Helena/VII

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Apearam-se os dois no terreiro e dirigiram-se para a escada que ia ter à varanda. Pisando o primeiro degrau, disse Estácio:

— Helena, explique-me suas palavras de há pouco.

— Quais?

E como Estácio levantasse os ombros, com ar de despeito, continuou Helena:

— Perdoe-me; a pergunta não tem nem podia ter outra resposta mais do que a simples recusa. Não lhe direi mais nada. Nunca se devem fazer meias confissões; mas, neste caso, a confissão inteira seria imprudência maior. Se se tratasse de fatos, creia que a ninguém melhor podia confiá-los do que a você; mas por que motivo irei perturbar-lhe o espírito com a narração de meus sentimentos, se eu própria não chego a entender-me?

Estácio não insistiu. Subiram a escada, atravessaram a varanda e entraram na sala de jantar, onde acharam D. Úrsula dando as ordens daquele dia a dois escravos. Estácio entrou pensativo; Helena mudou totalmente de ar e maneiras. Alguns segundos antes era sincera a melancolia que lhe ensombrava o rosto. Agora regressara à jovialidade de costume. Dissera-se que a alma da moça era uma espécie de comediante que recebera da natureza ou da fortuna, ou talvez de ambas, um papel que a obrigava a mudar continuamente de vestuário. D. Úrsula viu-a entrar risonha e ir a ela dar-lhe os costumados — bons dias — que eram sempre um beijo, — ou antes dois, — um na mão, outro na face.

— Demorei-me muito? perguntou ela voltando rapidamente o corpo, de maneira a ver o relógio que ficava do outro lado da sala. Nove horas! Que passeio, Sr. meu irmão!

Estácio olhava para ela silencioso e não lhe respondeu. Foram logo mudar de roupa, e o almoço reuniu a família. D. Úrsula propôs, durante ele, algumas mudanças na disposição da chácara, mudanças que foram longamente discutidas com o sobrinho, e aceitas afinal por este. O dia estava sombrio e fresco; D. Úrsula desceu à chácara com Estácio. As alterações foram ainda estudadas e combinadas no próprio terreno, com assistência do feitor. Logo que acabou a deliberação e que o projeto de D. Úrsula foi definitivamente assentado, Estácio reteve-a e lhe disse:

— Preciso falar-lhe um instante.

— Também eu.

— Quais são os seus sentimentos atuais em relação a Helena? Oh! não precisa franzir a testa nem fazer esse gesto de aborrecimento. Tudo são meras aparências. Não creio que seja absolutamente amiga dela; mas não pode negar que a antipatia desapareceu ou diminuiu muito.

— Diminuiu, talvez.

— E com razão. Pensa que também eu não tive repugnâncias, depois que ela aqui entrou? Tive-as; mas se não houvessem desaparecido, — desapareceriam hoje de manhã.

— Como?

Estácio referiu à tia a cena do capítulo anterior e as palavras que lhe dissera Helena. D. Úrsula sorriu ironicamente.

— Não a impressiona isto? perguntou Estácio.

— Não, respondeu D. Úrsula com decisão; a frase de Helena é achada em algum dos muitos livros que ela lê. Helena não é tola; quer prender-nos por todos os lados, até pela compaixão. Não te nego que começo a gostar dela; é dedicada, afetuosa, diligente; tem maneiras finas e algumas prendas de sociedade. Além disso, é naturalmente simpática. Já vou gostando dela; mas é um gostar sem fogo nem paixão, em que entra boa dose de costume e necessidade. A presença de outra mulher nesta casa é conveniente, porque eu estou cansada. Helena preenche essa lacuna. Se alguma coisa, entretanto, a podia prejudicar nas nossas relações é esse dito.

Estácio tomou calorosamente a defesa da irmã.

— O que eu lhe contei, disse ele, foram apenas as palavras. Não pude nem poderia reproduzir a expressão sincera com que ela as proferiu, e a profunda tristeza que havia em seus olhos. Não lhe nego que, ao vê-la mudar tão depressa e entrar alegre na sala, senti tal ou qual abalo de dúvida, mas passou logo. Ela tem o poder de concentrar a amargura no coração; também a dor tem suas hipocrisias...

— Mas que dor? que amargura? interrompeu D. Úrsula. A dor de ser legitimada? a amargura de uma herança?

Estácio protestou calorosamente contra aquele caminho que a tia dava às suas idéias; enfim pediu-lhe que interrogasse com cautela a irmã.

— Um homem, concluiu ele, é menos apto para obter tais confissões; uma senhora, respeitável e parenta, está mais no caso de lhe captar a confiança e obter tudo. Quer incumbir-se desse delicado papel?

— Pedes muito, respondeu D. Úrsula. Verei se te posso dar metade disso. Era só o que tinhas para dizer?

— Só.

— Uma criancice! Eu tenho coisa mais séria. O Dr. Camargo escreveu-me; trata-se...

— Não precisa dizer mais nada, interrompeu Estácio; lá vem ele.

Camargo aparecera efetivamente a vinte passos de distância.

— Doutor, disse D. Úrsula, logo que este se aproximou deles, chega um pouco fora de propósito. Eu mal tive tempo de assustar meu sobrinho, que ainda não sabe o que o senhor lhe quer.

— Saberá agora; é só bastante que a senhora lhe diga que me aprova.

— Completamente.

— Trata-se... disse Estácio.

— De uma conspiração; todos conspiramos em seu benefício.

D. Úrsula retirou-se para casa; os dois ficaram sós. Uma vez sós, Camargo pousou a mão no ombro de Estácio, fitou-o paternalmente, enfim perguntou-lhe se queria ser deputado. Estácio não pôde reprimir um gesto de surpresa.

— Era isso? disse ele.

— Creio que não se trata de um suplício. Uma cadeira na câmara! Não é a mesma coisa que um quarto no aljube...

— Mas a que propósito...

— Esta idéia apoquentava-me há algumas semanas. Doía-me vê-lo vegetar os seus mais belos anos numa obscuridade relativa. A política é a melhor carreira para um homem em suas condições; tem instrução, caráter, riqueza; pode subir a posições invejáveis. Vendo isso, determinei metê-lo na Cadeia... Velha. Fala-se em dissolução. Para facilitar-lhe o sucesso, entendi-me com duas influências dominantes. O negócio afigura-se-me em bom caminho.

Estácio ouviu com desagrado as notícias que lhe dava o médico.

— Mas, doutor, disse ele depois de curto silêncio, houve de sua parte alguma precipitação. Pelo menos, devia consultar-me. Do modo por que arranjou as coisas, quase me acho desobrigado de lhe agradecer a intenção. Quanto a aceitar, não aceito.

Camargo não perdeu a tramontana; deixou passar por cima da cabeça a primeira onda de desagrado, surgiu fora e insistiu tranqüilamente:

— Vejamos as coisas com os óculos do senso comum. Em primeiro lugar, não creio que tenha outros projetos na cabeça...

— Talvez.

— Duvido que sejam mais vantajosos do que este. A ciência é árdua e seus resultados fazem menos ruído. Não tem vocação comercial nem industrial. Medita alguma ponte pênsil entre a Corte e Niterói, uma estrada até Mato Grosso ou uma linha de navegação para a China? É duvidoso. Seu futuro tem por ora dois limites únicos, alguns estudos de ciência e os aluguéis das casas que possui. Ora, a eleição nem lhe tira os aluguéis nem obsta a que continue os estudos; a eleição completa-o, dando-lhe a vida pública, que lhe falta. A única objeção seria a falta de opinião política; mas esta objeção não o pode ser. Há de ter, sem dúvida, meditado alguma vez nas necessidades públicas, e...

— Suponha, — é mera hipótese, — que tenho alguns compromissos com a oposição.

— Nesse caso, dir-lhe-ei que ainda assim deve entrar na câmara — embora pela porta dos fundos. Se tem idéias especiais e partidárias, a primeira necessidade é obter o meio de as expor e defender. O partido que lhe der a mão, — se não for o seu, — ficará consolado com a idéia de ter ajudado um adversário talentoso e honesto. Mas a verdade é que não escolheu ainda entre os dois partidos; não tem opiniões feitas. Que importa? Grande número de jovens políticos seguem, não uma opinião examinada, ponderada e escolhida, mas a do círculo de suas afeições, a que os pais ou amigos imediatos honraram e defenderam, a que as circunstâncias lhe impõem. Daí vêm algumas legítimas conversões posteriores. Tarde ou cedo o temperamento domina as circunstâncias da origem, e do botão luzia ou saquarema nasce um magnífico lírio saquarema ou luzia. Demais, a política é ciência prática; e eu desconfio de teorias que só são teorias. Entre primeiro na câmara; a experiência e o estudo dos homens e das coisas lhe designarão a que lado se deve inclinar.

Estácio ouviu atento estas vozes com que a serpente lhe apontava para a árvore da ciência do bem e do mal. Menos curioso que Eva, entrou a discutir filosoficamente com o réptil.

— Entra-se na política, disse ele, por vocação legítima, ambição nobre, interesse, vaidade, e até por simples distração. Nenhum desses motivos me impele a dobrar o cabo Tormentório...

— Da Boa Esperança, emendou Camargo rindo; não suprima três séculos de navegação.

Estácio riu também. Depois falou ao médico da sua índole e ambições. Não negava que tivesse ambições; mas nem só as havia políticas, nem todas eram da mesma estatura. Os espíritos, disse ele, nascem condores ou andorinhas, ou ainda outras espécies intermédias. A uns é necessário o horizonte vasto, a elevada montanha, de cujo cimo batem as asas e sobem a encarar o sol; outros contentam-se com algumas longas braças de espaço e um telhado em que vão esconder o ninho. Estes eram os obscuros, e, na opinião dele, os mais felizes. Não seduzem as vistas, não subjugam os homens, não os menciona a história em suas páginas luminosas ou sombrias; o vão do telhado em que abrigaram a prole, a árvore em que pousaram, são as testemunhas únicas e passageiras da felicidade de alguns dias. Quando a morte os colhe, vão eles pousar no regaço comum da eternidade, onde dormem o mesmo perpétuo sono, tanto o capitão que subiu ao sumo estado por uma escada de mortos, como o cabreiro que o viu passar uma vez e o esqueceu duas horas depois. Suas ambições não eram tão ínfimas como seriam as do cabreiro; eram as do proprietário do campo que o capitão atravessasse. Um bom pecúlio, a família, alguns livros e amigos, — não iam além seus mais arrojados sonhos.

Um sorriso de lástima foi a primeira resposta do médico.

— Meu caro Estácio, disse ele depois, esse trocadilho de andorinhas e cabreiros é a coisa mais extraordinária que eu esperava ouvir a um matemático. Saiba que detesto igualmente a filosofia da obscuridade e a retórica dos poetas. Sobretudo, gosto que respondam em prosa quando falo em prosa.

— Parece-lhe que poetei? perguntou Estácio rindo.

— Despropositadamente. Ora, eu falo de coisas sérias; e convém não confundir alhos, que são a metade prática da vida, com bugalhos, que são a parte ideológica e vã.

— Eu serei ideólogo.

— Não tem direito de o ser.

— Pois bem, deixe-me com as minhas matemáticas, as minhas flores, as minhas espingardas.

— Não! Há de intercalar tudo isso com um pouco de política.

Puxando-o familiarmente pela gola do paletó, Camargo fê-lo sentar ao pé de si, no banco que ali estava mais próximo. Depois falou. O novo discurso foi o mais longo que proferiu em todos os seus dias. Nenhuma das vantagens da vida pública deixou de ser apontada com uma complacência de tentador; todas as glórias, pompas e satisfações da política, e não só as reais, mas as fictícias ou duvidosas, foram inventariadas, pintadas, douradas e iluminadas pelo médico. A palavra revelou um poder de evocação, uma veemência, uma energia, que ninguém era capaz de supor-lhe. O taciturno desabrochou tagarela. Para falar tanto e com tal força era preciso que o animasse um grande sentimento ou um grande interesse.

Estácio, lisonjeado com a afeição que ele lhe mostrava, não teve ensejo de fazer essa reflexão. Nem se animou a repetir a recusa; adotou o alvitre de diferir a resposta para outra ocasião.

— Já lhe disse o que sinto a tal respeito. Contudo, estou pronto a refletir, e a consultar o padre Melchior e Helena.

O nome de Helena produziu em Camargo uma careta interior. Exteriormente, não passou o efeito de um sorriso sardônico e dissimulado. Interveio uma pitada de rapé, que o médico inseriu lentamente, depois de a extrair de uma boceta de tartaruga, presente do conselheiro Vale.

— Helena! disse ele com alguma hesitação. Que vem fazer sua irmã neste negócio?

— É um voto, redargüiu Estácio; e menos leve do que lhe parece. Há nela muita reflexão escondida, uma razão clara e forte, em boa harmonia com as suas outras qualidades feminis.

Entre as sobrancelhas de Camargo projetou-se uma longa ruga, e foi toda a expressão de seu espanto e desgosto. A resposta de Estácio revelara-lhe uma situação nova na família: o voto de Helena, consultivo agora, podia vir a ser preponderante. Esta solução, que porventura faria estremecer de alegria os ossos do conselheiro, não a previra o médico. Limitou-se a notá-la de si para si; e, terminando subitamente a conversa, disse:

— Consulte as pessoas de seu agrado. Quem não estiver com a minha opinião, não é seu amigo. Em todo o caso, ninguém lhe poderá afirmar que não é a amizade, a longa amizade...

Estácio cortou-lhe a palavra, apertando-lhe afetuosamente a mão. Tinham-se levantado. Era quase meio-dia; Camargo despediu-se ali mesmo; ia ver dois doentes no caminho da Tijuca. O filho do conselheiro atravessou sozinho a chácara; ia pensativo, e aborrecido. A política, na sua opinião, era uma noiva importuna; mas, se todos conspirassem a favor dela, não seria ele obrigado a desposá-la? A esta reflexão respondeu a voz do padre Melchior, do alto de uma janela:

— Venha cá, senhor deputado; quando teremos o seu primeiro discurso?