Helena/XX

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A visita de Estácio não causou nenhum espanto a Mendonça; ele a esperava com a confiança das índoles ingênuas e avessas ao ódio. Não era crível que um amigo de longos anos dormisse sobre a injustiça de um minuto; contudo dormiu. Foi na seguinte manhã que Estácio procurou o pretendente de Helena.

Entrou naturalmente em casa de Mendonça, sem expansão nem secura. A entrevista foi breve e cordial; houveram-se os dois com afetuosa dignidade. Estácio explicou os escrúpulos, declarou-se contente com a aliança. O contentamento podia existir; todavia, a manifestação foi parca e seca. Houve mais calor e expansão quando ele lhe pediu que desse vida feliz à irmã.

— Será para mim um eterno remorso, se Helena vier a ser desgraçada, disse ele. Não tivemos o mesmo berço, vivemos nossa infância debaixo de teto diferente, não aprendemos a falar pelos lábios da mesma mãe. Importa pouco; nem por isso lhe quero menos. Meu pai recomendou-a à nossa família, e ela correspondeu ao sentimento que ditou essa última vontade.

Mendonça não respondeu nada; refletira, durante a noite, nas palavras que ouvira a Estácio no dia anterior; — palavras que bem podiam ser ditas ou pensadas por outros, talvez por todos, logo que soubessem do casamento. Helena viria a amá-lo, talvez; mas, desde logo lhe levava para casa a chave da independência. Mendonça recuou. Quando o padre Melchior o soube, não pôde conter um gesto de admiração; mas, se louvou o escrúpulo, não aprovou a resolução, que vinha derrubar tudo.

— Não tapará nunca a boca aos maus, disse o padre; eles acharão meio de envenenar-lhe a generosidade.

— Paciência! tornou o moço, é menor esse perigo. Se casar, dirão que faço uma operação vantajosa; talvez a família o suponha; talvez ela própria o pense.

Helena teve notícia dos receios do pretendente, e da resolução a que parecia inclinar o coração. Perguntoulhe se era verdade. Mendonça afirmou que sim. Ela contemplou-o longamente, sem dizer palavra; travou-lhe das mãos, apertou-as com efusão; ele persistiu.

No desinteresse de Mendonça havia porventura um pouco de faceirice. A moça o percebeu, nem por isso deixou de crer na sinceridade do rapaz. Tentou dissuadi-lo; e, posto nada alcançasse nos primeiros minutos, estava certa de que venceria o derradeiro obstáculo. Teria os olhos mais hábeis e felizes que os lábios do padre. Foi o que ela disse ao capelão.

— Tomo à minha conta efetuar este casamento, continuou Helena.

— Resolvida a tudo?

— A tudo.

— Mas, se ele insistir...

— Se ele insistir, vencê-lo-ei, ou por um modo ou por outro. Uma moça que quer ser noiva, vale por um exército; eu sou um exército.

— Muito bem! Contudo, sua dignidade...

— Oh! em último caso abro mão da herança.

— Era capaz disso? perguntou Melchior.

— Se era capaz? Desejo-o até, disse a moça com veemência.

E acrescentou em tom mais brando:

— Sobre o homem de minha escolha desejo que não paire a mínima desconfiança.

Tal era a situação, dois dias depois da volta de Estácio. O casamento podia contar-se feito. Mendonça não resistiu ao desinteresse de Helena. D. Úrsula aprovou tudo com efusão e amor, nada sabendo das incertezas e contradições dos últimos dias.

Na noite desse dia, Estácio escreveu para Cantagalo dando notícias suas. Do casamento de Helena falou pouco, quase nada. Tudo o descontentava; tanto o que ele fizera e dissera, sem proveito, como o desenlace da situação. Não soubera opor-se com eficácia, nem aplaudir oportunamente.

Posto fosse tarde, o sono teimava em fugir-lhe, e ele velou até muito além da meia-noite. Ocupado, sem dúvida, em adormecer organizações menos sensíveis e existências menos complicadas, o sono fez-lhe apenas uma curta visita. Pelas cinco horas da manhã, Estácio acordou e ergueu-se. A manhã estava fresca; quase toda a família dormia. Estácio desceu; o único escravo que achou levantado preparou-lhe uma xícara de café. Não tendo ainda chegado os jornais, bebeu-a sem a leitura do costume.

Quem sabe por que fios tênues se prendem muitas vezes os acontecimentos humanos? Estácio ouviu o som longínquo de um tiro; era algum caçador, talvez; a suposição deu-lhe idéia de ir caçar, foi buscar a espingarda, proveu-se de pólvora e chumbo, e saiu.

Se a habilidade não era muita, parecia ter ainda diminuído naquela manhã, ou porque a mão estivesse menos firme, ou porque a vista andasse menos segura. Estácio caminhara longo tempo sem pensar no fim que o levava; ia absorto, alheio ao lugar e às coisas. Fez algumas tentativas de caça. Quando cansou de errar, consultou o relógio e viu que não era cedo. Tinha o braço cansado de suster a espingarda; só então reparou que não trouxera um pajem consigo. Dispôs-se a voltar. Vendo uma parasita, colheu-a com a intenção de a dar a Helena, como seu primeiro presente de núpcias. Depois desceu, em caminho para casa.

Vinha descendo, com a espingarda debaixo do braço, os olhos no chão, a passo lento, apesar de ser tarde. De uma vez que ergueu os olhos, viu um caso estranho, que lhe fez deter o passo. Um pouco abaixo, saía, de trás de uma casa velha, o pajem de Helena, conduzindo a mula e a égua. Estácio não soube que pensar daquilo; cedendo ao impulso, que não pôde dominar, deu um salto por cima da cerca de espinhos, agachou-se e esperou o resto.

O resto não se demorou muito. Assomou à porta da frente a figura de Helena. Depois de olhar cautelosamente para um e outro lado, saiu e montou a égua; o pajem cavalgou a mula e os dois desceram a trote.

Estácio sentiu uma nuvem cobrir-lhe os olhos; ao mesmo tempo, apertava o primeiro objeto que achou debaixo das mãos: era a cerca de espinhos. A dor fê-lo voltar a si; tinha a mão ensangüentada. Ao longe, cavalgavam Helena e o pajem. Logo que os viu desaparecer, Estácio saltou de novo à estrada. Sem resolução nem plano, caminhou em direção à casa donde vira sair a irmã. Era a mesma da bandeirinha azul que Helena cumprimentara de longe, alguns meses antes, e não esquecera de reproduzir na paisagem que dera ao irmão, no dia dos anos dele. Estas circunstâncias, antes indiferentes, apareciam-lhe agora como outros tantos artigos de um libelo.

O prédio parecia ainda mais velho do que a primeira vez que o vira; a caliça das paredes e das colunas ia caindo, e o esqueleto de tijolo estava a nu, em mais de um lugar. Alguma erva mofina brotava a custo junto às paredes, cobrindo com folhas descoloridas o chão desigual e úmido. Por baixo de uma das janelas havia um banco de pau, gretado pelo tempo, com as bordas roliças de longo uso. Tudo ali respirava penúria e senilidade.

— Não, dizia Estácio consigo, não é este o asilo de um Romeu de contrabando. Mora aqui alguma família pobre, que a caridade engenhosa de Helena vem afagar de longe em longe.

A solução do enigma pareceu-lhe tão natural que o moço resolveu parar a meio da aventura, e chegou a dar alguns passos para trás. Mas a suspeita é a tênia do espírito; não perece enquanto lhe resta a cabeça. Estácio sentiu o desejo imperioso de indagar o que aquilo era, e voltou sobre seus passos. Para entrar ali era necessário um motivo ou pretexto. Procurou algum; a aventura dera-lhe o melhor de todos. Olhou para a mão ferida e ensangüentada, e foi bater à porta.