Memórias Póstumas de Brás Cubas/VIII

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CAPITULO VIII
 
Razão contra Sandice
 

Já o leitor comprehendeu que era a Razão que voltava á casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo:

La maison est à moi, c'est á vous d'en sortir.[1]

Mas é sestro antigo da Sandice criar amor ás casas alheias, de modo que, apenas senhora de uma, difficilmente lh’a farão despejar. E’ sestro; não se tira dahi; ha muito que lhe callejou a vergonha. Agora, se advertirmos no immenso numero de casas que occupa, umas de vez, outras durante as suas estações calmosas, concluiremos que esta amavel peregrina é o terror dos proprietarios. No nosso caso, houve quase um disturbio á porta do meu cerebro, porque a adventicia não queria entregar a casa, e a dona não cedia da intenção de tomar o que era seu. Afinal, já a Sandice se contentava com um cantinho no sotão.

— Não, senhora, replicou a Razão, estou cançada de lhe ceder sotãos, cançada e experimentada, o que você quer é passar mansamente do sotão á sala de jantar, dahi á de visitas e ao resto.

— Está bem, deixe-me ficar algum tempo mais, estou na pista de um mysterio.

— Que mysterio?

— De dous, emendou a Sandice; o da vida e o da morte; peço-lhe só uns dez minutos.

A Razão poz-se a rir.

— Has de ser sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa... sempre a mesma cousa...

E dizendo isto, travou-lhe dos pulsos e arrastou-a para fóra; depois entrou e fechou-se. A Sandice ainda gemeu algumas supplicas; ainda grunhiu algumas zangas; mas desenganou-se depressa, deitou a lingua de fóra, em ar de surriada, e foi andando... foi andando... Provavelmente andará até á consumação dos seculos.


  1. Em francês: "A casa é minha. Você é que deve sair dela".