Livro da ensinança de bem cavalgar toda sella/Noticia do manuscripto

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NOTICIA DO MANUSCRITO
EXTRAHIDA DOS ANNAES DAS SCIENCIAS, DAS ARTES E DAS LETTRAS
TOMO 8.° E 9.°

De todos os Auctores Portuguezes de que temos noticia e que podemos consultar, os primeiros que escrevêraõ com mais individuaçaõ sobre as obras do Sr. D. Duarte, foraõ os dois Chronistas contemporaneos Fr. Bernardo de Brito e Duarte Nunes de Leaõ. O primeiro nos seguintes termos: Escreveo (o Sr. D. Duarte) alguns tratados por muito bom estilo, em particular do fiel Conselheiro, do bom governo da Justiça, de que eu vi uns grandes fragmentos em um livro pequeno, e mui antigo, e da Misericordia, que naquelle tempo foraõ tidos em grande estima... deichou um livro de cavalgar e domar bem um cavalo. Duarte Nunes de Leaõ Cap. xix da Chronica daquelle Monarcha diz: ... Na lingua latina escreveo alguns livros de coizas moraes, e entre elles um tratado do regimento da Justiça e dos Officiaes della, de que uma parte se vê ainda na Casa da Supplicaçaõ. Escreveo outro tratado dirigido á Rainha sua muher, cujo titulo era do Leal Conselheiro. Fez outro livro para os homẽs que andaõ a cavallo, em que parece daria alguns preceitos de bem cavalgar e governar os cavallos.

Fr. Bernardo de Brito contentando-se com dizer que víra grandes fragmentos em um livro pequeno e mui antigo, sem nos declarar se este livro era impresso ou manuscrito, e em poder de quem existia, parece ter visto estes fragmentos nos mesmos codices em que achára as Peregrinaçoẽs da Senhora da Nazareth e a Doaçaõ de D. Fuas Roupinho, e por isso naõ quizera deixar-nos delles mais circunstanciada noticia.

Duarte Nunes de Leaõ, ao qual devemos o saber

que o Regimento da Justiça era escrito em latim, o que Fr. Bernardo de Brito nos tinha deixado ignorar, naõ é muito mais explicito do que elle; pois sendo naõ menos habil chronista que filologo, fala comtudo bem ligeiramente de um livro, que ja no seu tempo devia ser precioso, ao menos pela antiguidade e pelo auctor. Mas seja qual for a causa da obscuridade com que estes dois auctores se explicaõ, os outros que se lhes seguíraõ, souberaõ a este respeito somente o que elles lhes ensinaraõ. Faria e Souza copiou exactamente Duarte Nunes, posto que o naõ citasse, e sobre o testemunho do mesmo Duarte Nunes se fundou o laborioso D. Antonio Caetano de Souza em tudo o que sobre isto escreveo na Historia Genealogica.

Tal era a noticia que havia dos escritos do Sr. D. Duarte, quando Joaõ Franco Barreto deparou na livraria da Cartuxa d'Evora com uma grande quantidade de obras de pequena extensaõ, compostas pelo dito Monarcha, cujos os titulos consignou na sua Biblioteca, e da qual D. Antonio Caetano de Souza os copiou nas Provas de Historia Genealogica, e imprimio mesmo algumas das referidas obras, sobre uma copia do Conde da Ericeira, para que, diz elle, de todo se naõ perca a memoria de seus preciosos trabalhos, taõ dignos de estimaçaõ.

Desta succinta exposiçaõ parece colligir-se que Fr. Bernardo de Brito e Duarte Nunes naõ víraõ mais do que os fragmentos do bom governo da justiça; e Joaõ Franco Barreto, pretendo dar-nos o catalogo completo das obras do Sr. D. Duarte, naõ teve paciencia para o acabar; pois diz no fim do que nos transmittio e outras muitas obras (ainda que breves) de muito engenho e erudiçaõ. Diogo Barbosa, deo-nos menos que Joaõ Franco Barreto; e D. Antonio Caetano de Souza, que imprimio algumas deque os dois

primeiros naõ deraõ noticia, nos titulos de outras, naõ
se conforma com Barreto nem com Barbosa; ao mesmo

passo que em outros titulos, estes dois ultimos algumas vezes tambem se naõ conformaraõ entre si.

A razaõ desta divergencia se explica, se considerarmos que no Leal Conselheiro, um certo numero de capitulos novamente escritos faz fundo da obra, e que com elles misturou o auctor, 1º outros capitulos que para outras obras tinha feito. 2º Memorias e artigos avulsos que a outros respeitos e em outros tempos tinha composto; e de tudo ordenou aquelle tratado, com o qual naõ só satisfez ás istancias da Rainha D. Leonor, mas ainda offereceo nelle á sua leitura materiais que entendeo poderem ser-lhe agradaveis e proveitosas.

Daqui se vê que este precioso tratado tem a vantajem de comprehender emsi um grande numero de composições avulsas do seu auctor, e fica ao mesmo tempo explicado como naõ poucas daquellas Memorias que Joaõ Franco Barreto e D. Antonio Caetano de Souza acharaõ na Cartuxa d'Evora, fazem effectivamente parte do Leal Conselheiro.

Seja como for, o certo é que os varios escritores que, seguindo a auctoridade de Brito, fizeraõ mençaõ daquelles tratados, convieraõ que de todos elles nada se sabia que existisse ja naquelles tempos, isto é, anteriores á descoberta de Joaõ Franco Barreto: e tendo nós encontrado na riquisssima Biblioteca Real dos manuscritos d París o codice nº 7:007, contendo as duas obras mais consideraveis do Sr. D. Duarte, julgamos que fazemos bom serviço dando à luz este precioso monumento da nossa antiga litteratura Portuguesa.

É pois este Codice u volume em folio grande, escrito em pergaminho e em gothico, com 128 folhas, ou 255 paginas, por ser o seu verso da ultima folha em branco, e cada pagina em duas columnas. Este Codice

acha-se encadernado em marroquim encarnado
com as armas de França, como muitos outros daquella

Biblioteca. O manuscrito que elle contem é evidentemente uma copia, porem feita com a maior perfeiçaõ e luxo, que póde desejar-se e conferida com o maior escrupulo, o que se vê de algumas palavras essenciaes ao sentido, e até lettras que por engano e copista raras vezes tinha omitido; as quaes se achaõ escritas com a mesma tinta, e com o mesmo caracter entre as linhas do texto. Nelle naõ ha raspadella, nem emenda, a naõ serem as poucas que acima dissemos, e está perfeitamente conservado. A lettra capital, ou a inicial de cada capitulo, é cuidadosamnte desenhada com tintas de diversas cores e estes desenhos enriquecidos muitas vezes com oiro; os acessorios deles ocupaõ toda extensaõ da columna em que o capitulo começa; tudo na forma usada nos manuscritos mais perfeitos daquelles tempos.

O que o Sr. Duarte comprehendeo debaixo do titulo de Leal Conselheiro, compõe-se de uma Tavoa, que occupa as primeiras tres paginas e principio da quarta, cujo o resto fica em branco; de um Prollego que principia na terceira folha e acaba no recto da quarta e de 103 capitulos que occupaõ desde o verso da folha 4 até ao recto da folha 96 em que acaba a obra. Na segunda columna da mesma pagina ficaõ 31 linhas em branco, seguem-se duas folhas, igualmente em branco, e no recto da folha 99 começa o mesmo luxo e perfeiçaõ o livro da Ensinança de bem cavalgar, o qual occupa até o meio da pimeira columna da folha 128. É o que julgamos sufficiente, para se poder fazer ideia deste belo manuscrito, para o que muito ajudara o fac simile, que se ajunta a esta primeia ediçaõ.

Perguntando o Bibliothecario, por quem isto escreve, se por ventura este e outros preciosos manuscritos, que se acham na Bibliotheca, seriaõ do espolio

do Sr. D. Antonio, Prior do Crato; ou se existia alguma
memoria do modo porque delles se fizera acquisiçaõ;

respondeo, que nenhuma noticia havia; mas que tendo Colbert, quando quiz formar esta Bibliotheca, escrito a todos os agentes diplomaticos e consulares da França, para que comprassem todos os livros e manuscritos raros das nações em que residiaõ, era natural que eles fossem adquiridos por essa occasiaõ, e remettidos para Paris pelos agentes da França

em Portugal.