Iracema/VII

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VII

Iracema passou entre as arvores, silenciosa como uma sombra; seu olhar scintillante coava entre as folhas, quaes frouxos raios de estrellas; ella escutava o silencio profundo da noite e aspirava as auras subtis que afflavão.

Parou. Uma sombra resvallava entre as ramas; e nas folhas crepitava um passo ligeiro, si não era o roer de algum insecto. A pouco e pouco o tennue rumor foi crescendo e a sombra avultou.

Era um guerreiro. De um salto a virgem estava em face dele, tremula de susto e mais de cholera.

— Iracema! exclamou o guerreiro recuando.

— Anhanga turbou sem duvida o somno de Irapuam, que o trouxe perdido ao bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra contra a vontade de Araken.

— Não foi Anhanga, mas a lembrança de Iracema, que turbou o somno do primeiro guerreiro tabajara. Irapuam desceu do seu ninho de aguia para seguir na varzea a garça do rio. Chegou, e Iracema fugio de seus olhos. As vozes da taba contarão ao ouvido do chefe que um estrangeiro era vindo á cabana de Araken.

A virgem estremeceu. O guerreiro cravou nella o olhar abrazado:

— O coração aqui no peito de Irapuam, ficou tigre. Pulou de raiva. Veio farejando a presa. O estrangeiro está no bosque, e Iracema o acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o sangue do guerreiro branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame a filha de Areken.

A pupilla negra da virgem scintillou na treva, e de seu labio borbulhou, como gotas do leite caustico de euphorbia, um sorriso de despreso:

— Nunca Iracema daria seu seio, que o espírito de Tupan habita só, ao guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras! Torpe é o morcego porque foge da luz e bebe o sangue da victima adormecida!...

— Filha de Araken! Não assanha o jaguar! O nome de Irapuam vôa mais longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras. Que o guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra para o vencedor.

— O guerreiro branco é hóspede de Araken. A paz o trouxe aos campos de Ipú, a paz o guarda. Quem offender o estrangeiro, offende o Pagé.

Rugio de sanha o chefe tabajara:

— A raiva de Irapuam só ouve agora o grito de vingança. O estrangeiro vai morrer.

— A filha de Araken é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse Iracema travando da inubia. Ella tem aqui a voz de Tupan, que chama seu povo.

— Mas ella não chamará! respondeu o chefe escarnecendo.

— Não, porque Irapuam vae ser punido pela mão de Iracema. Seu primeiro passo, é o passo da morte.

A virgem retrahio d'um salto o avanço que tomara, e vibrou o arco. O chefe cerrou ainda o punho do formidável tacape; mas pela vez primeira sentio que pesava ao braço robusto. O golpe que devia ferir Iracema, ainda não alçado, já lhe trespassava, á elle proprio, o coração.

Conheceu quanto o varão forte, é pela sua mesma fortaleza, mais vencido das grandes paixões.

— A sombra de Iracema não esconderá sempre o estrangeiro á vingança de Irapuam. Vil é o guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher.

Dizendo estas palavras, o chefe desappareceu entre as arvores. A virgem sempre alerta volveu para o christão adormecido; e velou o resto da noite a seu lado. As emoções recentes, que agitarão sua alma, a abrirão ainda mais á doce affeição, que ião filtrando nella os olhos do estrangeiro.

Desejava abriga-lo contra todo o perigo, recolhe-lo em si como em um asylo impenetravel. Acompanhando o pensamento, seus braços cingião a cabeça do guerreiro, e a apertavão ao seio.

Mas, quando passou a alegria de o ver salvo dos perigos da noite, entrou-a mais viva a inquietação, com a lembrança dos novos perigos que ião surgir.

— O amor de Iracema é como o vento dos areaes; mata a flor das arvores: suspirou a virgem.

E affastou-se lentamente.

Notas[editar]

Pag. 25.—Aflar.—Sobre este verbo que introduzi na lingua portugueza do latim afflo, já escrevi o que entendi em nota de uma segunda edicção da Diva, que brevemente ha de vir a luz.

Anhanga.—Davão os indigenas este nome ao espirito do mal; compõe-se de anho só e angá alma. Espirito só, privado de corpo, fantasma.