honram a humanidade.

O imperador cavalleiro tinha abdicado, e como disse Pisistrato « regnum maluit quàm amicos diserere, » porém ainda pisava a terra brasileira ; e seu leal servidor se não julgou desligado da obrigação de prestar seus serviços ao monarcha que acabava de trocar a coroa do imperio de Santa Cruz pela espada de soldado de sua filha.

O Sr. Dom Pedro d'Alcantara de Bragança e Bourbon sahiu da Quinta de Bôa-Vista, com sua augusta esposa em estado
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interessante, e sua filha excelsa, a rainha de Portugal, na madrugada do dia 7 de Abril de 1838, para a não ingleza « Warspite » surta nas aguas da grande bahia do Rio de Janeiro, sendo acompanhado por alguns fieis servidores, entre os quaes achava-se José Maria Velho da Silva que, depois de beijar as mãos do seu magnanimo ex-soberano, regressou á sua casa com o coração opprimido de saudades.

Durante os dias em que o ex-imperador permaneceu na bahia, á vista da capital do imperio, o leal servidor, com risco imminente de vida, encaminhava-se desde o cães da Gloria, onde tinha estacionado um escaler da sua propriedade, para bordo do baixel, onde trabalhava diariamente por muitas horas até alta noite com S. M. I., pondo em ordem os negocios particulares do mesmo Ínclito principe.

Foi n'estes entrementes— quando o sossobro, a precipitacão, o estado anomalo das cousas e a incerteza do fim quepoderia ter o designio que estava meditando o príncipe para consolidar o throno da sua excelsa filha, de que injustamente apossára-se seu tio Dom Miguel,— que José Maria Velho da Silva teve a ventura de fazer patente a seu ex-imperador que tinha n'elle um servidor dedicado e digno da sua amizade.

Não mencionaremos as pessoas ; porque não é esta a missão d'um historiador; mas sim que diremos que José Maria salvou das garras d'um especulador de má fé a fortuna particular do Sr. Dom Pedro, duque de Bragança.

Se for necessario corroborar o nosso asserto com a autoridade d'uma pessoa augusta, e de outra altamente collocada, não duvidaríamos em invocar o nome de S. M. a imperatriz viuva do Brasil, e o de outro amigo de Dom Perdro I, o Sr. Samuel Philipps, banqueiro de Londres, e
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pessoa mui conhecida no Rio de Janeiro, os quaes podem ainda agora declarar os relevantes serviços prestados n'aquelles momentos de congoxa ao monarcha cavalleiro pelo fiel servidor e affeiçoado amigo.

Dom Pedro I, que não se deixava vencer por ninguém em generosidade e graneza d'alma « regem non decet beneficentiâ vinci; » que não conhecia raias para a sua cavalleirosa gratidão aos serviços recebidos; que pagava com usura as dividas do coração; quiz deixar um penhor da sua amizade a José Maria, offerecendo-lhe uma casa de sua propriedade, sita na rua de D. Januaria em S. Christovão.

Ha lutas heroicas debelladas pelas almas de elevada tem pera, que tornam-se dignas d'uma menção mui especial.

José Maria encontrou-se n'esta conjunctura entre diversos affectos — a gratidão e a amizade, o acatamento, o desinteresse cavalleiroso e a sua propria dignidade.

Por fim, depois de reflectir mui maduramente sobre a generosa offerta do Ínclito principe, entendeu que não devia receber cousa alguma que se assemelhasse a uma retribuição pelo que tinha praticado com todo o desinteresse; e eis-áhi o motivo porque recusou respeitosamente o signal de amizade do excelso duque. O principe, que era, além de amigo, magnanimo cavalleiro, para não chocar-lhe o melindre, não insistiu.

A náo, que conduziu o Snr. D. Pedro I á Europa, sul cava já as ondas, e José Maria enxugava ainda as lagrimas que lhe fez verter a despedida do nobre e inclito principe, quando já alguns Íntimos amigos do nosso finado consocio, lhe fizeram preseute que não seria para extranhar que o povo menos illustrado se lhe mostrasse adverso; sendo que n'esses momentos de exasperação dos animos até os mais
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sisudos esquecem as regras mais comesinhas da prudência e gratidão.

Não ousarei criticar os conselhos dos amigos de José Maria Velho da Silva; porque nasciam da sua boa intenção; mas, senhores, aquelle que conhece o coração humano, aquelle que estuda conscienciosamente os instinctos populares, sabe que nada ha mais generoso do que o procedimento do povo quando, depois da reflexão, trata-se de acatar o infortunio publico d'um principe, digno do seu respeita.

Esses palacianos voluveis que adoram o sol que brilha no momento do seu apogêo, são execrados por esse mesmo povo: e aquelles homens Íntegros que conservam-se fieis a um principe decahido, merecem sempre as sympathias, o respeito e a consideração de todos.

Senhores, o povo brasileiro pôde ufanar-se de ser um dos que mais senso commum tem mostrado nas suas peripecias politicas, e ardua tarefa será para aquelle que bem o estudar dizer que qualidade ó mais estimavel n'elle — se a sisudez, se a generosidade de caracter.

Afortunadamente para o Brasil, durante os seus quarenta annos de existencia nacional, ainda não tem havido verdadeiros caudilhos, e praza a Deus que não os haja nunca jamais; porque a sanha politica alberga-se só nos corações d'esses egoistas ambiciosos : e eis-ahi a razão por que José Maria nunca soffreu, depois da partida do Snr. D. Pedro I, a menor manifestação da parte do povo que lhe irrogasse vexame algum.

O tacto politico do nosso finado consocio o induziu a pedir á regencia a sua demissão do cargo que exercia no paço; mas aquella não annuiua seu pedido, ordenando-lhe,
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pelo contrario, que continuasse no seu lugar, fazendo assim mais este serviço á nação e ao imperador menor.

José Maria obedeceu a este mandato com o maior jubilo, por se lembrar das derradeiras palavras que, ao despedirse, lhe dirigira o Snr. D. Pedro I: — « Sirva meu filho com a mesma dedicação com que me serviu. »—José Maria observou religiosamente o. que promettera n'esta occasião ao fundador do imperio.

A partida para a Europa do principe cavalleiro causou um grande abalo no espirito do nosso fallecido consocio, e em resultado d'esta affecção moral adoeceu em Junho do mesmo anno, 1831, d'um modo tao assustador, que os facultativos lhe aconselharam que se retirasse para fóra da cidade, que tratasse de suspender todo o trabalho mental, que désse alguma folga ao seu animo e que da nossa incomparavel natureza fruisse os encantos da estação.

N'este ensejo apresentou de novo o pedido da sua demissão, allegando os ponderosos motivos supramencionados: a regencia conformou-se com a justiça da sua supplica.

Finda aqui a terceira época da vida do nosso fallecido consocio.

Mas não faltará quem nos faça no seu interior a pergunta seguinte: e a que lado politico pertencia o leal servidor dos nossos reis?

Esta pergunta deve ter uma cabal resposta no seu devido tempo e lugar: por em quanto cingir-me-hei a dizer-vos que José Maria Velho da Silva era eminentemente brasileiro.