Helena/XXVIII

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Naquela noite, a segunda de tão extraordinários sucessos, foi que Estácio sentiu toda a violência do amor que lhe inspirara Helena. Enquanto os detinha um vínculo sagrado, amara sem consciência; e ainda depois de esclarecido pelo padre, o esforço empregado em vencer-se e a própria natureza da catástrofe não lhe permitiram ver a extensão do mal. Agora, sim; roto o vínculo, restituída a verdade, ele conhecia que a voz da natureza, mais sincera e forte que as combinações sociais, os chamava um para o outro, e que a mulher destinada a amá-lo e ser amada era justamente a única que as leis sociais lhe vedavam possuir.

Durante as primeiras horas o coração mordeu rebelde o freio da necessidade. A vigília foi longa e crua, e a reflexão veio enfim dominar a tempestade interior, ou antes seus destroços. Ele viu que o padre tinha razão; que era força desfolhar a esperança de um dia. Ao mesmo tempo, o exemplo de Helena deu-lhe ânimo. Senhora do segredo de seu nascimento, e consciente de amar sem crime, a moça apressara, não obstante, o casamento de Estácio e escolhera para si um noivo estimado apenas. Se uma vez a palavra delatora lhe rompeu dos lábios, ela a retraiu logo, fazendo o mais obscuro dos sacrifícios.

Não quis Estácio ser menos generoso. Logo de manhã escreveu a Mendonça, pedindo-lhe que não deixasse de os ir visitar nesse dia. Não o fez sem custo, mas fê-lo sem arrependimento. Tinha por fim apressar o casamento de Helena e o seu, condenando-se a sofrer calado os golpes do avesso destino.

A manhã entretanto não trouxe a Helena o esquecimento e a paz. A noite não lhe serviu de remédio, antes legou à aurora toda a sua mortal angústia. Debilitada, nervosa, impaciente, não podia a moça vencer-se nem suportar-se. Ora, repelia com sequidão as palavras de D. Úrsula; ora, pedia intercedesse com Estácio para a resolução que ela admitia como único meio de a poupar à vergonha. A excitação moral era grande; cumpria aquietá-la por meios persuasivos. Helena fugia a todos; não encarava Estácio e D. Úrsula, sem que o pejo lhe colorisse a face, mudança tanto mais visível quanto que a vigília e a dor a tinham empalidecido muito. Diziam-lhe que a vontade do conselheiro estatuíra uma lei na família, segundo a qual ela continuava a ser parenta como dantes, e tão amada como era. A moça agradecia a generosidade, mas não podia fugir à idéia de haver contribuído para a usurpação. Queria que a deixassem ir ter com o pai, ao pé de quem a natureza e a consciência lhe indicavam que poderia estar sem remorso. Estácio e D. Úrsula respondiam-lhe com afagos e protestos; mas quando viram que estes eram inúteis, não houve mais que revelar-lhe a carta de Salvador.

O padre Melchior incumbiu-se de lhe fazer essa delicada comunicação.

— Seu pai, disse ele, praticou em seu favor um ato heróico; fugiu para lhe não fazer perder a consideração e o futuro. Leia esta carta, e veja se ela lhe dá a força necessária para resistir.

Helena pegou na carta com sofreguidão, leu-a de um lance d’olhos. O gemido que lhe rompeu o coração mostrou bem a ferida que acabava de receber. O padre acolheu-a lacrimosa e esvaecida em seus braços; disse-lhe palavras de conforto e de esperança. Nos primeiros minutos, Helena nada pôde ouvir; o golpe ensurdecera a alma. Melchior fê-la sentar-se ao pé de si; ela obedeceu sem consciência. Após alguns minutos de silêncio e concentração, a moça dirigiu a palavra ao padre e agradeceu-lhe a caridade. Depois referiu-lhe os acontecimentos de sua infância, os mesmos que o capelão ouvira. A sagacidade natural do espírito cedo lhe fizera ver que a posição de sua mãe não era a mesma das outras mães: essa descoberta, porém, não teve outra virtude mais que comunicar ao amor da filha uma intensidade e energia capazes de afrontar os mais fortes obstáculos, como se ela quisesse reunir em si toda a soma de afetos e respeitos que a sociedade afiança às situações regulares. Melchior ouviu-a comovido; nutrido da medula do evangelho, reconheceu um efeito da graça divina nesse amor imaculado, que valia por todas as absolvições da terra. Ele a aplaudiu e confortou; falou-lhe do futuro, do carinho de sua família, — sua, a despeito de tudo; enfim da obrigação em que ela estava de corresponder a tanta confiança.

Talvez Helena, em sua razão, correspondesse aos conselhos de Melchior; mas a razão é o que menos a dirigia naquelas circunstâncias aflitivas. Ela deixou o padre para recolher-se aos aposentos. Quando D. Úrsula ali foi, meia hora depois, achou-a profundamente abatida; a violência da crise passara. A linguagem que lhe falou foi maternal, ungida de amor e perdão; Helena ouviu-a agradecida, mas um sorriso descorado e sem convicção lhe entreabria os lábios. Supunha ler comiseração onde havia afeto e respeito, e o orgulho rebelava-se de inspirar o único sentimento que a consciência lhe dizia merecer.

As instâncias de D. Úrsula para que Helena se alimentasse foram inúteis; ela apenas recebia o que bastava para não sucumbir à fome. A companhia repugnava-lhe; assim, poucas vezes a viram desde os dias que se seguiram àquela funesta manhã. Mendonça não conseguiu mais do que os outros. A família teve o cuidado de anunciar que Helena se achava enferma. A aflição do noivo foi grande; mas todos buscaram tranqüilizá-lo. Nada havendo transpirado do acontecimento, fácil foi sustentar aquela explicação.

Melchior encomendara muito à família que vigiasse a moça, cujo espírito lhe parecia atrevido e tenaz; ele receava que Helena ou fugisse de casa, ou recorresse a algum ato de desespero. O mesmo padre desvelou-se em trazer a alma de Helena ao sentimento de resignação. A autoridade do caráter religioso, a influência que ele tinha no espírito de Helena, eram armas poderosas, temperadas com amor verdadeiro e paternal que o ligava à donzela. Nada poupou; mas tais esforços não tiveram mais fruto que os da família. Helena mal podia tolerar a situação.

Uma vez, como ela descesse à chácara, saiu Estácio a procurá-la, não a encontrando senão ao cabo de alguns minutos. Achou-a ao pé do tanque, no lugar em que lhe falara poucos dias antes, sentada no mesmo banco de pau. Vendo-o, estremeceu; ele aproximou-se, contente de a haver encontrado enfim. O dia estava feio; grossas nuvens negras pejavam o ar, túmidas de temporal próximo. Estácio convidou-a a recolher-se.

— Deixe-me estar aqui um instante mais, respondeu ela.

— Dois minutos apenas.

Sentou-se ao pé dela e ficaram calados. Helena tinha uma taquara na mão; Estácio quis tomar-lha; ela arremessou-a para longe. Ergueu-se então o moço e foi buscá-la; só então viu que estava molhada até certa altura; calculou que seria o fundo do tanque. O tanque era raso; não poderia dar a morte; mas, a suspeita de que Helena não recuaria diante do suicídio, aterrou naturalmente o espírito de Estácio. Parecendo-lhe que a causa não comportava o efeito, perguntou a si mesmo se os sucessos daqueles dias não teriam velado a razão da moça. Sentou-se de novo e falou-lhe com brandura.

Ao escutá-lo, sentiu Helena como uma ressurreição de outras horas, que julgava escoadas para sempre; um sorriso lhe animou os lábios sem cor, ao passo que os olhos doridos e murchos pareciam reviver de um resto de luz. Estácio falou-lhe de si, da tia, do padre e de Mendonça, dos próximos casamentos, da felicidade futura. Depois insistiu com ela para que entrasse. Uma brisa mais forte começava a agitar as árvores, e a tempestade ameaçava cair de repente.

— Ainda não, disse a moça; alguns minutos mais.

— Mas pode adoecer...

— Talvez, se todos quiserem a minha saúde. Há criaturas tão malfadadas que aqueles mesmos que as desejam fazer venturosas não alcançam mais do que preparar-lhes o infortúnio. Tal foi meu destino. Seu pai e minha mãe não tiveram outro pensamento; meu próprio pai foi levado do mesmo impulso, quando me obrigou a ser cúmplice de uma generosa mentira. Agora mesmo que ele me foge, com o fim único de me não tolher a felicidade, arranca-me o último recurso em que eu tinha posto a esperança...

— Helena! interrompeu Estácio.

— O último, repetiu a moça.

Esvaíra-se-lhe o sorriso, e o olhar tornara a ser opaco. Estácio teve medo daquela atonia e concentração; travou-lhe do braço; a moça estremeceu toda e olhou para ele.

A princípio foi esse olhar um simples encontro; mas, dentro de alguns instantes, era alguma coisa mais. Era a primeira revelação, tácita mas consciente, do sentimento que os ligava. Nenhum deles procurara esse contato de suas almas, mas nenhum fugiu. O que eles disseram um ao outro, com simples olhos, não se escreve no papel, não se pode repetir ao ouvido; confissão misteriosa e secreta, feita de um a outro coração, que só ao céu cabia ouvir, porque não eram vozes da terra, nem para a terra as diziam eles. As mãos, de impulso próprio, uniram-se como os olhares; nenhuma vergonha, nenhum receio, nenhuma consideração deteve essa fusão de duas criaturas nascidas para formar uma existência única.

O vento tornara-se mais rijo; uma lufada os despertou, em má hora, porque há sonhos que deviam acabar na realidade do outro século. Estácio ergueu-se; sacudiu valorosamente o torpor da felicidade, e reassumiu o papel que o pai lhe assinara ao pé de Helena. Esta desviou os olhos e cravou-os na água, fascinada e absorta. A idéia do suicídio roçaria deveras sua asa invisível pela fronte da moça? Estácio foi a ela, pegou-lhe nas mãos e convidou-a a sair dali.

— Entremos, disse ele pela terceira vez, olhe que vai chover.

Helena deixou-se levantar; um calafrio percorreu-lhe o corpo todo, e as mãos, que o moço ainda tinha entre as suas, estavam muito mais quentes que o natural.

— Ande repousar, continuou Estácio; pode adoecer, e não tem direito para tanto; nossa afeição não o consentirá nunca. Vamos...

— Amar-me-ão sempre? perguntou Helena.

— Oh! sempre!

— Impossível! Há uma voz no fundo de seu coração, que lhe dirá, de quando em quando, esta triste palavra: aventureira!

— Helena!

— Não posso ser outra coisa a seus olhos, prosseguiu a moça, tristemente. Quem o convencerá de que a declaração de seu pai não foi obtida por artifício de minha mãe? Quem lhe dará a prova de que, cedendo aos rogos de meu pai, não fiz mais do que executar um plano preparado já? São dúvidas que lhe hão de envenenar o sentimento e tornar-me suspeita a seus olhos. Resista quem puder; é-me impossível encarar semelhante futuro!

Helena caíra ofegante no banco. Estácio falou-lhe com abundância e ternura; jurou-lhe que sua família era incapaz da mínima suspeita; pediu-lhe por seu pai que não julgasse mal deles. Ela sorriu, mas foi um sorrir de incrédula.

Grossos pingos de chuva começavam a rufar nas árvores. Estácio pegou na mão de Helena para conduzi-la a casa. A moça fugiu-lhe, indo colocar-se alguns passos adiante, onde a chuva lhe caía mais em cheio na cabeça nua e no corpo levemente coberto. Quando Estácio, desvairado de terror, correu para ela, Helena afastou-se dele; mas nem seus pés o poderiam vencer nunca, nem lho permitiam agora as forças quebradas por tantas e tão profundas comoções. Ele alcançou-a; estendeu o braço em volta da cintura da moça, dizendo:

— Que capricho é esse? Vamos embora; eu quero que venha comigo para dentro.

Ao sentir o braço de Estácio, Helena estremeceu e fez um movimento para arredá-lo de si; mas a fraqueza traiu-lhe o pudor. Ela fitou no moço uns olhos de corça moribunda; as pernas fraquearam, e o corpo esmorecido iria a terra, se lho não sustivessem as mãos de Estácio.

— Deixe-me morrer! murmurou ela.

— Não! bradou o mancebo.

Com um gesto rápido, tomou nos braços, estendido, o corpo exausto de Helena, e caminhou na direção da casa. O vento flagelava-os; a chuva, que subitamente caía a jorros, alagava-os sem misericórdia; ele ia andando, o mais depressa que lhe permitia o peso de Helena, cuja cabeça pendia para a terra, e de cujos lábios brotavam trechos soltos de frases sem sentido.

D. Úrsula viu entrar aquele doloroso espetáculo; correu a receber Helena, que Estácio depositou em um sofá, donde foi transferida ao leito. A febre, já começada antes dela sair, tomara conta enfim da pobre moça. Um médico foi chamado à pressa; o padre Melchior correu por baixo d’água até à casa de Estácio. As primeiras horas foram de ansiedade e susto; o estado da doente era grave; assim o disse o médico; assim o tinham sentido os corações amigos.

D. Úrsula pagou naquela ocasião os serviços que, em caso análogo, lhe prestara Helena, mau grado o peso dos anos, que lhe não permitiam longas vigílias nem aturado trabalho. Velou a boa senhora à cabeceira da enferma durante essa primeira noite de incerteza e terror. Mendonça, que ali fora sem suspeitar nada, porque a doença que lhe disseram ter padecido Helena, supunha ele ser passageira, e em todo caso, estar quase extinta, Mendonça recebeu essa triste notícia com a morte no coração.

Durante sete dias o estado de Helena apresentou alternativas que lançavam na alma dos seus a confiança e a desesperação. Algumas horas houve de delírio, durante o qual dois nomes volviam freqüentemente aos lábios da enferma, — o de Estácio e o do pai. Nas horas da razão, falava pouco, não proferia nenhum nome, salvo o de Melchior que ela queria ver junto de si. O capelão obedecia docilmente. Ao pé dela, via-a com pena, mas sem desesperação; primeiramente, porque ele aceitava sem murmúrio os decretos da vontade divina; depois, porque não sabia ao certo se, em tal situação, era a vida melhor do que a morte. Em todo caso, consolava-a.

No quarto dia chegou a família de Camargo, e, sabendo da doença de Helena, apressou-se a ir a Andaraí. Ao ver Eugênia, a moça sorriu tristemente, lampejo de inveja que para logo se apagou e morreu no coração.

Estácio mal ousava entrar na alcova da doente e não podia viver fora dela. Sua aflição era patente. Ele prometia a si mesmo todos os sacrifícios em troca da vida de Helena, espreitava uma esperança no rosto do médico, e interrogava o coração da tia e do padre. Na noite do sétimo dia da cena do jardim, D. Úrsula, que ficara ao pé de Helena, mandou chamar à pressa o sobrinho e o padre Melchior, que estavam na sala contígua. Acorreram os dois. Helena tivera uma síncope, que D. Úrsula cuidara ser a morte. Voltando a si, leu a moça a sua sentença no rosto de todos três.

— Ainda não, murmurou ela; ainda não é a morte.

D. Úrsula chegou-se-lhe mais perto, beijou-a, disse-lhe algumas palavras de conforto.

— Deixe estar, respondeu ela, deixe que eu não morro; estou só muito doente.

Estácio buscou animá-la, mas a voz morreu-lhe às primeiras expressões, e ele saiu. Melchior acompanhou-o.

— Uma coisa poderia talvez salvá-la, disse aflito o moço; era a presença do pai. Vou mandá-lo procurar por toda a parte. Havemos de achá-lo; é preciso que o achemos.

Melchior aprovou a idéia do mancebo; e não lhe disse que o remédio viria talvez tarde, se viesse. Estácio ordenou as coisas para a seguinte manhã. Voltaram à alcova da enferma. Esta fechara os olhos, como se dormisse. Houve então entre aquelas quatro paredes meia hora de silêncio, interrompido apenas, de quando em quando, pelos movimentos que a doente fazia, como a querer mudar de posição. No fim deste tempo, abriu os olhos e murmurou algumas palavras. Chegou o médico, viu-a e desenganou a família.

Enquanto Melchior dava as ordens precisas para que Helena tivesse os socorros espirituais, Estácio saiu dali, para ir, longe, desabafar o desespero; desceu à chácara, vagou por ela delirante, a soluçar como uma criança, ora abraçado a uma árvore, ora ajoelhado e pedindo a Deus a vida de Helena. O coração do moço não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levara, e ele rezou, rezou sozinho, sem hipocrisia nem dúvida. Mendonça veio achá-lo nessa luta derradeira entre a realidade e a esperança. Não o consolou; não tinha consolações que distribuir, porque também a dor lhe devastara o coração. Nos braços um do outro, choraram o mesmo bem que se lhes ia embora.

Um escravo veio chamar Estácio à pressa; ele subiu trôpego as escadas, atravessou as salas, entrou desvairado no quarto, e foi cair de joelhos, quase de bruços, junto ao leito de Helena. Os olhos desta, já volvidos para a eternidade, deitaram um derradeiro olhar para a terra, e foi Estácio que o recebeu, — olhar de amor, de saudade e de promessa. A mão pálida e transparente da moribunda procurou a cabeça do mancebo; ele inclinou-a sobre a beira do leito, escondendo as lágrimas e não se atrevendo a encarar o final instante. Adeus! — suspirou a alma de Helena, rompendo o invólucro gentil. Era defunta.

A noite foi cruel para todos. D. Úrsula, profundamente abatida pela dor e pelas vigílias, não consentiu, ainda assim, que outras mãos amortalhassem Helena; ela mesma lhe prestou esse derradeiro e triste obséquio. A morte não diminuíra a beleza da donzela; pelo contrário, o reflexo da eternidade parecia dar-lhe um encanto misterioso e novo. Estácio contemplou-a com os olhos exaustos, o padre com os seus úmidos. Melchior suportara a dor até ao momento da definitiva separação; agora, que a moça se ia de vez, deixou-se abater enfim, ao pé daqueles pálidos restos, despojo último de generosas ilusões.

No dia seguinte, prestes a sair o enterro, as senhoras deram à donzela morta as despedidas derradeiras. D. Úrsula foi a primeira que lhe prestou esse dever, seguiu-se Eugênia e seguiram as outras. Estácio viu-as subir, uma a uma, o estrado em que repousava a essa. Depois, quando ia fechar-se o féretro, caminhou lentamente para ele; trepou ao estrado, e pela última vez contemplou aquele rosto, — sede há pouco de tanta vida, — e a coroa de saudades que lhe cingia a cabeça, em vez de outra, que ele tinha direito de pousar nela. Enfim, inclinou-se também, e a fronte do cadáver recebeu o primeiro beijo de amor.

Fecharam o féretro; ao moço pareceu que o encerravam a ele próprio. Saindo o enterro, deixou-se Estácio cair numa cadeira, sem pensar nada, sem sentir nada. Pouco a pouco, despovoou-se a casa; os amigos saíram; um só de tantos ainda ali ficou, a lastimar consigo a noiva, tão cedo prometida e tão cedo roubada. Esse mesmo saiu, enfim, não ficando mais do que a família, cujo pai espiritual era Melchior.

Sozinho com Estácio, o capelão contemplou-o longo tempo; depois, alçou os olhos ao retrato do conselheiro, sorriu melancolicamente, voltou-se para o moço, ergueu-o e abraçou com ternura.

— Ânimo, meu filho! disse ele.

— Perdi tudo, padre-mestre! gemeu Estácio.

Ao mesmo tempo, na casa do Rio Comprido, a noiva de Estácio, consternada com a morte de Helena, e aturdida com a lúgubre cerimônia, recolhia-se tristemente ao quarto de dormir, e recebia à porta o terceiro beijo do pai.