Historia da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal/IX

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LIVRO IX



Prohibe-se a entrada no reino ao nuncio Ricci. Explicações e promessas deste. Dá-se-lhe a permissão de entrar, debaixo de certas condições restrictas, que elle não acceita. Breve de 22 de setembro de 1544 mandando suspender a Inquisição. Procedimento audaz do nuncio Lippomano. — Enviatura de Simão da Veiga a Roma. Carta d'elrei a Paulo iii. — Suspeitas contra Balthasar de Faria. Expedientes para conciliar os animos na curia romana. — Breve de 16 de junho de 1545 em resposta á carta d'elrei. — Renovação das negociações amigaveis. Transacção. — Entrada do nuncio Ricci. Procedimento irritante deste em Lisboa. Apresenta a elrei o breve de 16 de junho. Réplica frouxa áquelle singular documento. — Novas phases da lucta. Propostas e acordos ignobeis. Difficuldades procedidas da parcialidade ostensiva de Ricci a favor dos christãos-novos. Resoluções apresentadas mutuamente pelas duas cortes acerca do estabelecimento definitivo da Inquisição. — Simão da Veiga parte para Portugal com a ultima decisão do papa, e morre no caminho. — Elrei recebe mal aquella decisão, não na substancia, mas nos accidentes. Nota energica ao nuncio, e demonstrações de desgosto dirigidas a Balthasar de Faria. — Parecer notavel de quatro christãos-novos dado a elrei sobre o modo de remover as resistencias ao estabelecimento do tribunal da fé. Os inquisidores rebatem as propostas dos quatros hebreus. — Probabilidades de um triumpho completo para os fautores da Inquisição.

A noticia da vinda de Ricci, eleito, segundo parece, nesta conjunctura arcebispo sypontino, era acompanhada dos usuaes commentarios, commentarios que o procedimento anterior da curia romana infelizmente justificava. O proprio governo cria, ou fingia crer, a respeito delle o que já correra de plano a respeito do bispo de Bergamo, isto é, que vinha comprado pelos christãos-novos[1]. O systema que desde logo se adoptou foi o da moderação e firmeza. Escreveu-se a D. Christovam de Castro, deão da capella da infanta D. Maria, mulher do principe D. Philippe de Castella, que se fosse encontrar a Valladolid com o arcebispo sypontino, e que da parte d'elrei lhe dissesse que, constando não ser simplesmente a sua missão substituir o nuncio Luiz Lippomano, mas tambem embaraçar a acção do tribunal da fé, sua alteza o advertia de que não era possivel consentir na sua entrada em Portugal, e lhe pedia que sobrestivesse na viagem até que o pontifice respondesse definitivamente ás considerações que ainda uma vez lhe íam ser submettidas a este respeito. Não tardou a resposta. Montepoliziano protestava que as informações dadas a elrei eram inexactas; que o fim da sua enviatura, além da substituição de Lippomano, era unicamente tractar da reunião do futuro concilio; que, na verdade, vinha incumbido de lhe fazer algumas communicações relativas á questão do cardeal de Viseu e á Inquisição, mas que de nenhum modo queria intervir nos actos desta e que, ainda antes de saír de Roma, sendo sollicitado pelos agentes dos christãos-novos para usar da sua auctoridade a favor delles, o havia formalmente recusado; que, todavia, para obedecer a sua alteza, se demoraria em Castella emquanto se lhe não ordenasse o contrario. Estas declarações de Montepoliziano eram tão conciliadoras, que a insistencia da corte[2] de Portugal em lhe prohibir a entrada no reino, quando elle asseverava que o seu procedimento não podia ser diverso do de Lippomano, e quando este, nomeiado coadjutor do bispo de Verona, tinha necessariamente de largar o cargo para ir administrar aquella diocese, sería uma prova de que absolutamente se não queria em Lisboa um representante do pontifice, embora elle se abstivesse de intervir nos negocios do tribunal da fé, como o coadjutor de Verona até então o fizera. Expediu-se, portanto, um correio a D. Christovam de Castro com uma carta d'elrei para o novo nuncio, na qual se lhe significava que, vistas as suas explicações, e suppondo que seguiria o exemplo do seu antecessor, cessavam todos os obstaculos á sua entrada no reino. Aquella resolução foi igualmente communicada ao bispo coadjutor de Verona[3].

O que parece resultar destes factos e dos que subsequentemente occorreram é que tanto o delegado pontificio como elrei tinham feito o seu calculo. O primeiro esperava remover em parte os embaraços que devia encontrar no desempenho da sua missão, atenuando a principio a importancia della e inculcando que se tractava apenas de uma substituição de nuncio: o segundo, que provavelmente tinha noticias mais exactas sobre a missão de Ricci do que as dadas por Balthasar de Faria, queria evidentemente collocar o novo nuncio na alternativa ou de não a cumprir, tornando-se inutil a sua vinda, ou de se conservar em Hespanha, deixando a Inquisição ainda mais desaffrontada, se era possível, do que até ahi estivera. A permissão que dava a Montepoliziano, acompanhada da condição de serem os seus actos regulados precisamente pelo anterior proceder do bispo de Bergamo, punha em grande perplexidade o novo nuncio, que esperava, talvez, que D. João iii se contentasse com a sua resposta, na verdade obsequiosa, mas assás vaga para dar campo depois ás interpretações e aos expedientes em que era tão fertil a diplomacia romana.

Passava-se isto nos ultimos mezes de 1544. Apesar da permissão communicada a Montepoliziano por D. Christovam de Castro, elle não se dirigira á corte de Portugal. As restricções que se lhe impunham e, provavelmente, ordens mais terminantes de Roma obrigavam-no a desmentir as proprias palavras. Em tal situação, era forçoso tirar a mascara. De feito o coadjutor de Verona recebeu inesperadamente um correio enviado pelo seu futuro successor com communicaÇões importantes. Paulo iii expedira a 22 de setembro um breve, que Luiz Lippomano devia intimar aos prelados e aos inquisidores e mandar affixar nas portas da sé de Lisboa e de qualquer outra do reino. Era o conteúdo do breve que, tendo sido enviado o arcebispo eleito sypontino para averiguar até que ponto tinham fundamento as altas queixas alevantadas em Roma contra a Inquisição de Portugal, se não désse á execução sentença alguma definitiva do tribnual antes da sua chegada, e que nos processos pendentes ou intentados de novo se procedesse em tudo do modo ordinario, menos a julgamento final até que o pontifice fosse devidamente informado do estado da questão pelo novo nuncio. Esta resolução era sanccionada com as penas de excommunhão e interdicto contra quaesquer individuos que directa ou indirectamente posessem obstaculo ao cumprimento dos mandatos apostolicos[4].

É de crer que o breve de 22 de setembro fosse acompanhado de instrucções particulares para Luiz Lippomano. Este homem, até ahi tão moderado, ou antes tão indifferente a tudo quanto dizia respeito á Inquisição, possuiu-se de repente de um vigor inesperado. A corte achava-se em Évora. O primeiro acto do nuncio foi intimar ao infante inquisidor-mór as inopinadas determinações do pontifice, mandando depois affixar copias authenticas do breve nas portas das cathedraes d'Évora, de Lisboa e de Coimbra. Foi depois de practicar estes actos de auctoridade, que deu conta a elrei das resoluções do papa e de que, na parte que lhe tocava, ellas estavam cumpridas[5].

O effeito moral deste procedimento audaz devia ser tanto mais profundo, quando menos era de esperar do homem que o tivera. O primeiro impeto de D. João iii foi mandar saír do reino Luiz Lippomano, e prohibir expressamente a entrada de Ricci, não obstante haver-se-ihe já expedido a permissão para a realisar. Acalmada, porém, a irritação momentanea, entendeu-se que era melhor proceder com vigor, mas com prudencia[6]. Sobresteve-se na expulsão de Lippomano, e enviaram-se ordens a D. Christovam de Castro para que avisasse o arcebispo sypontino de que elrei se via obrigado a manter por emquanto a primeira resolução ácerca da sua entrada no reino. Depois do que se passara com o bispo de Verona, de nenhum modo podia ser elle admittido sem explicações do pontifice, a quem se mandaria um agente especialmente encarregado de tractar aquelle assumpto. Escrevendo em particular ao imperador, D. João iii ordenou a D. Christovam de Castro que désse conta do successo a varias personagens da corte de Castella, fazendo-lhes sentir quanto era justo o resentimento que em Portugal produzira aquelle impensado successo.

Em harmonia com o que se acabava de communicar a Montepoliziano lomou-se a resolução de se enviar a Roma um agente extraordinario encarregado de entregar ao papa uma carta d’eirei concebida em termos energicos, na qual se pintava ao vivo o profundo desgosto que no seu animo tinham produzido, não só as providencias contidas no breve de 22 de setembro, mas tambem o modo como o nuncio Lippomano procedera em tal conjunctura. Simão da Veiga, de quem elrei muito fiava, foi escolhido para aquella missão, ácerca da qual se lhe deram as instrucções necessarias. Resumia-se nestas a materia da carta que se dirigia ao pontifice, e previam-se os diversos resultados que ella podia ter. Se o papa não concedesse senão parte do que elrei ahi pedia em satisfação de seus aggravos, não devia acceitar essa concessão, declarando que não estava para isso auctorisado. Communicaria para Lisboa o occorrido, e esperaria pela decisão final. Se a recusa, porém, fosse absoluta, deviam, elle ou Balthasar de Faria, ou ambos junctos, dar conhecimento da questão áquelles cardeaes a quem parecesse conveniente dá-lo, annunciando-lhes a intenção de fazer propor o negocio em consistorio. Suppondo que o papa não se movesse com esta ameaça, feita de um modo indirecto, deviam fazê-la elles ao proprio pontifice, pedindo-lhe licença para cumprirem as ordens terminantes que tinham de fazer ler na assembléa dos cardeaes a carta do seu soberano, no caso de ser a resposta a esta uma completa denegação de justiça. Tinha elrei razões de crer que o papa não deixaria ir as cousas tão longe; mas, quando assim succedesse, a ameaça seria cumprida. Dado este ultimo passo, Simão da Veiga exigiria uma certidão de haver communicado aquelle documento ao collegio dos cardeaes e, obtida a certidão, ou ainda sendo-lhe negada, saíria immediatamente de Roma[7].

Numa instrucção separada recommendava-se, porém, que na audiencia do papa, Balthasar de Faria, fingindo-se indiscreto, offerecesse mostrar aquell'outra instrucção, e que, tanto elle como Simão da Veiga, repetissem o seu conteúdo, com igual indiscrição, a todas as pessoas que podessem prever as consequencias das ordens terminantes que encerrava. Não devia Simão da Veiga dar-se por satisfeito sem a revogação do breve de 22 de setembro, a concessão pura e simples da Inquisição conforme o direito commum, a reducção da nunciatura aos limites em que a exercera Lippomano e a abstenção absoluta do papa em intervir a favor de D. Miguel da Silva. Taes eram as definitivas exigencias d’elrei, ordenando-se aos dous dessem a entender geralmente que, não sendo ellas satisfeitas, nunca Montepoliziano entraria em Portugal, e sería, provavelmente, expulso o coadjutor de Verona. Todavia, e apesar da primeira instrucção, Simão da Veiga não devia em caso nenhum retirar-se de Roma sem escrever a elrei e receber de Portugal ulteriores communicações[8].

A carta para o papa, datada de 13 de janeiro, era um longo arrazoado em que se rememoravam todos os factos anteriores relativos á conversão dos hebreus, ao estabelecimento da Inquisição, ao proceder desta e ao delrei, e ás resistencias que se haviam suscitado. Em toda essa longa Iliada só houvera da parte do principe, de seu irmão D. Henrique e dos inquisidores zelo de religião, desprezo de proveitos mundanos, abnegação, caridade, brandura, sacrificios; da parte de Roma tibieza, instabilidade, corrupção de ministros, favor para os sacrilegos, esquecimento dos interesses da fé; da parte dos conversos, ingratidão, calumnias, dissimulação impiedade, vinganças atrozes. Se nessa terrivel lucta de vinte annos havia victimas que deplorar era no grupo que prendia, que processava, que atormentava, que sentenciava, que sepultava em carceres perpetuos, que queimava, que negava ás cinzas dos mortos uma sepultura christan, e que nem sequer tolerava aos perseguidos a triste redempção do desterro. Quasi até o fim, este notavel documento é um estudo curioso dos recursos que a longa practica pôde subministrar á hypocrisia; collecção completa de todas as formulas devotas, de todas as pias irritações, de todas as humildades insolentes, com que um zelo fingido sabe tecer a sua linguagem e mascarar ruins paixões. E' quasi ao concluir que ao auctor daquelle singular papel escapam phrases de mal reprimida ironia, as quaes terminam num rugido semelhante ao do tigre que lambe alegre as garras, saciado de sangue e carniça. O rei perguntava ao pontifice se elle esperava que o novo nuncio o informasse melhor do que o antigo. Suppunha-se que Ricci vinha prevenido a favor dos christãos-novos, e essa presumpção tomava em Portugal maior plausibilidade pelo alvoroço com que os interessados esperavam sua vinda. Na verdade devia reputar-se exempto de corrupção um homem que sua sanctidade tinha em tão subida conta; mas sería mais digno de confiança que esse homem, que se propunha agora estudar a questão, do que elle rei, que tantos annos havia a estudava? Se Montepoliziano vinha porque o nuncio actual e os seus predecessores não tinham informado bem a corte de Roma, que nelles depositava inteira confiança, isso provava a inutilidade de os ter em Portugal. Em tal caso, o papa devia convir em que se acabasse com a nunciatura, como tantas vezes lhe fora pedido. «Entretanto, o escandalo que se temia — accrescentava a carta — contra a sancta Inquisição parece ter sido prevenido pelo juizo Deus. O breve de 22 de setembro, negoceiado ' em parte para salvar os réus sentenciados em Lisboa, como remedio chegou tarde»! Vê-se que o rei e a inquisição, receiosos da missão de Montepoliziano, tinham, de prevenção, reduzido a cinzas todos os desgraçados que elle podia salvar. E o rei, blasphemando da Providencia, converti-a em ré da propria atrocidade. Depois, ponderando os inconvenientes da entrada do nuncio e da execução do ultimo breve, pedia ao papa a revogação deste, e justificava por esses inconvenientes a resolução que tomara ácerca do delegado apostolico. Pedia, por fim, como reparação de offensas tão repetidas, o estabelecimento definitivo da Inquisição com as condições d’existencia que tinha por toda a parte, de modo que ella podesse proceder com plena liberdade, e terminava, depois de mil protestos de affecto filial ao supremo pastor e de obediencia rendida aos mandados apostolicos, por ameaças assás explicitas: «Se vossa sanctidade não prover neste caso como deve e como espero, não poderei deixar de dar eu o remedio, confiando não sómente em que vossa sanctidade me terá por sem culpa do que succeder, mas tambem que o commum dos fiéis e os princípios christãos reconheçam que não fui eu quem deu causa aos males que possam sobrevir»[9].

Escreveu-se na mesma conjunctura a Balthasar de Faria, com quem, segundo parece, elrei estava irritado. Tinham-se recebido informações pouco favoraveis ao procurador da Inquisição. Dizia-se que, não só elle conviera na vinda de Montepoliziano, mas até na expedição do breve de 22 de setembro, facto na verdade inexplicavel. Escrevendo ao seu agente, elrei mostrava duvidar de taes boatos, e os motivos que dava para essa equivaliam a amargas reprehensões, a ser verdade o que se dizia. O facto, porém, era que o cardeal Farnese, remettendo aquelle breve a Montepoliziano, lhe affirmara que fora expedido com a annuencia do agente português. Elrei esperava que este lhe explicasse tão singular mysterio.[10].

A inesperada frouxidão de Balthasar de Faria , cuja causa a corrupção dos tempos faz suspeitar, e a morte do cardeal Santiquatro, do homem que mais lealmente servira por muitos annos ao rei de Portugal, explicam em parte o bom resultado que os esforços dos christãos-novos acabavam de conseguir. Santiquatro fallecera em outubro de 1544, e o protectorado de Portugal vagara. Era cargo que muitos ambicionavam, não só pela importancia que dava na curia o ser protector desta ou daquella potencia catholica, mas tambem pelos proventos materiaes que d’ahi resultavam[11]. O deixar em suspenso a escolha do successor era meio poderoso de conciliar benevolencias numa conjunctura em que tão necessarias se tornavam, visto que, conforme as instrucções dadas a Simão da Veiga, o negocio da Inquisição poderia ser levado ao consistorio . Para predispor ainda melhor os animos, escreveu-se uma especie de circular a dez cardeaes de maior confiança, e deram-se a Simão da Veiga mais tres exemplares della com os subscriptos em branco, pava serem endereçados a alguns outros membros do sacro collegio aos quaes fosse conveniente lisongeiar[12]. Ao cardeal Farnese dirigiu-se, porém, uma carta especial, em que elrei lhe significava o profundo desgosto que lhe causara o breve de 22 de setembro e os actos practicados pelo eleito de Verona. A expedição daquelle breve magoava-o tanto mais, quanto era certo que devia ter passado pelas mãos do cardeal, como ministro de seu avô, e que os protestos de benevolencia delle recebidos o faziam até ahi acreditar que nunca teria consentido em resoluções, que, redundando em desserviço de Deus, não podiam deixar de ser, para elle rei, uma gravissima offensa[13].

Com os elementos que se preparavam para combater a preponderância que os christãos-novos haviam tornado a adquirir na curia, e com as demonstrações de firmeza que o poder civil dava ao papa, era difficultoso que o animo deste e dos seus ministros não vacillasse. A irritação da corte de Portugal tomava um caracter assás grave. A prohibição da entrada do novo nuncio, acompanhada da ameaça de fazer saír de Lisboa o bispo eleito de Verona, era um aresto que não convinha deixar na historia das relações diplomaticas entre as duas cortes. E’ certo, porém, que, apesar de todos os elementos que se haviam colligido para assegurar exito feliz á negociação, Roma entendeu que, diante da altivez com que o assumpto era tractado e da linguagem asperrima da carta dirigida por D. João iii ao pontifice, deveria manter, ao menos na apparencia, a propria dignidade, recusando ostensivamente ceder. Como veremos, as negociações eram activamente conduzidas por Simão da Veiga e por Balthasar de Faria; mas, posto que tudo fizesse esperar feliz desenlace, o pontifice não podia deixar de fazer uma publica manifestação de despeito. A 16 deste mez, Paulo iii expediu um breve, em que respondia no tom da dignidade offendida á carta mais que severa do rei de Portugal. Ponderava que as suspeitas calumniosas que na questão dos judeus portugueses e da Inquisição se lançavam sobre os ministros e officiaes da curia romana podiam ser retorquidas com igual fundamento contra os ministros e officiaes da coroa, porque em toda a parte as funcções publicas acarretavam aos que as exerciam o inconveniente da diffamação. O breve inhibitorio, pelo qual se obstara á execução de sentenças por crimes religiosos até a chegada de Ricci, não podia explicar o procedimento que se tivera com o nuncio, porque esse procedimento fora anterior ao breve. Este era apenas um acto de equidade e justiça. As queixas que se faziam em Roma contra a Inquisição de Portugal eram terriveis, e os proprios agentes d’eirei tinham convindo em que os factos se averiguassem por intervenção do novo nuncio, e se verificasse assim de que lado estava a verdade. As instrucções dadas a Montepoliziano limitavam-se a este exame; mas depois da partida do nuncio tinham recrescido novos e mais altos clamores sobre as scenas tremendas que se passavam em Portugal, onde já muitos christãos-novos haviam sido pasto das chammas, e muitos mais, no fundo das masmorras, esperavam igual supplicio. Entendera então elle pontifice que as informações de Montepoliziano seríam ama inutilidade quando só lhes restasse procurá-las ácerca de homens reduzidos a cinzas. Pôr um dique a taes horrores era não só obrigação sua como supremo pastor, mas era-o, até, como simples christão. Suspendendo a execução das sentenças, não favorecia a impunidade; porque os réus lá ficavam em poder dos inquisidores. Se fossem culpados, podiam depois ser punidos; se fossem innocentes, podiam ser salvos. Qualificando-se de parcial tão justo procedimento, mostrava-se, porventura, mais desejo de encubrir os erros dos juizes, do que de impor condigno castigo aos culpados. A Inquisição era uma delegação da sé apostolica, e o seu objecto inteiramente espiritual: ninguem, portanto, podia disputar-lhe a elle papa o direito de examinar os actos dos inquisidores, e de escutar as queixas dos perseguidos. Em vez de o injuriar e de offender a sancta sé na pessoa do nuncio, elrei devera ter agradecido aquelle arbitrio, se as suas intenções eram sinceras e puras. Evitava-se assim que Deus buscasse algum dia nas mãos de ambos, rei e papa, os vestigios do sangue de tantas victimas. Acerca da questão do bispo de Viseu, Paulo iii não se exprimia menos energicamente, posto que as doutrinas que estabelecia e os factos que citava estivessem longe da solidez dos que invocava a respeito dos christãos-novos. Pondo no esquecimento as phases por que esse negocio passara, o pontifice recordava-se tão sómente de que elrei devera ter restituido a D. Miguel da Silva as rendas e beneficios de que o privara, ou, suppondo-o criminoso, tê-los entregado ao nuncio ou a outro delegado da sancta sé. Se as provas dos seus crimes lhe tivessem sido presentes, elle papa não o teria eximido de severo castigo. Se não o fizera, fora por ignorar quaes eram os seus delictos. Mas, ainda na hypothese de ser criminoso o bispo, era á sé apostolica que competia dispor das rendas ecclesiasticas do bispado. Terminava, deplorando que neste assumpto elrei se mostrasse tão differente, não só dos seus antepassados, mas tambem de si proprio, e dava a entender que, se o rei de Portugal não viesse a melhores termos, usaria para com elle de mais heroicos remedios[14].

Posto que se houvesse expedido esta áspera resposta a Montepoliziano para a apresentar a D. João iii quando entrasse em Portugal, nem por isso deixavam as negociações de se ter continuado sempre. Chegou-se, até, a um accordo, e foi ceder-se um pouco de parte a parte. O cardeal Santafiore, neto do papa, escreveu uma carta a elrei, na qual declarava que o pontifice tinha ultimamente resolvido fazer a respeito da Inquisição as concessões sollicitadas por Simão da Veiga, em conformidade das suas instrucções; mas que para isso era indispensavel que se permittisse ao nuncio Montepoliziano o livre acesso em Portugal. Esta carta era acompanhada de outras de Simão da Veiga e de Ignacio de Loyola, o celebre fundador da companhia de Jesus, particular affeiçoado de D. João iii, em que se lhe assegurava que, accedendo áquella condição, se chegariam a resolver de modo satisfactorio as difficuldades ainda uma vez suscitadas ao definitivo estabelecimento da Inquisição[15].

Havia entre a linguagem firme e altiva do breve de 26 de junho e esta facilidade em vir a um accordo, presupposta a admissão do nuncio Ricci, eontradicção evidente. Se o procedimento do papa dependia das informações delle, somo podia comprometter-se a fazer uma concessão que sería, á vista das suas proprias expressões, ama flagrante injustiça, se as informações fossem desfavoraveis aos inquisidores? Como se defenderia, quando, na phrase do breve, Deus lhe buscasse nas mãos os vestigios do sangue de tantas victimas? As diligencias de Ignacio de Loyola, a benevolencia maior ou menor dos cardeaes a quem se escrevera, quaesquer influencias, em summa, que se movessem para minorar no animo do pontifice os effeitos da audaz resistencia de elrei, effeitos que se fingia durarem ainda ao expedir-se o breve de 22 de junho, não bastam para explicar a intenção manifestada de virem a fazer-se tão grandes concessões. Outras circumstancias, porém, concorriam que legitimam a conjectura de que se haviam empregado meios mais efficazes para facilitar o bom desempenho de Simão da Veiga no negocio de que fora incumbido. Os factos referidos nos livros precedentes fazem por certo antever desde já ao leitor de que natureza eram esses outros meios a que se recorria.

Temos visto ao decurso desta narrativa quanto o cardial Farnese, o principal ministro de Paulo iii seu avô, favorecia D. Miguel da Silva, e as estreitas relações que a identidade de odios travara entre este e os christãos-novos. O bispo de Viseu tinha sido sempre, mais ou menos ostensivamente, um tropeço em todas as negociações sobre aquelle assumpto. Posto que de modo indirecto, já, como vimos, elrei se queixara de Farnese por causa do breve de suspensão, que levantara tamanha tempestade e que não podia ter sido expedido sem annuencia delle. Assim, os dado ao prelado português era uma causa não menos poderosa de irritação. Assim, os termos entre a corte de Lisboa e o primeiro ministro do papa não podiam ser os mais amigaveis. O figurar na negociação o cardeal Santafiore, não apparecendo o menor vestigio de intervir nella seu primo[16], é indicio bem claro desse mutuo desgosto. Independente de quaesquer incentivos secretos que Farnese tivesse para favorecer as pretensões dos hebreus portuguses, haviam um motivo assás serio para lhe esfriar a benevolencia para com D. João iii. A longa espectativa da avultada pensão que elle sollicitava havia tantos annos tinha-se a final realisado em 1544, quando os clamores e esforços dos christãos-novos, atrozmente perseguidos, começavam a despertar Roma da sua indifferença. Reconhecera-se a opportunidade de resolver a pretensão do cardeal, impondo a pensão de tres mil e duzentos cruzados annuaes, não em bens de mosteiros, conforme até ahi se tractara, mas em rendas mais seguras e bem paradas das mitras de Braga e de Coimbra. A concessão, porém, tinha ficado, digamos assim, nas regiões da doutrina, e até os princípios de 1545 Farnese não recebera um ceitil das sommas a que se lhe assegurara ter direito desde os fins de 1543. Não devia estar o cardeal satisfeito, circumstancia que talvez explique em parte a recrudescencia da compaixão da corte de Roma pelos hebreus portugueses. Chegadas, porém, as cousas da Inquisição a termos em que a má vontade do primeiro ministro do papa podia inutilisar todos os esforços a favor della, D. João iii lembrou-se da divida. Não só se reservaram os rendimentos das duas mitras necessarios para se remir o encargo, mas até se remetteu logo o dinheiro para Roma. E ainda a generosidade d’elrei não ficou em tão pouco mandaram-se pagar mais tres annos, o corrente e dous adiantados. O fulgor de tanto ouro devia illuminar o animo do prelado romano e varrer-lhe da consciencia mais de um escrupulo ácerca da justiça e imparcialidade dos membros do tribunal da fé[17].

Aproveitou-se igualmente de um modo habil o obito do cardeal Santiquatro. Havia a obter a confirmação de prelados para antigas sés vagas e a de novas erecções de bispados, de que então se tractava para satisfazer a vaidade ou a cubiça daquelles individuos importantes da corte fradesca de D. João iii, os quaes não tinha sido possivel accommodar em reformadores e provinciaes das ordens monasticas, ou que punham mais alto a mira das suas ambições. Havia tambem providencias relativas a certos mosteiros opulentos, ácerca das quaes cumpria sollicitar a approvação de Roma. Eram negocios que tinham de ir ao consistorio, e cuja apresentação no conselho pontificio não era cousa que se fizesse de graça. As propostas desta especie pertenciam aos cardeaes protectores das diversas nações a que os negocios tocavam, e constituíam um dos proventos mais solidos dos protectorados. Era por isso que o de Portugal se tornara extremamente importante nos meiados do seculo xvi. A necessidade de recorrer a Roma augmentava diariamente numa corte onde as questões e intrigas clericaes e monasticas mereciam os mais extremosos cuidados. Em vez, pois, de attender ás sollicitações directas ou indirectas dos que pretendiam succeder a Santiquatro, D. João iii ordenou ao seu agente que offerecesse ao Papa encarregar-se elle proprio das propostas, tirando d'ahi os emolumentos do estylo, que nesta conjunctura tinham de ser assás avultados. Era um modo delicado de abrandar as asperezas do velho Paulo iii. Factos anteriores induziam elrei a acreditar que a oíferta não havia de ser mal recebida, e ao mesmo tempo esperava que o expediente fosse util, não só ás propostas de que se tractava, mas ainda á solução dos outros negocios então pendentes na curia[18].

Estas transacções ignobeis precediam a expedição do breve de 16 de junho. Não passava aquelle breve de uma ostentação van, de uma demonstração esteril destinada a alimentar de futuro as esperanças dos christãos-novos por mais algum tempo? Não queremos asseverá-lo. Na apparencia, essa resposta energica á violenta missiva d’elrei devia trazer um completo rompimento entre as duas cortes: podia ser, porém, na realidade, apenas um véu lançado sobre os preliminares do accordo definitivo que as cartas de Roma asseguravam, supposta a admissão do nuncio Montepoliziano. E’, talvez, isto o mais provavel.

Ignorando a existeneia daquelle breve, e á vista da tão explicita declaração de Santafiore e do que lhe affiam osarvm proprios agentes, D. João iii entendeu que lhe cumpria ceder na questão do nuncio. Ordenou-se a D. Christovam de Castro que se dirigisse a Valladolid, em cujas immediações o arcebispo sypontino se conservava, e que transmittisse a este a permissão de entrar em Portugal, debaixo da condição de exercer as funcções de nuncio sem ultrapassar a méta imposta ao eleito de Verona[19]. Esta resolução foi communicada para Roma, tanto a Santafiore[20] e a Ignacio de Loyola, como a Simão da Veiga e a Balthasar de Faria. Nessas correspondencias, porém, insistia-se fortemente em que, tendo elrei cedido sem a menor hesitação aos desejos manifestados pelo papa, este devia realisar sem detença as promessas feitas solemnemente pelo cardeal seu neto[21]. Estava, porém , prevenido de antemão Balthasar de Faria a fim de que, no caso de não se chegar desde logo á conclusão naquelle negocio, fizesse todos os esforços a fim de que de nenhum modo no concilio, que, depois de tantas demoras e embaraços, se ía definitivamente ajunctar, se tractasse do assumpto da Inquisição portuguesa, porque todos os desejos d’elrei eram que se resolvesse o negocio unicamente entre elle e o papa. A mesma recommendação se fizera ácerca da pendencia relativa ao cardeal da Silva, para aclarar a qual tinha proposto o papa commetter-se a negociação ao nuncio e ao celebre Fr. João Soares, agora bispo de Coimbra, proposta que elrei estava prompto a acceitar, com tanto que dessa deploravel contenda não tomasse conhecimento o concilio[22].

Uma circumstancia extraordinaria veio, porém, nesta conjunctura, não impedir o exito da negociação, mas demorá-lo. Foi a ausencia do principal negociador, a cuja capacidade e energia se deviam os termos a que chegara. A escaçez das colheitas ameaçava Portugal de uma daquellas fomes, ainda não raras no seculo xvi, que vinham acompanhadas de outros flagellos, e a que só mui imperfeitos remedios sabíam achar os governos e os povos. O mais obvio era mandar comprar cereaes por conta d'elrei, no que então podia considerar-se como o granel da Europa, a Sicilia. Achou-se que o homem mais proprio para se obter bom e rapido desempenho naquella occorrencia era Simão da Veiga. Expediram-se-lhe ordens que o obrigaram a partir para Palermo[23]. Ficou só Balthasar de Faria, cuja influencia e importancia não podia ter deixado de padecer quebra pelo facto de se lhe haver dado um collega mais auctorisado. E de feito, como veremos, as negociações entorpecidas pela saída de Simão da Veiga, dilataram-se, através de phases obscuras, até os primeiros mezes de 1546.

Entretanto Ricci de Montepoliziano transpunha a fronteira nos principios de setembro de 1545 e apresentava-se na corte de D. João iii. Recebido com grande distincção, recordou-se-lhe a condição de não exercer outros poderes que não fossem os de simples nuncio, comando por norma o procedimento que por muito tempo tivera o seu antecessor, unico meio de se manter a boa harmonia. Eram, porém, diversas as intenções do arcebispo sypontino. Tendo posto nas mãos d’elrei o breve de 22 de junho, nas primeiras visitas que fez ao infante D Henrique apresentou-lhe a copia dos queixumes que os christãos-novos faziam, e, prometendo o infante dar-lhe explicações ácerca dessas queixas, somo a resposta se demorasse, escreveu para Roma, segundo parece, de modo pouco favoravel á Inquisição. Ao mesmo tempo offerecia a elrei um memorial, em que largamente se expunham os aggravos da gente da nação, e quando falava com os prelados do reino dava-lhes copia do memorial, espraiando-se em invectivas contra o tribunal da fé. Em breve se tornou evidente que a Inquisição ía encontrar no novo nuncio um resoluto adversario[24].

A politica da curia romana mostrava-se assim com toda a sua habitual astucia. Emquanto as negociações que deviam terminar pela completa ruina dos hebreus portugueses caminhavam nas trevas para o desenlace, o representante do papa ostentava em Portugal um favor exaggerado para com os perseguidos e mantinha-lhes viva a esperança, naturalmente credula. Por que preço saíam a D. João iii as vantagens diplomaticas que obtinha em Roma, acabamos de vê-lo: por que preço os christãos-novos obteriam em Portugal a protecção do nuncio podemos suspeità-lo, ainda não acreditando que estivesse inteiramente vendido aos christãos-novos, como os fautores da Inquisição espalhavam. O que havia mais serio nas aggressões de Montepoliyiano era o envolverem uma offensa pessoal ao infante; mas o papa tractava ao mesmo tempo de remediar esse inconveniente. Apesar das sentidas escusas com que elrei anteriormente regeitara para seu irmão o barrete cardinalicio, o pontifice elevou D. Henrique à dignidade de cardeal. No breve em que communicava ao monarcha a eleição do infante, Paulo iii alludia obscuramente á repulsa que dilatara aquella eleição e espraiava-se em elogios aos dotes de intelligencia e de coração que resplandeciam no novo eleito, elogios em que nos é licito duvidar um pouco da sinceridade do papa, mas que evidentemente deviam contribuir para adoçar a irritação causada pelo procedimento hostil do arcebispo sypontino[25].

Este seguia entretanto o caminho que provavelmente lhe indicavam as suas instrucções secretas. Elrei, que a principio recusara admittir a exposição dos aggravos dos seus subditos de raça hebréa, tinha-a acceitado por fim da mão do nuncio, e os inquisidores, a quem fora communicada, haviam respondido amplamente a ella[26]. Era, por um lado, a eterna repetição dos factos que o leitor sobradamente conhece; eram, por outro, as mesmas negativas ou as mesmas apologias, repetidas mais de uma vez pelos chefes da fé. Ultrapassando as limitações com que entrara no reino, o nuncio mostrava-se resolvido a ir mais longe, e, entretanto, dizia a algumas pessoas que, se elrei conviesse em se dar um perdão geral, o papa accederia tambem a que a Inquisição se estabelecesse para os delictos futuros, do mesmo modo e com a mesma organisação definitiva com que existia em Castella. A inferencia que d'ahi se deduzia vinha a ser que o unico ponto em que Ricci estava empenhado era em salvar os réus ou ainda em processo ou já sentenceiados, sem lhe importar que depois, satisfeito este empenho, a Inquisição perseguisse ou deixasse de perseguir os christãos-novos. Bastava isto para legitimar as suspeitas de que não eram motivos de consciencia, mas de interesse que o dirigiam. O que, todavia, o tornava dobradamente suspeito era o muito que elle falava na sua honra e na incorruptibilidade com que sempre se houvera nos cargos que exercera em Roma[27].

Entretanto, é singular como, depois das restricções que lhe haviam sido impostas admittindo-o no reino, se lhe toleravam actos que eram quebra formal dessas restricções. Os debates entre elle e os inquisidores sobre o modo de proceder do tribunal da fé importavam o reconhecimento tacito do seu direito de intervenção, e fora o exercicio desse direito que absolutamente se lhe negara. Como explicar tão extranha contradicção? A explicação mais plausivel é o effeito que devia ter pioduzido no animo do monarcha a tardia leitura do breve de 22 de junho. A chancellaria romana parece ter guardado ácerca delle completo segredo. Ao menos não achamos vestígio de que ou D. João iii ou os seus agentes em Roma tivessem noticia antecipada daquella energica resposta, que fora transmittida a Montepoliziano, e que este só apresentara por occasião da sua entrada. A réplica ás ponderações do papa não era facil, e a impressão que fizeram devia ser profunda. Naquelle diploma brilhavam, na parte relativa aos christãos-novos, a san razão e a firmeza. Ainda suppondo que o procedimento da curia tivesse na sua origem motivos mais ou menos ignobeis, cumpre confessar que o breve de 22 de junho era, na substancia e na fórma, digno do chefe da igreja. Attribuindo-o a inspiração do cardeal da Silva, D. João iii, sem o querer nem saber, honrava o foragido prelado, que tão cordealmente aborrecia[28]. As razões do papa quebravam os animos para se obstar seriamente ás averiguações que o nuncio tinha missão de fazer, e a necessidade de transigir nesta parte devia tornar-se evidente. Naturalmente occorriam ainda outras considerações. Por uma parte não convinha suscitar novos conflictos que complicassem a questão, de modo que ella houvesse de ser levada ao concilio que ía proximamente reunir-se. Era uma das cousas que, como vimos, elrei mais temia. Por outro lado, ainda quando a questão não chegasse a esses termos, cumpria evitar todos os incidentes que podessem impedir ou retardar as negociações pendentes na curia.

Replicar ao breve de 22 de junho era, todavia, indispensável; porque o silencio importaria a acceitação das doutrinas nelle contidas, mas parece que, sob a impressão das precedentes considerações, não se julgou opportuno fazê-lo por escripto. Mandaram-se instrucções aos agentes em Roma, nas quaes se especificavam os termos em que haviam de fallar ao papa sobre aquelle delicado assumpto. Eram escaças na parte relativa aos christãos-novos. Limitava-se elrei á allegação mil vezes repetida da sinceridade das suas intenções, provada pelas perdas que lhe resultavam da perseguição dos hebreus; defesa inepta, porque (ainda acreditando que nesse procedimento não houvesse a ídéa de que um dia se estabeleceriam definitivamente os confiscos, e portanto não se immolassem a previsões de cubiça os interesses então actuais do paiz, nessa epocha, como em todas, eram vulgares os exemplos de se preferir a satisfação das proprias paixões e caprichos aos mais subidos interesses.

No que as instrucções se dilatavam era na questão do bispo, de Viseu. Estranhava-se, e com razão, que o papa fingisse ignorar os queixumes fundados ou infundados que havia contra elle. Recordavam-se os factos que tinham passado, e as instancias tantas vezes feitas para obter o castigo daqueile grande criminoso. Recoraraendava-se, depois, aos agentes que increpassem seriamente o cardeal Farnese da sua intimidade com D. Miguel da Silva, e que lhe pedissem não quizesse escandalisar elrei a ponto que d’ahi resultassem consequências desagradaveis. Por obscuras e tortuosas que fossem as phrases das instrucções, essas phrases envolviam ameaças mais ou menos disfarçadas. Advertia-se especialmente a Balthasar de Faria que, se o papa ou qualquer outro falasse na questão das rendas do bispado de Viseu, declarasse categoricamente que nunca se havia de consentir que, directa ou indirectamenteestas fossem parar ás mãos do bispo, certificando que se conservariam em escrupuloso deposito, para serem empregadas do modo mais conveniente em serviço de Deus. Prevenindo, emfim, a possibilidade de Simão da Veiga ter partido já para Sicilia, auctorisava-se Balthasar de Faria para dar cumprimento por si só áquellas instrucções[29].

As materias relativas ao tribunal da fé caminhavam em Roma com extrema lentidão, como dissemos, depois da partida para Palermo do agente extraordinario. Devia-se isto principalmente a um frade franciscano confessor do papa, que os hebreus portugueses tinham sabido converter em seu defensor[30]. A promessa, porém, vinda de Lisboa, de se permittir a entrada a Montepoliziano, collocava a curia romana na necessidade de tambem cumprir por sua parte a que fizera de conceder a bulla definitiva da Inquisição na fórma era que se pedia, supposta a admissão do nuncio. Efectivamente assegurou-se a Simão da Veiga antes de saír de Roma que se ía tractar sem detença do assumpto; mas os embaraços começaram logo a surgir. Era o mais grave a ignorancia em que se estava ácerca do cumprimento das promessas d’elrei. Achava-se Montepoliziano em Portugal? Eis o que se ignorava e que por muito tempo se ignorou, visto ter-se verificado a sua entrada só em setembro de 1545. Depois de sabido o facto, sobreveio nova difficuldade. Para redigir a pretendida bulla, que tinha de substituir completamente a de 1536, cujos effeitos cessavam em 1546, eram precisas certas informações de Ricci, devendo estatuirse de novo sobre todas as questões que o assumpto envolvia. Apertava Balthasar de Faria com os cardeaes De Crescentiis, Ardinghelo e Sfrondato, encarregados especialmente do negocio: mostravam-lhe elles os maiores desejos; não chegavam, porém, a conclusão alguma[31]. Por outro lado o agente d’elrei era obrigado a distrahir-se daquelle objecto com a questão do bispo de Viseu. D. João iii acceitara a proposta do papa para ser submettida essa interminavel contenda a dous negociadores, que eram o novo nuncio e o bispo de Coimbra, Fr. João Soares; mas, apesar disso, a lucta de enredos a tal proposito continuava na corte pontificia com a mesma actividade[32]. Assim, passados alguns mezes, Simão da Veiga, voltando a Roma (fevereiro de 1546), achou tudo a ponto de se concluir, segundo affirmavam Santafiore e o mesmo papa e, até, conforme cria Balthasar de Faria, mas, na realidade, no mesmo estado em que o deixara. A falta de cartas de Ricci, dizia-se, era o unico obstaculo á redacção da nova bulla; mas este era insuperavel. Debalde o activo agente inculcava ao pontifice que se illudiam os seus compromissos com este pretexto; debalde pintava a Farnese o descontentamento d’elrei e recordava a Santafiore o que por seu proprio punho escrevera para Portugal. Nada conseguia em definitiva, senão boas palavras, e descubrir pelos seus informadores secretos que estava sendo procurador dos christãos-novos o confessor do papa[33].

Se na importancia que se ligava ás communicações do arcebispo sypontino havia boa fé, ignoramo-lo. O que é certo é que as opiniões de Ricci e os factos communicados por elle não deviam contribuir demasiado para o desenlace final da contenda, attendendo ao que se passava em Portugal. O representante do pontifice, ao passo que propalava a idéa de que conviria admittir um novo perdão geral para os crimes de heresia, apertava nas suas insistencias para que lhe deixassem examinar os processos, tanto julgados como pendentes. Resistiam os inquisidores, e recusava positivamente elrei, com o pretexto ou fundamento de que esse dilatado exame eternisaria a situação provisoria do negocio. Por fim, conveio Ricci em limitar as suas averiguações a cinco causas que apontou. Foram os respectivos processos revistos em repetidas conferencias, a que assistiam, por uma parte o infante e varios membros do tribunal, e por outra o nuncio e os seus auditores. A acreditarmos as memorias favoraveis á Inquisição, o arcebispo sypontino declarou a elrei que ficava satisfeito com o exame, e que achava regulares os processos; mas estas mesmas memorias nos dizem que os pedira depois para segundo exame; que effectivamente se lhe deram, e que, todavia, fulminara excommunhões contra os notarios do tribunal da fé por lh’os não haverem entregado[34]. Esta narrativa contradictoria e pueril, que, a ser verdadeira, significaria que Ricci era demente, está confirmando o facto que se deduz das representações dos christãos-novos, substanciadas no antecedente livro, e do qual ainda hoje se estão descubrindo vestigios nos archivos da Inquisição; isto é, que onde e quando convinha, se truncavam os autos, ou eram supprimidas as peças importantes dos processos[35]. E’, em nosso entender, este procedimento que se busca encubrir nessa narrativa tão pouco digna de credito. Provavelmente o nuncio, bem informado pelos christãos-novos, tinha pedido cinco processos dos mais monstruosos, que os inquisidores lhe apresentaram viciados, de modo que do exame nada podesse resultar contra elles. Pedindo-os para novo exame, devia estar advertido pelos interessados dos documentos ou actas que ahi faltavam. Eis o motivo das excommunhões que nos parece mais provavel.

Fosse, porém, qual fosse a causa daquelle procedimento, é facil imaginar qual sería o despeito de D. João iii e dos inquisidores á vista de tanta ousadia. Se pelo passado se houvesse de calcular o futuro, era inevitavel um acto de vigor da parte d’elrei. Ricci fizera por arbitrio proprio mais offensiva aggressão do que a do breve suspensivo de 22 de setembro, e a retaliação cumpria que fosse violenta. Todavia o monarcha limitou-se a reprehender o nuncio, que, segundo se diz, respondeu de modo pouco satisfactorio, e a escrever para Roma o mesmo conto ridiculo ácerca dos cinco processos que se espalhara em Portugal, concluindo pela repetição das supplicas a favor do estabelecimento definitivo do tribunal da fé e de plena liberdade para os inquisidores. Pedia-se ao mesmo tempo que por uma vez acabassem as concessões de juizes especiaes e a intervenção dos nuncios nas materias da Inquisição. Estas supplicas eram estofadas com as considerações que se repetiam havia dez annos, e com todas as phrases pias e sentidos queixumes com que se costumavam adornar as communicações officiaes dirigidas á curia romana sobre aquelle assumpto[36]. Excesso singular de paciencia, que indica não ter sido o procedimento do arcebispo sypontino tão desarrazoado como se pretendia inculcar.

No mesmo dia em que se davam a Balthasar de Faria instrucções a este respeito, expediam-se-lhe outras ácerca da questão do bispo de Viseu, que explicam sobejamente a impensada moderação d’elrei. Depois de tantos annos de lucta, este comprehendera, emfim, o que ainda hoje mais de um estado catholico parece ou ignorar ou esquecer. Aos governos fortes e honestos, que sabem manter a dignidade do seu paiz e o proprio direito, é facil reprimir pela energia as tendencias sempre abusivas da curia romana: mas aos governos fracos não resta outra escolha senão a de saciar-lhe a cubiça pela corrupção, ou a de curvar a cabeça diante das suas pretensões. D. João iii preferiu a corrupção. Tinha larga experiencia do que era Roma, e que podia ser franca, e quasi que diriamos brutalmente, corruptor. Farnese, o neto e ministro de Paulo iii, não estava saciado com as grossas sommas remettidas a Balthasar de Faria. Cumpria darse-lhe mais. As rendas ordinarias do bispado de Viseu e dos benefícios que desfructara o cardeal da Silva eram avultadas. Ordenou, portanto, elrei ao seu agente que offerecesse directamente ao papa a administração daquelle bispado e daquelles beneficios para Farnese. Era o preço que offerecia pela concessão definitiva da Inquisição, mas devia accrescentar-se na veniaga a recusa de um perdão geral, que se dizia estarem a ponto de obter os christãos-novos, em harmonia com o parecer de Ricci. Nesta parle ordenava que se fizessem as mais vivas instancias, mas advertia que, se o papa insistisse naquella idéa, nem por isso se deixasse de concluir a transacção[37]. O expediente era habil: Farnese convertia-se assim de protector de D. Miguel em seu emulo, e de affeiçoado á causa dos hebreus em adversado resoluto della. Na idade de vinte seis annos, nessa epocha de paixões ardentes, a perspectiva de uma rica prelazia e de pingues beneficios, accumulados á pensão que já desfructava em Portugal, devia acabar de abrir os olhos ao moço ministro sobre o serviço que a Inquisição fazia a Deus e sobre a legitimidade do implacavel odio que D. João iii votara ao seu antigo escrivão da puridade. Abandonar o systema de corrupções mais ou menos obscuras ou subalternas, para corromper directamente, o de um modo amplamente generoso, o governo pontificio, era caminhar com segurança á conclusão da longa lucta emprehendida para firmar em Portugal a Inquisição, resolvendo-se ao mesmo tempo o problema da completa ruina de D. Miguel da Silva. Mas cumpria não enfraquecer este grande meio com as inuteis pretensões de nobre altivez, que o breve de 22 de junho provava ter perdido a sua antiga efficacia para com o papa. D. João iii não agradecera a concessão da dignidade cardinalicia feita ao infante D. Henrique. Era o que decentemente podia fazer, visto subsistirem os mesmos motivos que outr'ora o haviam levado a rejeitar uma offerta analoga. Tinha-se irritado o pontifice com semelhante procedimento, e Simão da Veiga communicou para Lisboa qual fora o profundo desgosto que o facto causara[38]. A communicação , porém, era inutil: o despeito d’elrei passara. Balthasar de Faria recebia pouco depois ordem para apresentar a Paulo iii uma carta do seu soberano, em que este agradecia ao supremo pastor aquella demonstração de benevolencia e em que se fingia completamente esquecido dos descontentamentos passados[39].

Tudo isto era necessario para contrastar a resoluta parcialidade de Ricci a favor dos christãos-novos. Se o auncio era pago para seguir este systema. cumpre confessar que procedia como honrado obreiro. Usando de linguagem firme, posto que moderada, elrei intimara ao arcebispo que, visto estar habilitado para dar a sua sanctidade as informações que lhe haviam sido commettidas ácerca da Inquisição e dos inquisidores, suspendesse qualquer procedimento ulterior nas materias pertencentes áquelle tribunal, até receber novas instrucções do pontifice. Evitavam-se assim as collisões em Lisboa; não se obstava, porém, a que essas informações fossem altamente desfavoraveis aos inquisidores, o que atenuaria mais ou menos o effeito do vantajoso negocio proposto ao papa e a seu neto Farnese. Faria era por isso encarregado de apresentai a Paulo iii uma carta recheiada de queixas contra o seu nuncio e de ponderar, tanto ao avô como ao neto, a necessidade de porem termo áquella tão protrahida questão[40].

O estado das cousas em Roma justificava estas precauções. Tinha-se ahi cerrado a porta a todos os debates com a resolução de esperar as informações de Ricci. Dellas se affirmava depender tudo, porque se ignoravam ainda as generosas propostas d'elrei. No meio destas treguas forçadas, os christãos-novos continuavam a impetrar breves a favor de individuos presos pela Inquisição, que sollicitavam serem tirados das garras dos inquisidores e julgados por juizes apostolicos especiaes. Eram estes breves que não deixavam um momento de repouso a Balthasar de Faria. Pretendia elle que, assim como se entendera ser conveniente sobrestar na questão geral, até se conhecer o resultado do inquerito do nuncio, assim tambem cumpria não a prejudicar por actos tendentes a deprimir a força moral dos inquisidores. Foi no meio destas luctas obscuras que se passaram os primeiros mezes de 1546. Logrou, porém, quasi sempre o agente obstar a que o ouro dos mais opulentos christãos-novos os posesse a salvo, a elles ou aos seus apaniguados da sorte commum da raça hebréa[41].

O que Balthasar de Faria especialmente recommendava para Portugal era que se empregassem todos os meios, inclusivamente as ameaças, para obter de Ricci informações favoraveis. O inconveniente não estava em que do inquerito resultasse um ou outro facto de abuso de auctoridade da parte deste ou daquelle inquisidor: estava em pintar o nuncio as tendencias, o systema e o proceder em geral da Inquisição como apaixonados e injustos. Custasse o que custasse, era preciso que elle, além de dar informação favoravel, se não limitasse a termos vagos sobre poder-se tolerar a existencia do tribunal da fé: cumpria que affirmasse a sua necessidade como instituição proficua á religião, e que o caracter e mais dotes dos seus ministros os habilitavam para exercerem dignamente as funcções de inquisidores. Sem isto, suppunha elle, esta longa e tediosa contenda teria, a bem dizer, de passar de novo pelas phases anteriores logo que expirassem os dez annos a que se limitavam os effeitos da bulla constitutiva de 1536[42]. Os receios do agente português provam, todavia, que na conjunctura em que escrevera as precedentes ponderações ainda não havia recebido o carta d’elrei em que se lhe ordenava fizesse ao papa as vantajosas offertas que deviam reverter em beneficio do cardeal Farnese. Se assim não fosse, tinha oastante experiencia das cousas de Roma para appreciar toda a efficacia daquelle alvitre e modificar profundamente os temores que o assaltavam.

Os documentos relativos aos successos dos meiados de 1546 são escaços; mas a precedente narrativa explica de sobejo os acontecimentos dessa epocha. As communicações da corte de Lisboa nos primeiros mezes deste anno tinham sido dirigidas só a Balthasar de Faria, provavelmente porque se ignorava ainda a volta de Simão da Veiga a Roma. Entretanto este desde que alli chegara tinha empregado, como vimos, todos os esforços possiveis para concluir a sua missão. O unico obstaculo apparente era, conforme tambem temos visto, a tardança das informações de Montepoliziano. Appareceram, emfim, essas informações, e a curia romana, privada daquelle ultimo pretexto das suas longas tergiversações, vio-se obrigada a dar uma solução definitiva.

Mas o que os procuradores dos conversos esperavam, e Balthasar de Faria receiava[43], verificou-se, não sabemos até que ponto. As informações de Ricci não eram, de certo, excessivamente favoraveis é Inquisição. Se acreditassemos o que elle proprio escrevia a um intimo amigo, não fizera nisso senão seguir as instrucções que a tal respeito se lhe mandavam de Roma[44]. Ahi os agentes dos christãos-novos ainda tinham bastantes recursos e protectores para obterem que não só se dessem secretamenta essas instrucções, mas que tambem o papa fizesse demonstrações publicas de que não havia abandonado inteiramente a sua causa. Deu-as, de feito. Paulo iii, mandando expedir uma bulla para prorogar por mais um anno as disposições da de 23 de maio de 1536, em virtude das quaes o confisco dos bens dos réus de judaismo tinha ficado suspenso por dez annos. Esta prorogação era necessaria, dizia o pontifice, para dar tempo a colherem-se o resto das informações que Montepoliziano estava encarregado de colligir[45]. A astucia romana safa assim vantajosamente de um mau passo. Concedendo ao rei a Inquisição na fórma pretendida, apesar das informações já alcançadas, mostrava-lhe uma condescendencia digna de ser correspondida com a realisação das offertas relativas aos benefícios de D. Miguel da Silva. Essas mesmas informações, porém, habilitavam-no para mostrar certa sollicitude pelos interesses dos christãos-novos e para não ceder no ponto do perdão, que Montepoliziano tinha o cuidado de espalhar ser indispensavel, e a que das cartas dirigidas a Balthasar de Faria se deprehende que o propno D. João iii não tinha inteira esperança de obstar. O preço deste perdão, que de certo não era negociado gratuitamente, podia assim conciliar-se com as generosas propostas secretamente feitas pelo monarcha.

Foi o que se fez. Simão da Veiga partiu de Roma com a final resolução sobre o assumpto nos fins de setembro ou principios de outubro[46]. Quando, porém, atravessava a França, adoeceu e veio a morrer em Avinhão. Um creado seu trouxe a noticia a Lisboa e junctamente os despachos de que elle era portador. Estes despachos continham uma especie de ultimatum da corte de Roma. O papa. concedendo o estabelecimento da Inquisição conforme os principios que geralmente regulavam aquella instituição, satisfazia aos ardentes votos do rei de Portugal, até ahi tão vivamente contrariados; na doçura, porém, de um desejo satisfeito misturara o absintho. O perdão geral aos réus de judaismo acompanhava a concessão, e procurava-se evitar, nas condições com que elle se devia applicar, que os inquisidores o tornassem illusorio. Protestando sempre que não estavam auctorisados para virem a accordo sobre o definitivo estabelecimento do tribunal da fé com aquellas restricções, Simão da Veiga e o seu collega, convencidos da inutilidade de novas insistências, só tinham, todavia, acceitado a resolução pontificia para a transmittirem ao seu governo, partindo com ella o agente extraordinario a dar, emfim, conta a elrei do bom posto que imperfeito, resultado da sua demorada missão[47].

Apesar de Faria ter sido auctorisado para ceder no ponto do perdão geral, uma vez que o papa e seu neto vendessem pelas rendas dos beneficios de D. Miguel da Silva a concessão do tribunal da fé em toda a plenitude, os despachos trazidos pelo familiar de Simão da Veiga excitaram a colera verdadeira ou fingida d’elrei. Ricci recebeu uma communicação redigida em termos acres, na qual se repetiam os usuaes queixumes contra as condescendencias de Roma para com os chnstãos-novos, e se respondia com explicitas exigencias ao presupposto ultimatum do papa. Pretendia-se que a nova bulla da instituição permanente do tribunal da fé revogasse todas as exempções e breves de perdões individuaes, concedendo-se aos inquisidores os poderes e privilegios que elles pediam em certos apontamentos junctos áquella nota. Só se poderia tractar de perdão se este se referisse unicamente a individuos de raça hebréa, excluindo quaesquer outros réus de judaismo. Todos os confessos e convictos deviam abjurar solemnemente antes de se lhes applicar aquella graça, para serem punidos como relapsos se reincidissem. Quanto aos presos, contra os quaes não havia prova plena, mas só indicios, deviam estes abjurar em audiencia particular dos inquisidores, sujeitando-se ás penitencias que lhes fossem impostas, mas podendo ser mettidos de novo em processo, se apparecessem provas ulteriores contra elles. Evitariam as consequencias desse facto, se em tempo legal viessem confessar seus erros e abjurá-los, deixando elrei ao papa decidir se estes taes, reincidindo, deveriam ser tractados como relapsos. A mesma doutrina se estabelecia ácerca dos levemente suspeitos, mas já presos, com a excepção de serem no emtanto soltos sem abjuração nem penitencias. Os individuos culpados ou simplesmente indiciados nos registos e processos da Inquisição, mas contra os quaes não se houvesse ainda procedido, obteriam perdão vindo secretamente pedi-lo dentro do termo marcado. Deixava-se neste caso tambem ao papa resolver-se , cahindo posteriormente em erro de fé, seríam considerados ou não como relapsos. Todos os individuos comprehendidos nas precedentes categorias que no praso assignalado não sollicitassem o perdão não o poderiam obter depois, e seríam excluidos delle todos os negativos, isto é, os que negassem o delicto, ainda depois de provado judicialmente, e os confitentes contumazes, isto é, os que, sectarios sinceros da lei de Moysés, nos carceres, nos tormentos, e ante o prospecto de cruel supplicio confessassem nobremente a propria crença. Elrei concluía declarando qne estava prompto a abster-se dos confiscos por mais tres annos, como já em 1536 se abstivera por dez[48].

Estas resoluções definitivas foram transmittidas a Balthasar de Faria, não para que as apresentasse officialmente ao pontifice, mas para que tivesse conhecimento dellas. Dirigindo-se ao supremo pastor por intervenção do nuncio, elrei dava ao seu ministro em Roma aquella demonstracção de desgosto pelo modo altamente inconveniente por que se houvera no desfecho da negociação, cujo progresso lhe ordenava observasse sem nella intervir de outro modo[49]. Suspeitamos, todavia, que a carta dirigida ao agente em Roma não tinha na realidade o valor que fingia ter. Que elrei estivesse descontente com o incompleto da concessão e que os inquisidores lhe excitassem o animo para não admittir o perdão, senão em termos taes que elles podessem illudi-lo, é assás crivel; mas tambem é crivel que essa carta fosse redigida para servir as indiscrições que se costumavam ordenar aos agentes em Roma, quando elrei queria indirectamente assustar a curia com as suas coleras, que podiam nem sempre ser vans e pueris. Concebe-se que D. João iii se houvesse arrependido da vaga auctorisação que dera a Faria para transigir na materia do perdão não se comprehendem, porém, tão rigorosas demonstrações de despeito por elle haver effectiyamente transigido nessa parte, se nellas não virmos o pensamento reservado de illudir a curia.

O que, porém, parece poder-se affirmar com certeza, é que, recebendo os despachos dados a Simão da Veiga, elrei mostrava não estar longe de acceitar o seu conteúdo. Fora, pelo menos, disto que o nuncio informara a sua corte. Tinha-se reunido em Lisboa uma juncta de theologos, onde, segundo Ricci dizia, se forcejava para que as resoluções do papa quanto ao perdão não fossem acceitas. Persuadia-se, porém, o nuncio de que elrei saberia resistir a pretensões exaggeradas, embora se houvesse queixado de que o papa nunca lhe fizesse uma concessão ampla e em tudo conforme a seus desejos. A communicação que depois recebeu veio desenganá-lo em breve de que st illudira. Entretanto, apesar das esperanças do nuncio, a sua carta fizera mau effeito em Roma. Espantavam-se todos de que os parciaes da Inquisição ainda não estivessem satisfeitos. Alguns cardeaes chegaram a prorompei em invectivas. «Que querem os inquisidores? — diziam elles. — Querem carne? — » Ponderavam que, se o perdão servisse de emenda aos chnstãos-novos, eram almas que se ganhavam se não servisse, facil seria depois processá-los e puni-los. O papa segundo os avisos occultos dados a Balthasar de Faria, affirmara, num momento de irritação, que procederia do modo que julgava opportuno, quer elrei o quizesse quer não. Era este sentir da curia que o agente português communicava ao seu soberano pouco antes de receber severas reprehensões por ter cedido, sem ultrapassar as anteriores instrucções, num ponto em que a pertinacia, visto o estado dos animos, podia comprometter tudo[50].

Um facto singular, occorrido por aquelle tempo, nos mostra como, vacillante ante as pretensões extremas dos parciaes da intolerancia e as ponderações do nuncio, D. João iii buscava, bem que tarde, algum alvitre prudente para saír das difficuldades que lhe suscitava a lucta de encontradas paixões e de oppostos interesses, sem, todavia, arriscar de novo o muito que emfim ganhara. Talvez o quadro que o seu agente lhe desenhava do péssimo effeito que produzira na curia romana a resistencia a uma parte das recentes resoluções pontificias contribuisse para o facto a que nos referimos, ou, talvez, no momento de triumphar, lhe surgisse na consciencia uma voz de remorso. Fosse o que fosse, um raio fugitivo de cordura pareceu alumiar as trevas daquella alma. Entre os christãos-novos mais qualificados, havia quatro, cujos nomes ignoramos , os quaes, ao passo que exerciam grande influencia na gente da sua raça, mereciam tambem a confiança do príncipe. Chamou-os elrei e ordenou-lhes que lhe redigissem uma exposição sobre os meios que se poderiam empregar com vantagem para tranquillisar os conversos e reduzi-los a submetterem-se ao tribunal da fé, abandonando um systema de resistencia, fatal para elles, damnoso para o reino, e só util á cubiça insaciavel de Roma. D. João iii prohibia, comtudo, a esses homens que consultassem a materia com os da sua nação. Era o juizo delles que exclusivamente queria conhecer[51]. Deramlh’o. Em primeiro logar criam necessario acceitar-se com sinceridade o perdão geral quanto ao passado, que se dizia ter-se obtido do papa, e em segundo logar que os rigores da Inquisição fossem modificados em tudo aquillo que parecia ou excesso de severidade ou offensa de justiça. Assim, cumpria que aos réus se communicassem os nomes dos accusadores e das testemunhas, declarando-se não-poderosos os christãos-novos, para isso se conciliar com as leis canonicas. Não sería, quanto a elles, senão declarar um facto sabido de todos. Nunca, diziam os quatro hebreus, durante mais de dez annos, uma unica testemunha de accusação contra os conversos fora victima da vingança dos réus. Era prova da timidez da raça proscripta o procedimento de Francisco Gil, que conduzira, sósinho, de Traz-os-Montes um grande numero de presos, fazendo-lhes pelo caminho innumeras atrocidades, sem que nenhum ousasse resistir-lhe. Lembravam o assassinio que este mesmo homem commettera em Lisboa, sem que d’ahi lhe resultasse o menor perigo, e que, quando saíam do reino, na occasião do embarque bastava um individuo para roubar vinte. Ponderavam a elrei que era impossivel tranquillisarem-se os seus subditos de origem hebréa emquanto nelles fossem reputados crimes actos que noutros nem peccados veniaes seríam, e emquanto se admittissem a testemunhar nos processos da Inquisição pessoas da mais baixa plebe, dessa plebe que já os mettera á espada, e para quem era um espectaculo delicioso vê-los estorcer nas chammas do supplicio.

Reflectiam tambem os quatro conversos nos tristes resultados de processar e condemnar réus por confissões e denuncias dos seus companheiros d'infortunio. Lembravam os effeitos moraes da violencia dos tractos, do terror antecipado dos tormentos, da esperança do perdão, das promessas illusorias que se faziam, de todas as artes diabolicas com que se buscava que os proprios presos fossem virtualmente os algozes uns dos outros. Com destreza, davam a entender que muitos desses depoimentos eram forjados; porque, diziam elles, não alcançavam como alguns que francamente se haviam declarado judeus e subido ao cadafalso impenitentes, deixavam depoimentos (aliás impossiveis de arrancar a quem estava resolvido a morrer) em consequencia dos quaes as suas familias e os seus parentes e amigos vinham a ser tambem sacrificados. Que taes expedientes não eram precisos para se descubnrem os culpados provava-se com mais de quinhentos individuos encarcerados naquella conjunctura por denuncias de christãos-velhos e de conversos que se achavam no goso da sua plena liberdade. Mostravam a necessidade de fazer com que a abolição dos confiscos se convertesse em realidade, e que as prisões não fossem segredos horríveis como eram as chamadas covas da Inquisição de Évora. Na fórma de processar os culpados notavam especialmente o admittirem-se denuncias e depoimentos de escravos, o que tornava intoleravel a situação das familias de raça hebréa, que se viam servos dos seus proprios servos, não havendo, aliás, creados livres que quizessem servilas, e não se atrevendo a punir um escravo com medo de crueis vinganças, favorecidas pelo carinho com que eram tractados os que íam delatar seus senhores. Sollicitando remedio para os desconcertos que enumeravam, os quatro nebreus, cuja linguagem era a de homens sinceramente convertidos e que parecia não temerem a Inquisição nem desejar que fosse abolida, recordavam a elrei que esse remedio estava em manter as promessas solemnes feitas aos conversos por D. Manuel e por elle proprio, promessas que as actuaes tyrannias formalmente desmentiam. Não se limitavam, porém, a pedir para os da nação aquillo que se podia reputar de rigorosa justiça; pediam tambem misericordia. Consideravam esse meio como o mais efficaz para reconduzir á estrada do christianismo os que della se haviam desviado. Devia-se, na opinião delles, conceder o perdão a todos os sentenceiados, não sendo relapsos, que se mostrassem arrependidos, ainda mesmo nos degraus do patibulo, embora esse arrependimento fosse inspirado só pelo horror da morte e não por uma conversão sincera. Apontavam muitos abusos que havia na acceitação de denuncias, principalmente de denuncias sobre factos practicados muitos annos antes, na fórma das capturas, na ordem do processo, e ainda na especie de correições que pelo reino faziam os inquisidores, um dos quaes, só em Trancoso, obrigara a fugirem, dentro de dous ou tres dias, cento e setenta chefes de familia, pela maior parte abastados mercadores. Concluiam os quatro conversos por algumas reflexões cuja gravidade desejamos que o leitor apprecie por si mesmo. Transcreveremos em substancia as principaes, reduzindo-as, para as tornar claras, á linguagem moderna.

«Senhor — diziam elles — não promulgue vossa alteza leis, nem tolere estatutos ou regimentos de corporações em que se faça uma selecção odiosa entre christãos-velhos e christáos-novos. Actualmente, embora muitos destes ultimos tenham capacidade sobeja, não os admittem, nem nas misericordias, nem nas confrarias nem sequer entre os mestéres das cidades e villas. Mancebos valentes e robustos que vão alistar-se para as guerras da India, rejeitam-nos, cubrindo-os de affrontas; e, todavia, não consta que os que lá foram antes practicassem nenhum acto vil. Rogam a homens incapazes que acceitem cargos publicos, desprezando os mais habeis, só pelo sangue que lhes corre nas veias, e a alguns que anteriormente os adquiriram, procuram exclui-los delles com o pretexto de raça. Os homens que estimam a honra preferem por isso abandonar o paiz. Se lhes dessem paz, ficariam os que ainda restam e que são o maior numero, voltariam os que andam errantes por Galliza e Castella, e ainda muitos dos que já se estabeleceram em Flandres, em França e em Italia, regressando á patria, viriam assentar aqui de novo casas de commercio e restaurar o trafico amortecido. Com esses favores, não ficará menos temida a Inquisição, nem os que delinquirem contra a fé evitarão o castigo. Que mais vigilante sentinella do que o odio popular? Tumultos, sublevações, escandalos diarios practicados contra os conversos completam nas ruas e praças as representações feitas em cortes com elles. O povo só pensa em persegui-los e em mettê-los debaixo dos pés. Não faltarão nunca testemunhas que sirvam para condemnar os verdadeiros réus, no meio da malevoiencia do vulgo e num paiz onde as leis prohibem as devassas geraes pela tendencia que o povo tem para jurar falso. Toda a indulgencia parece pouca, tractando-se de individuos collocados em tal situação. Antes deixar impune um criminoso do que punir um innocente. As leis da igreja e as da sociedade dissimulam muitas vezes pequenos males para obviar a outros maiores. Deve seguir-se este exemplo. Nem se alleguem os rigores da inquisição de Castella. Os portugueses têem maior resolução para abandonarem a patria, e estão de sobreaviso, justamente pelo exemplo do que viram naquelle paiz. Prohibir-lhes a saída é inutil. A experiencia tem ensinado com que facilidade abandonam bens e tudo, com que temeridade affrontam quaesquer perigos, para deixar a terra natal. Sem moderação e tolerancia, bem poucos ficarão no reino. Depois, em Castella não os maltractavam, não os envileciam antes de serem declarados réus. Lá, o povo não lhes mostrava igual odio; não fazia assuadas para os matar. Lá, gosavam das mesmas honras que os christãos-velhos; eram regedores das terras, e a simples injuria de se lhes chamar judeus ou tornadiços punia-se com severidade. Desse modo arriscavam-se aos perigos da Inquisição. E, ainda assim, quantos não saíram de Hespanha? Foram, a bem dizer, innumeraveis, que estão espalhados por todo o mundo. E, todavia, dava-se uma differença: hoje os que sáem de Portugal são acolhidos nos diversos paizes christãos com a melhor vontade, e protegidos com singulares privilegios, o que d'antes não cremos que succedesse. Eis o que pensamos, senhor. Mande vossa alteza examinar o nosso voto, e Deus illumine o seu coração para escolher o que foi-mais acertado».

Os precedentes conselhos e reflexões são obviamente sensatos. A razão, a justiça, a humanidade e a boa politica parece terem-nos, inspirado. Ouvidos, porém, sobre elles os fautores da Inquisição ou os proprios inquisidores[52], foram achados quasi inteiramente inadmissiveis. Era natural. E o mais é, que a impugnação parece ás vezes concludente, partindo das doutrinas jurídicas então recebidas. Até certo ponto, os aggravos enumerados na consulta eram infundados, admittida a doutrina de que a igreja ou o estado tinham o direito de intervenção nas crenças dos indivíduos, e de que a violencia e a crueldade podiam ser um meio de salvação. Assim, parte dos males que resultavam da existencia do tribunal da fé, derivando de idéas falsas, sería injustiça attribui-los á vontade dos homens. Não succedia o mesmo quanto a certa ordem de factos. Propunha, por exemplo, a consulta que não se prendesse nem processasse ninguem por delações ou testemunhos de presos e que bastassem á intolerancia as denuncias feitas por christãos-velhos e por conversos no uso da sua liberdade: dava-se em prova de que este meio racional era suficiente o estarem encarcerados e processados, em consequencia de taes denuncias, mais de quinhentas pessoas, e ponderava-se que o odio popular sería sobejo para promover accusações de tal ordem. Não negavam estes factos os inquisidores, mas recorriam á consideração de que, sendo o judaisar um crime occulto só os réus presos podiam saber quem eram os seus co-réus, como se os tormentos e os terrores empregados para fazer falar as victimas e obrigá-las a inventar cumplices fossem factos indifferentes. O correctivo para isso e a garantia para os culpados que offereciam era a propria subtileza e integridade no discriminar depoimentos de tal ordem. Quanto ás prisões feitas em virtude de delações de christãos-velhos, affirmavam que essas delações só appareciam a principio, quando se estabelecia de novo a Inquisição em qualquer districto, e que depois cessavam; defesa pueril, porque nada mais natural do que cevarem-se desde logo todos os odios accumulados, perseguirem-se de chofre todos os homens impopulares, quando, em qualquer logar, se offerecesse o meio de satisfazer as vinganças pessoaes e as malevolencias da praça publica. Esperar o contrario é que sería absurdo. Confessando as propensões dc vulgo para jurar falso, oppunham factos a factos, citando processos em que os conversos tinham corrompido as testemunhas em seu favor, como se isso não fosse mais uma prova de que a plebe podia ser corrompida tambem contra elles, e tanto mais que os nomes de accusadores e de testemunhas ficavam secretos. Este ponto, porém, de ignorarem os réus os nomes dos que os culpavam era um dos que os inquisidores reputavam inseparavelmente ligados á existencia do tribunal, d’onde resultava manterem tenazmente a doutrina de que se deviam considerar indistinctamente como pessoas poderosas os christãos-novos, esses homens sobre quem pesava o rancor popular, a perseguição fanatica e cubiçosa do rei e de seus irmãos, e a crueldade omnipotente da maior parte do clero secular e regular; homens poderosos, que, aterrados, só pensavam em fugir do reino, e contra cuja saída se tomavam, por apuro de barbaridade, severas providencias, homens poderosos, em summa, que tremiam, e é claro que deviam tremer, não só ante qualquer individuo da plebe, mas tambem ante os proprios escravos, quando eram assás abastados para recorrerem a esse unico meio de terem servidores domesticos, situação que ninguem da raça chamada pura acceitaria em relação a uma familia de conversos. Aos factos publicos e sabidos que os consultores offereciam em prova da timidez da sua nação contrapunham os inquisidores exemplos de vinganças individuaes, tomadas por parentes ou amigos de uma ou de outra victima, negando, nesta parte, as affirmativas demasiado absolutas dos quatro conversos. Mas suppondo-os verdadeiros, que provariam taes exemplos? Provariam a necessidade de declarar poderosos todos os habitantes do paiz, para em nenhum processo crime se revelarem ao réu os nomes do accusador e das testemunhas de accusação. Que sangue vertido de homem não pôde clamar por vingança e achar coração e braço de pae ou de filho, de irmão ou de amigo, para castigar o assassinio legal, sobretudo quando, pervertidas as idéas a sociedade applaude actos odiosos, em vez de os condemnar, despertando o instincto barbaro do desaggravo pessoal? Propunham os consultores que aos criminosos não relapsos se perdoasse ainda depois de entregues ao braço secular, sem que se apurassem os quilates da espontaneidade do seu arrependimento. Era um ponto em que tambem os inquisidores não convinham, com o fundamento de que, sem o exame da sinceridade dos arrependidos, continuando a ser occultamente judeus, dar-se-hia o desacato de frequentarem os sacramentos. Elles, que tanto fiavam de si para affirmarem que sabíam sempre atinar com a verdade, no meio de testemunhos suspeitos e através de um processo monstruoso, não sabíam como acautelar a perpetração de um sacrilegio pelo réu salvo da morte. A fogueira resumia o seu systema preventivo. Em summa, não havia em todo o papel dos quadro hebreus um unico ponto em que os inquisidores concordassem plenamente, e se alguma cousa concediam era com restricções taes, que annullavam a concessão. Para dar uma idéa do seu modo de discorrer, transcreveremos tambem aqui a parte do parecer em que rebatiam a proposta da suppressão dos confiscos. «Este apontamento — diziam elles — não é fundado. Ao menos, não deviam pedir bens para quem mereceu perdê-los. Sería tambem inconvenientíssimo dá-los a seus filhos e representantes. Os réus esforçar-se-hão assim por salvar estes e encubrir-lhes as culpas, visto que, por meio delles, conservarão as proprias fazendas, arriscando-se e preferindo tudo a denunciarem o judaismo e os erros dos seus proximos herdeiros». Ponderação inepta, porque, na hypothese da pena capital, não tinha applicação alguma, e era justamente a esta que sempre acompanhava o confisco. O inconveniente verdadeiro consistia em deixarem de espoliar as victimas. Entretanto, com certas restricções, os inquisidores toleravam que se concedesse este favor por algum tempo[53].

As razões dos inquisidores, ou antes a sua pertinacia e os seus meios de influencia, eram poderoso obstaculo ao transitorio appetite de moderação e cordura que turbara o animo, friamente fanatico, do monarcha, A esperança de obter, se não tudo, ao menos melhores condições quanto ao perdão, renascera tambem nessa conjunctura com a acquisição de um novo e importante agente. Era este um camareiro valido do papa, chamado Estevam del Bufalo, o qual chegara a Lisboa nos fins de 1546, trazendo o barrete de cardeal para o infante D. Henrique. Os ardentes fautores da Inquisição tinham-se desde logo apoderado desse homem tinham-no lisongeiado, e, provavelmente, corrompido com ouro ou com promessas. Partindo para a Italia nos principios de 1547. Estevam del Bufalo promettera pintar com vivas cores ao pontifice as vantagens da Inquisição e desfazer como calumniosas as accusações dirigidas contra os inquisidores, resolvendo assim por uma vez o papa a acquiescer inteiramente aos desejos da corte de Portugal. Suspeitoso, porém, como a experiencia o devia ter tornado, da lealdade romana, D. João iii, escrevendo a Balthasar de Faria, recommendava-lhe que espiasse os passos de Estevam del Bufalo, verificando com dissimulação por que modo cumpria as suas magnificas promessas, mas assegurando-o ao mesmo tempo da plena confiança que nelle depositava o monarcha[54].

A verdade é que, no essencial, a questão do definitivo estabelecimento da Inquisição estava resolvida, e que o debate se reduzia ao maior ou menor grau de oppressão que tinha de pesar sobre os christão-novos. Os inquisidores desejavam obter a extrema liberdade para o seu terrivel poder, e Roma parecia vacillante em abandonar inteiramente á ferocidade do fanatismo homens que haviam comprado por alto preço a sua protecção, tantas vezes esteril. Jó não havia quem se lembrasse das maximas de tolerancia da nossa idade média, ainda tão eloquentemente defendidas nos conselhos de D. João ii de D. Manuel. Agora, como vimos da consulta dos quatro christãos-novos, a raça hebréa, a gente da nação, pobres estrangeiros no seio da patria, contentava-se com algumas garantias de regularidade e de justiça nas praxes do tribunal da fé. Nos documentos desapparecem gradualmente todos os vestigios dos energicos esforços, dos enredos habeis, dos sacrificios pecuniários feitos por tantos annos em Roma. Tudo se reduz a sollicitarem que o perdão, quanto ao passado, não seja absolutamente illusorio. E’ o desalento das victimas que cruzam os braços, resignadas na sua suprema afflicção. Acaso a noticia da veniaga proposta pelo rei, e de cuja acceitação pelo pontifice os factos ulteriores nos dão irrefragavel testemunho, fora mal guardada, e os chnstãos-novos haviam avaliado, talvez, esse pacto de injustiça e de sangue como um golpe irreparavel. De feito, podiam elles assegurar ao joven cardeal Farnese, ao neto querido de Paulo iii, ama pensão vitalicia igual á somma annual que em seu beneficio elrei queria distrahir dos redditos da igreja portuguesa? E, ainda suppondo que podessem, por um grande sacrificio, offerecer igual ou maior pensão, qual era a garantia da sua perpetuidade? De um lado estava um contracto sobre solidas hypothecas e a que haviam de servir de titulo bullas pontificias e actos do poder real do outro só podia haver convenções occultas com uma raça avara e perseguida convenções cujo cumprimento ficaria dependente da lealdade e dos incertos recursos de milhares de individuos. A escolha não era duvidosa. Exigir que a familia Farnese sacrificasse interesses gravissimos e seguros aos preceitos do evangelho e ás leis da humanidade era exigr demasiado. Na verdade, o pontifice declara solemnemente que, se abandonasse os christãos-novos aos furores da Inquisição, Deus buscaria um dia as manchas do sangue das victimas, tanto nas mãos do rei de Portugal como nas delle, mas isso eram phrases vans que haviam esquecido. A raça hebréa fora, a final, achada mais leve na balança da justiça de Roma, e por isso era condemnada. A discussão, numa ou noutra particularidade do negocio, significava apenas a necessidade de guardar certas formulas convencionaes de decencia, ou era, talvez, uma destas transacções com o remorso, que se fazem para illudir a consciencia, a qual nem sempre a suprema corrupção alcança reduzir ao silencio. Na realidade, porém, todas essas disputas, mais ou menos insignificantes, não alteravam essencialmente o definitivo resultado.

Notas[editar]

  1. Instrucções ou Memoria da Collecç. de S. Vicente, vol. 3, fol. 140 e segg.
  2. Ibid. — Cartas d'elrei a D. Christovam na G. 13, M. 8, N.° 1 e G. 2, M. 2, N.° 57, no Arch. Nac.
  3. Ibid. As instrucções ou Memoria da Collecç. de S. Vicente não parecem assás correctas na relação destes successos, affirmando que, depois de mandar suspender a entrada de Ricci, elrei escrevera ao papa contra esta practica de enviar nuncios a Portugal, e que, respondendo entretanto Ricci o que fica substanciado no texto, se lhe permittira a entrada. Nem na correspondencia originalpara Balthasar de Faria, nem nos documentos da Torre do Tombo se encontra o menor vestigio dessas reclamações em Roma. Pelo contrario, da carta d'elrei para B. de Faria de 26 de dezembro de 1545 (aliás 1544 por ser posterior a 25 de dezembro) se deduz que nem uma palavra se havia escriplo sobre tal assumpto ao agente em Roma desde a chegada de Montepoliziano até esta data (Corresp. de B. de Faria na Biblioth. da Ajuda, f. 84).
  4. Breve Cúm nuper dilectum de 22 de setembro de 1544 no G. 2, M. 1, N.° 45, no Arch. Nac.
  5. Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, l. cit. — C. de D. João iii a B. de Faria de 25 de dezembro de 1544 na Corresp. de B. de Faria, f. 76.
  6. Instrucç. ou Memor. de S. Vicente, l. cit.
  7. Instrucç. ou Memor. de S. Vicente, l. cit. — Minuta das Instrucções a Simão da Veiga: Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 1.° in princip.
  8. Appenso ás Instrucções de Simão da Veiga: Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 7.° in princip.
  9. Minuta da carta de D. João iii ao papa de 13 de janeiro de 1545 na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. iin fine. A minuta não tem data, mas esta consta da resposta de Paulo iii que adiante havemos de citar
  10. C. d'elrei para B. de Faria de 26 de janeiro de 1545 na Corresp. de B. de Faria, f 84.
  11. Existem ainda duas minutas da carta precedente (Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in médio). Na que parece ser a primeira ha um paragrapho em que se allude á morte de Santiquatro e a propostas de Faria ácerca do successor. Elrei ordena-lhe que diga que não lhe respondeu sobre isso, procedendo a informações sobre qual convirá mais escolher. Este paragrapho foi supprimido na outra minuta e na copia expedida, acaso porque destinaram a materia para carta especial.
  12. Minuta desta especie de circular na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 7 in medio. Numa nota da minuta se diz que se expediram as dez, e as tres em branco.
  13. Minuta da carta ao cardeal Farnese, Ibid.
  14. Breve Attulit ad nos de 16 de julho de 1545 no Codex Diplomat., vol. 3 (Simm., 46), p. 563. — Vertido em vulgar na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 3. in fine.
  15. Não podémos encontrar nem a carta de Santafiore, nem a de Simão da Veiga, nem a de Loyola: mas deprehende-se o que vamos narrando das correspondencias que adiante havemos de citar.
  16. Santafiore era neto de Paulo iii por sua filha Constanza, e Farnese era-o por seu filho Pier Ludovico, duque de Parma.
  17. Vejam-se e comparem-se as tres cartas originaes de D. João iii para Balthasar de Faria de 13 de julho de 1544, de 16 de fevereiro de 1545 e de 5 de março do mesmo anno na Corresp. de B. de Faria, f. 62, 98, 110. Os treze mil cruzados mandados dar a Farnese equivaleriam hoje a mais de sessenta mil, calculando pela differença do valor do trigo o valor da moeda naquella epocha.
  18. «... e nestas propinas se podem montar boa soma de dinheiro, parece que o sancto padre folgará de se encarregar da proposiçam dos dictos neguocios como já outras vezes se fez, e que aproveitará pera os mesmos neguocios e pera outros do meu serviço saber ele que folguo eu de lhe comprazer no que boamente posso»: C. d’elrei a B. de Faria de 4 de março de 1545: Corresp. Orig. de B. de Faria, f. 105.
  19. Carta d’elrei a D. Christovam de Castro na G. 2, M. 2, N.° 37.
  20. Minuta da carta regia ao cardeal Santafiore de agosto de 1545 na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 3. Deste documento se vê que o papa encarregara o neto da proposição em consistorio dos negocios que elrei posera em suas mãos. Assim guardavam-se melhor as apparencias e ficavam os lucros em casa.
  21. Carta d’elrei a B. de Faria e Simão da Veiga de 13 de agosto de 1545 na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 2 — Minuta da carta a Mestre Ignacio: Ibid. Quad. 3 — C. d’elrei a Simão da Veiga e a B. de Faria de 10 de agosto de 1545: Ibid.
  22. C. d’elrei a B. de Faria de 4 de agosto de 1545 na Corr Orig. de B. de Faria, f. 122.
  23. As correspondencias ácerca da compra de cereaes na Sicilia em 1545, acham-se principalmente Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 2.
  24. Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, vol. 3, f. 142 e segg. — C. d’elrei a S. da Veiga e a B. de Faria de setembro de 1545, Collecç. do Sr. Moreira, Quad.4.
  25. Breve Quod semper de 16 de dezembro de 1545 na Symm., vol. 46 (Cod. Diplom. 3.°), p. 595.
  26. A informação ou exposição a favor dos christáos-novos acha-se na G. 2, M. 2, N.° 26, e a resposta dos inquisidores (a que poseram exteriormente a data errada de 1535) na mesma gaveta e maço N.° 31, no Arch. Nac.
  27. «Que já tevera carregos (dizia de si o nuncio) em que se quizera podera aver muito dinheiro, mas como sempre, trabalhou de fazer o que devia e o que compria a sua honra e consciencia, nunca dinheiro o commovera a o deixar de fazer. Parece-me que começou por aqui por ver se podia tirar alguma presumpção que se podia ter da sua vinda cá... Assi que parece que todo seu entento he fazer seu negocio, e depois tanto lhe daa que a Inquisição fique aberta como serrada»: C. do bispo d'Angra a elrei de 7 de novembro de 1545, na G. 2, M. 2, N.° 48, no Arch. Nac.
  28. «Cujo estylo (o do breve de 22 de junho) parece mais do bispo de Vizeu que dalgum seu official, ou ao menos que foi no fazer delle»: Minutas de cartas d’elrei a Simão da Veiga e a B. do Faria de setembro de 1545, na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 4.
  29. Ibid. A carta expedida a B. de Faria, auctorisando-o para abrir as cartas dirigidas a elle e ao seu collega, e para dar execução ás ordens d’elrei, acha-se tambem na Corresp. Orig. de B. de Faria,f.142. É datada de 28 de setembro.
  30. C. de Simão da Veiga a elrei, de Roma, a 28 de abril de 1546, na G. 13, M. 8, N.° 6, Doc. 5°, no Arch. Nac.
  31. Veja-se a carta particular de B. de Faria para Simão da Veiga, escripta de Roma para Palermo a 30 de outubro de 1545, na Collecção do Moreira, Quad. 2, ad fin. Esta carta é um documento curioso por se encontrarem nella vestigios de que Miguel Angelo trabalhava então num quadro para Portugal, e que, como em geral costumam os artistas, não era demasiado pontual. «Michael Angelo mente todo o possivel co a cousa do nosa senhora da misericordia. Parece-me que quer dinheiro. Eilho de dar por concluir coele.»
  32. Ibid.
  33. C. de Simão da Veiga a elrei de 28 de abril de 1546, l. cit.
  34. Instrucç. ou Memor. na Collecç. de S. Vicente, vol. 3, fol. 144.
  35. Acham-se nos immensos archivos da Inquisição, reunidos na Torre do Tombo, processos divididos em duas, tres ou quatro partes, cozidas cada uma sobre si, com differente numeração, o que ás vezes torna difficil a reunião desses diversos fragmentos.
  36. C. d’elrei a B. de Faria de 20 de fevereiro de 1546, na Correspond. Orig, f. 164.
  37. C. de B. de Faria de 20 de fevereiro de 1546, na Corresp. Orig., f. 167. Esta carta, da mesma data da antecedente, admiravelmente categorica e precisa, é um dos documentos mais hediondos no meio desta serie de torpesas.
  38. Carta de S. da Veiga, na G. 13, M. 8, N.° 6. Doc. 5.
  39. C. d’elrei a B. de Faria de 6 de maio de 1545.
  40. C. d’elrei a B. de Faria do mesmo dia, na Corresp. Orig., f. 1.
  41. C. de B. de Faria a elrei de 25 de março de 1546, na G. 2, M. 5, N.° 45.
  42. Ibid.
  43. C. de B. de Faria a elrei de 6 de abril de 1546, na G. 2, M. 5, N.° 23.
  44. Ibid. — Que as informações de Ricci tinham sido mas, deduz-se claramente da carta de B. de Faria de 12 de dezembro de 1546, que adiante havemos de citar.
  45. Bulla de 22 de agosto de 1546. Maç. 15 de bullas N.° 18, no Arch. Nac.
  46. C. do cardeal Carpi á elrei de 13 de outubro de 1546, na Collecç. do Sr. Moreira, Quad. 11.
  47. Não podémos descubrir os despachos trazidos por Simão da Veiga; mas os documentos subsequentes esclarecem sufficientemente esta phase da negociação.
  48. C. d’elrei a B. de Faria de 4 de dezembro de 1546, na Corresp. Orig., f. 220.
  49. Ibid.
  50. C. de B. de Faria a elrei de 12 de dezembro de 1545, na G. M 2, n.° 56.— «Cardeal ouve que disse: que querem os inquisidores? Querem carne? Ibid.
  51. Doc. da G. 2, M. 1, N.° 18, no Arch. Nac. O parecer dos quatro christãos-novos não tem data nem assignatura, mas vê-se claramente do seu conteúdo que é dos fins de 1546 ou dos principios de 1547.
  52. A analyse e refutação da consulta dos christãos-novos acha-se na G. 2, M. 11, N.° 21. Tem por fóra em letra coeva uma nota que diz serem apontamentos do celebre inquisidor João de Mello.
  53. Doc. da G. 2, M. 1, N.° 21.
  54. C. d’elrei a B. de Faria de 22 de janeiro de 1547, na Corresp. Orig., f. 230.