Fantina/XIV

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A's cinco horas da manhã já se viam bestas amarradas tres a tres ao redor das estacas,e silenciosamente com um ar meditabundo olhavam para os grandes balaios, como estudantes que não sabem o ponto. Estava almoçando quando Margarida veiu dizer-lhe que o Daniel se achava lá fóra. Um rapaz, muito cedo, indo ao pasto, passou por casa de Daniel e contou-lhe que vinha do Ingaseiro, e que o homem não queria sahir. Daniel perguntou particularidades e só pòde saber que D. Luzia casava-se. Frederico estava de olho na Fantina. Esta ultima noticia feriu a Daniel.

O Zé de Deus sciente disto, mastigava um duro pedaço de carne, tão duro como o problema que pretendia resolver.

— Eu quero ver, seu Zé de Deus, si com o sr. arranjo o resto do dinheiro para tirar a Fantina.D. Luzia pede dois contos para passar a carta de liberdade, e eu já tenho um conto e pouco.

— E' muito ouro, Daniel ! — disse o Zé de Deus limpando a bocca na manga da camisa. O melhor era vossê deixar disso. A rapariga não tem nada ; a senhora nada lhe dará — vossê também não tem . . . . Agora si vossê gosta mesmo muito della, porque não arranja um meio de vê-la todas as noites ?

— Seu Zé de Deus, eu gosto muito della ; fomos creados junctos. Ella é bôa, muito bem procedida, e me estima de uma maneira, que só Deus sabe. E deixava ver duas grossas lagrimas apontando nos olhos.— E' uma perdição uma coisa assim. Ha quatro annos que ajunto dinheiro : vendo uma egoinha, uns carros de milho, e tudo ponho em suas mãos. O sr. bem sabe.

— Vossê tem feito muito sacrificio, Daniel ; mas ella nada tem, e o dinheiro.... e hoje o dinheiro.... Primeiro isto— e esfregando o polegar no indicador, concluía que depois Christo. E' com quem me arranjo ; todos vem aqui á porta do Zé de Deus . . . E dava uma risada feliz, onde o amor da avareza tinha um timbre argentino. Chamam-me miseravel, porco ; porque não encho a barriga delles, e ando com um paletot que veio de Portugal commigo, e no qual o Chico da Libania poz dez botões,o anno passado.Custou-me tres mil réis fortes, bem me lembro. Levantou-se, desceu a escada e poz a bigorna entre as pedras e pegando no martello começou de tarracar cravos ; que o burro atraz das egoas do Ingazeiro perdera duas ferraduras—dizia.

Daniel encostado ao corrimão da escada pedia-lhe conselhos. Elle dizia que furtasse a rapariga e fosse para bem longe ; que ella era clara, bonita e bem educada, por isso ninguém a tomaria por escrava fugida.

Daniel allegava não furta-la, porque ella negava-se a isso, por amisade a D. Luzia, que muito a queria. Não ia ve-la todas as noites, porque queria-a para sua mulher, queria ser marido.

— Então deixa disso ; e batia nos cravos com martelladas de um cyclope.

— Seu Zé de Deus, é uma coisa esquesita que eu sinto por aquella rapariga : vou trabalhar e fico com ella adiante dos olhos ; vou dormir, sonho com ella ao canto da cama sendo furtada por uns negros horríveis, que arrombam a parede ; então dou tiros, ouço-a gritando que acuda . . . . Acordo suado, afílicto, com a bocca margosa. Acho que é feitiço. Minha mãe fallou ao vigário a este respeito, e elle disse que eu furtasse Fantina e levasse para casa delle, e que depois della estar lá escondida uns vinte dias, nos casaria. Mas eu (Deus me perdôe, e bensia-se) tenho medo desse padre me por a perder. Elle é italiano, e esses padres tem até roubado mulheres casadas, como a do Luiz Ferreira, que o sr. conheceu muito bem. Emfim, está o diabo, seu Zé de Deus.

— E tudo eu arranjaria. Daniel, si D. Luzia não se casasse com elle.

Si eu fosse o preferido como desejava, casava você com Fantina no mesmo dia, e ainda dava um dote.

Daniel muito calado enxugava as lagrimas com a manga do gibão de lan azul.

— Sabe o que mais ?—disse o Zé de Deus, e olhou para Daniel com olhos tigrinos. Vou atrapalhar o casamento intrigando o Frederico. Escrevo á comadre uma carta contando a pandega da cidade na noite da festa do Divino, e ella o põe para fora de casa.

Daniel que conhecia o caracter de D. Luzia, sorriu achando fallivel a alavanca com o Zé de Deus tentava mover o mundo de Frederico.

Depois propoz a Daniel o assassinato de Frederico, e como elle se negasse, o Zé de Deus encaminhou-se p'ra o quarto, com o fim de escrever a carta.

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