Guerra dos Mascates/II/VII

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É tempo de voltarmos à entrevista em que deixamos Vital Rebelo na casa do trem.

O riso escarninho e a voz que ameaçara, bem os reconheceu o alferes, e compreendendo o passo arriscado em que se achava, cuidou em defender a vida, ou vendê-la caro aos inimigos.

Houve um momento de silêncio tão profundo, como era a treva que enchia o vasto armazém; mas com pouco rangeram os gonzos de uma porta, e apareceram dois escravos com tocheiros acesos.

O seu baço clarão que derramou-se pelo aposento mostrou a Vital o Capitão André de Figueiredo à frente de seis sequazes armados, com as espadas desembainhadas e prontos a atacá-lo ao primeiro sinal.

O mancebo mal teve tempo de reclinar sobre um velho baú que lia via ali perto, encostado à parede, o corpo desmaiado de sua querida Leonor, e cair em guarda contra as seis catanas que o assaltavam.

André de Figueiredo, de parte, com as mãos apoiadas na cruz da espada que fincara no chão, assistia ao combate imóvel; mas via-se-lhe no semblante a violência que fazia sobre si em conter os ímpetos de seu gênio arrebatado.

— Bem vejo que isto é uma emboscada, disse Vital Rebelo com desprezo, defendendo-se galhardamente. Eu sabia que os fidalgos de Olinda eram peritos em armá-las, desde os tempos dos judeus holandeses, seus ilustres antepassados; mas os daquele tempo usavam pelejar nelas, e não se resguardavam como os de agora.

A lâmina da espada de André de Figueiredo vibrou com o estremeção que lhe imprimiram as mãos convulsas, mas ainda pôde o capitão dominar este assomo, com a idéia de humilhar seu inimigo pelo desprezo.

— Estais enganado; isto não é emboscada, mas obra de justiça; é execução que se costuma fazer em réu de morte, respondeu entre um riso de mofa.

Com um corrupio da espada fez Rebelo recuar os assaltantes, alguns dos quais já tinham no corpo a marca do ferro; e aproveitou da aberta para replicar ao capitão:

— Ah! é obra de justiça? Mas parece que o carrasco não sai do ofício, pois está aí feito um estafermo em vez de manejar o seu cutelo.

— Não quero manchar a minha espada de cavalheiro; hás de morrer à mão de tua laia, tornou o capitão com gesto de asco.

— Tem razão o nobre fidalgo; só esqueceu um ponto e é que para dizer destas cousas, se precisa de ter a espada mais comprida do que a língua, senão...

Neste ponto, operou-se tal mutação da cena, que não é possível descrevê-la sem cortar o fio à palavra de Vital.

Desde o primeiro assalto, curando o mancebo de tomar a melhor posição para a defesa, aproximou-se de um grande armário encostado ao fundo do aposento, cerca do qual havia algumas arcas e canastras espalhadas pelo pavimento.

Assim, tendo as costas guardadas de qualquer surpresa com as canastras, que ia arranjando a mão esquerda enquanto a direita combatia, fez ele uma espécie de trincheira que lhe resguardava meio corpo; e sobre ela debruçava-se para atirar o bote certeiro da sua espada a algum dos sequazes menos prontos em recuar.

Quando André de Figueiredo lançou-lhe o último insulto, ao rechaçá-lo, mediu o mancebo com o olhar a distância que o separava do inimigo, e quase tão rápido como esse olhar, saltou em cima de uma das arcas, dela em outra mais alta, e arremessando-se com pasmosa agilidade, veio cair em face do capitão, antes de aperceber-se este do que se havia passado.

Tudo isto porém sucedeu com tamanha velocidade, que foi apenas uma reticência na resposta de Vital.

— Senão, acabou ele, corre-se o risco de sofrer logo em cima da palavra a correção de sua insolência.

Soaram estas palavras ao mesmo tempo que a lâmina da espada de Vital, batendo de chapa no ombro do capitão. Era à face que a destinara o impetuoso mancebo aceso em ira; mas seu valente adversário, apesar do repente, logrou desviar-se a tempo.

Além de mais pronto e destro, tinha Rebelo nesse momento sobre o capitão a superioridade do enleio em que o pusera a sua investida. E foi aproveitando-se dessa vantagem que de um revés da espada ele desarmou o adversário e prostrando-o, calcou-lhe o pé sobre o peito, em ação de traspassar-lhe a gorja.

Atalhou-o porém um grito de angústia.

Leonor, que pouco antes cobrara os espíritos, mas ainda no torpor do deIíquio, via, sem compreender, aqueles vultos a agitarem-se ao clarão baço das tochas, de súbito recordou-se do lance em que se achava, ao encarar o vulto ameaçador do seu marido prestes a desfechar em André de Figueiredo o golpe mortal.

O sangue de seu tio, do irmão de sua mãe e que lhe fazia as vezes de pai; esse sangue derramado pela mão do marido, era a separação eterna, e mais do que isso, a morte de seu amor, que ela já não poderia sentir, embora apartada, pelo homem que lançasse o luto no seio de sua família.

Esta idéia horrível perpassou como um relâmpago o ânimo da donzela, que arrojou-se para deter o braço de Vital; mas faltando-lhe as forças ao impulso, caiu ali mesmo de joelhos, estalando-lhe a alma no grito da aflição.

Voltou-se Vital; vendo sua mulher, com os cabelos em desordem, os olhos alucinados e o semblante convulso, adivinhou o pensamento que a espavoria. Poupar a vida ao inimigo naquela conjuntura, era entregar-lhe a sua; mas de que lhe servia esta, se cavasse um abismo de ódio entre ele e Leonor?

Um instante não hesitou. Ergueu a ponta da espada, e recuou deixando o capitão livre e escapo da morte.

Os seis sequazes, que atacavam Rebelo, ficaram a princípio atônitos com o desaparecimento do mancebo, que alguns deles julgaram ter caído por detrás das canastras. Outros porém que haviam confusamente entrevisto o salto, cuidaram que fora um ímpeto de fuga.

Quando afinal descobriram o aperto em que se achava André de Figueiredo e corriam a acudi-lo, esbarraram-se com Rebelo que já de volta buscava a primeira posição. Não a pôde alcançar, que os espoletas lhe cortavam a retirada, colocando-o dessa arte em um passo difícil, pois atacado em número tão desigual pela frente, ia sê-lo de costas pelo capitão.

À têmpera d'alma sucede o mesmo que à têmpera do aço; em sendo boa, quanto mais se lhe calca, mais forte ela brande. Com tamanha afouteza investiu Rebelo a troça, que abriu caminho através; e recuperou o primeiro posto junto ao armário.

A este tempo erguera-se André de Figueiredo; com a sanha de um tigre correu ao combate.

— Arredem-se, que este vilão me pertence; não quero que lhe toquem, pois ainda é pequeno para me fartar de cortá-lo.

Rebelo não respondeu à bravata, senão com um sorriso de desprezo. Tolhido como estava de matar este homem, e com a saída embargada pelas grossas portas de jacarandá, o alferes reputavase perdido; pois afinal se lhe esgotariam as forças e seria obrigado a traspassar-se com a própria espada, para se não render ao inimigo.

Todavia não o abandonara ainda a confiança que tinha na afouteza de seu ânimo, como na força de seu braço. Empenhando o combate com o capitão, ele concentrou-se para dividir a atenção entre o manejo da espada e a pesquisa de algum meio de salvação.

Por diversas vezes se precipitara Leonor para implorar o tio em favor do marido; mas a um aceno de André de Figueiredo, um dos sequazes conduzira a donzela a seu mau grado para o outro extremo do aposento, colocando-se por diante para tirar-lhe a vista do combate.

Entretanto este prosseguia, sanhudo e furioso da parte de André de Figueiredo, sereno e atento da parte de Rebelo, que, pronto em parar os golpes, mas desdenhando as abertas que lhe oferecia a imprudência do inimigo, não cessava de perscrutar os recantos do aposento.

Tinha este duas portas, uma de saída exterior, por onde havia entrado o mancebo; outra de comunicação interior; por onde viera D. Leonor. Ambas estavam fechadas à chave, com trancas atravessadas; e eram champrões de lei impossíveis de arrombar. Por esse lado, pois, não havia esperança de escapula; menos por outro qualquer, pois não se via nas paredes, e nem mesmo no teto, qualquer fresta ou buraco por onde pudesse passar um homem, ainda que ele tivesse o privilégio da enguia.

Nesta estreiteza, em que o ânimo de Vital já se repartia por tantos cuidados, o da sua Leonor a lamentar-se do outro lado, o da guarda a que o obrigavam os amiudados golpes do capitão, e o da busca de um meio de salvação, ainda assim lhe não escaparam os movimentos dos cinco sequazes, que apuridavam-se conchegados entre si e apartados a um canto.

Sussurrou ao ouvido sutil do mancebo a palavra mosquete, e com ela uns ruídos significativos, que lembravam o tinir da vareta no cano de uma arma de fogo. Se lhe restasse dúvida, certos movimentos de um braço meio oculto pelo grupo lhe denunciariam a obra em que se mostravam tão empenhados os sujeitos.

O quer que era estava pronto, pois voltando-se continuaram os marotos a assistir ao combate como simples espectadores; mas notou Vital que o quinto ficara atrás dos outros, e que no ombro do primeiro, mais à frente, aparecia um óculo negro que lhe estava olhando o peito.

No ânimo do mancebo surgiu uma idéia: saltear de repente a André de Figueiredo forçando-o a recuar por modo que se interpusesse à mira do mosquete, com o que não só o faria de escudo contra o tiro, mas livrava-se do inimigo sem o ferir nem tocar, sendo menos difícil então acabar com os outros.

Mas em todo o caso não lhe imputariam a ele só a morte do capitão, e com ela não se levantaria um túmulo para separá-lo de sua Leonor?

Quando ele cogitava nesta dúvida, de chofre bateu o cão do mosquete, e ao disparar-se o tiro, ouviu-se grande estrondo, maior do que se devera esperar da explosão da arma, ficando o aposento sepultado nas trevas.

Para explicação deste acidente, que vinha complicar o caso, carecemos de ir em busca da cavalheiresca D. Severa.

Tinha-se a dona recolhido à sua câmera, e achava-se então justamente em vestes de ninfa, com a insignificante diferença de uma anágua em vez da faixa clássica. Acabara de ler, como costumava, um capitulo do Palmeirim, e repassava na fantasia as aventuras do cavalheiro da fortuna.

Nisto ouviu grande rumor no pavimento térreo, e sobre curiosa, inquieta, vestiu as pressas uma cabaia amarela com que saiu fora a inquirições, levando a candeia na mão.

Se a visse naquele instante, com a capa de seda que na ausência das anquínhas se lhe pregava ao corpo como um estojo amarelo do qual saíam os dois joelhos que serviam de castões aos caniços das pernas, abandonaria com certeza o inspirado Lisardo a comparação da rosa, e buscaria no seu armazém poético outra imagem mais apropriada; por exemplo a flor da abóbora, ainda que esta naquele tempo não tinha entrada no Parnaso.

O corredor estava tranqüilo; pelo que animou-se a ninfa a chegar ao topo da escada por onde vinha o rumor.

— Quem esta aí? perguntou com desplante, ouvindo passos.

A pessoa que era galgou aos saltos a escada; e D. Severa reconheceu o Nuno, seu pajem desde a véspera.

— Acuda, senhora D. Severa, que senão acabam de matar o Vital Rebelo!

— Pois ele está aqui?

— Na casa do trem. Não ouve? Estava a falar com a mulher, a D. Leonor, quando o Sr. Capitão André de Figueiredo, que se pusera de espreita com os seus homens, deu sobre ele, e lá andam aos botes de portas fechadas.

— Leonor?

— Também lá está encerrada, que lhe ouvi as aflições, uma vez, no meio do barulho.

— Coitada!

— E o Rebelo, senhora, que gentil cavalheiro! Sete contra um! Ele só é homem para fazer frente a todos, mas era preciso que estivesse em campo raso. Assim de emboscada, com certeza o acabam.

— Não há de acontecer essa desgraça.

— Se já não aconteceu agora mesmo que lhe falo. A senhora consente que se mate a traição, aqui dentro da sua casa, a seu sobrinho, porque ele o é?

Estava precisamente a D. Severa pensando que era aquele um dos casos em que uma dama, segundo as regras da cavalaria andante, devia intervir em favor do oprimido; pelo que tomando a generosa resolução, disse para o Nuno, com o tom senhoril de uma castelã:

— Ide armar-vos, pajem, enquanto me adereço para amparar nossa formosa sobrinha e salvar-lhe o esposo.

— Mas, senhora; se perdeis um momento, chegaremos tarde.

— Quereis que me apresente neste desalinho, acudiu D. Severa pudicamente; e vós sem armas, que ajuda podereis dar?

Só então reparou Nuno no fresco atavio de ninfa em que se achava D. Severa; e pronto a replicar acerca da sua armadura da véspera que o esperava embaixo, não achou argumento contra a necessidade que tinha a dama, de um traje mais avaro de seus encantos serôdios.

Força foi ao moço, resignar-se durante meia hora em que, roído pela impaciência, descera dez vezes a escada para escutar à porta do armazém, e dez vezes subira para espiar no camarim da dama se ela acabara de adornar-se.

Afinal saiu D. Severa em grande paramento, de anquinhas, cauda, trunfa, pluma e leque, pois não dispensava em ocasiões solenes nenhum desses atavios fidalgos. Podia o marido de Leonor ter morrido vinte vezes no tempo despendido com esse adereço; mas ela é que não podia derrogar nos seus deveres de dama da primeira nobreza pernambucana.

Desceu a senhora com um andar pomposo ao rés-do-chão, onde o Nuno enfiou apressado a couraça e a cervilheira que deixara ao pé da escada para mais ligeiro correr acima e abaixo.

Depois que o pajem bateu debalde uma e muitas vezes na porta do armazém, lembrou-se D. Severa que do outro lado havia uma janela, por onde mais facilmente poderiam penetrar.

Deram volta, e à sumida luz da candeia, que o vento açoutava, acharam sem mais demora o que procuravam.

Precisamente nessa ocasião, Vital atento ao mosquete prestes a disparar, desviara-se para o lado esquerdo do armário, a fim de no momento dado abrigar-se com a quina do móvel.

Feriu-lhe o ouvido o ceceio das vozes de D. Severa e seu pajem que avisavam no modo de penetrarem no aposento. Notando que esse murmúrio saía da fresta que ficava entre o armário e a parede, adivinhou o mancebo a existência de um vão de janela ou porta naquele ponto. Com um olhar calculou a posição de seus adversários, a distância em que se achavam os to cheiros, e traçou um plano.

Ao disparar o mosquete, arrojou-se ele ao canto do armário, e metendo o braço entre o fundo e a parede, empurrou com tal força o pesado traste que este despenhou-se no chão, causando um temeroso estrondo e apagando as tochas com a violenta deslocação do ar.

Aproveitando-se da escuridão, o. intrépido mancebo encontrou às apalpadelas a janela; cuja aldraba facilmente abriu. Com o baque do armário, D. Severa soltara a candeia, ficando o corredor às escuras; mas percebia-se no fundo uma nesga. de céu.

Por ali desapareceu Vital.

Ao saltar a janela, encontrou resistência que logo cedeu, e ouviu um grito; mal suspeitava que duma peitada tinham virado de cambalhotas,. um sobre o outro, a respeitável D. Severa e seu pajem.

Mas o pior foi que, nesse rolo, a ponta do chifarote de Nuno ia vazando o olho direito da dama, que nessa ocasião provou a. vantagem de possuir um sofrível nariz.