Memorias de um Negro/2

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CAPITULO II

MINHA INFANCIA


Duas coisas os pretos acharam que deviam fazer depois da abolição: mudar o nome e, pelo menos durante alguns dias ou semanas, deixar a fazenda, para se convencerem de que estavam realmente em liberdade. Por isto ou por aquillo, chegaram á conclusão de que não deviam conservar o nome do antigo proprietario. E, primeira manifestação de independencia, muitos o abandonaram. Um escravo chamava-se, por exemplo, João ou Maria, simplesmente; nenhum accrescimo. Se João pertencia ao branco Hatcher, ficava sendo João Hatcher ou o João de Hatcher, designações evidentemente desagradaveis a um homem livre. João Hatcher se transformou em João S. Lincoln ou João S. Sherman. A letra S não era inicial dum nome, não tinha significação, mas o preto se orgulhava della.

Quasi todos deixaram, pois, a fazenda, certificaram-se de que tinham o direito de andar por fóra e sentiram o gosto da liberdade. Depois de algum tempo, muitos dos mais velhos tornaram ás antigas moradas e fizeram uma especie de contracto com os senhores, que os conservaram.

Minha mãe tinha um dono e o marido tinha outro. Esse marido, padrasto de João e meu, raro se mostrava na fazenda — apparecia uma vez por anno, creio eu, nas proximidades do Natal. Fugira na guerra civil, acompanhara o exercito federal, que o arrastara a Kanawha Valley, no Estado novo da Virginia Occidental, para onde minha mãe foi tambem, depois da abolição.

Atravessar nesse tempo as montanhas da Virginia e chegar á Virginia Occidental era empresa difficil. Puzeram numa carroça alguma roupa e os trastes que possuiamos, mas as crianças fizeram a pé grande parte da viagem, centenas de leguas.

Nunca nos tinhamos afastado muito da fazenda — e, partindo para aquella aventura, despedimo-nos com tristeza dos nossos companheiros e dos velhos amos. Desde então ficámos em correspondencia com as pessoas mais idosas da familia dos brancos, e quando estas desappareceram, continuámos as nossas relações com as mais novas.

A viagem durou muitas semanas e quasi sempre dormimos ao relento, junto ao fogo que nos servia para preparar a comida. Certa noite descançámos numa cabana deserta. Minha mãe accendeu lenha para a ceia, mas, antes de extender a enxerga no chão, uma enorme serpente negra, de metro e meio de comprimento, sahiu do fogão e nos afugentou.

Chegámos emfim ao nosso destino, uma cidadezinha chamada Malden, a legua e meia de Charleston, hoje capital do Estado. A riqueza dessa parte da Virginia eram as minas de sal, e muitos fornos rodeavam Malden. Meu padrasto, que já tinha achado trabalho em um delles, conseguiu para nós uma cabana semelhante á que tinhamos deixado na fazenda. Realmente era um pouco peor. A nossa velha casa se achava de facto horrivelmente estragada, mas pelo menos lá respiravamos ar puro, E essa de agora estava mettida numa embrulhada compacta de habitações. Como não havia regulamentos sanitarios, a immundicie nos arredores era insupportavel.

Na vizinhança havia negros e brancos, brancos da especie mais baixa, pobres em demasia, ignorantes, abjectos. Multidão extravagante. Bebedeira, jogos, brigas, safadezas, constituiam a occupação ordinaria dessas criaturas.

Todos os que viviam na cidade ligavam-se, de um ou de outro modo, ás minas de sal. Apesar de muito novo, empreguei-me com meu irmão em uma das usinas, onde muitas vezes fui obrigado a trabalhar ás quatro horas da manhã. Foi ahi que me iniciei nos conhecimentos scientificos. Cada homem da embalagem tinha os seus toneis marcados com um numero. O de meu padrasto era 18. No fim de um dia de trabalho o capataz vinha escrever sobre os nossos toneis esse numero, que afinal se tornou meu conhecido; acabei por saber reproduzil-o, embora ignorasse todos os outros signaes, algarismos ou letras.

Muito cedo me veio um forte desejo de aprender leitura. Pensei que, se nada conseguisse na vida, isso me daria pelo menos a satisfação de ler jornaes e livros ordinarios. Apenas installados em nossa cabana da Virginia Occidental, pedi a minha mãe que me arranjasse um livro. De que fórma ella o achou e onde achou não sei, mas a verdade é que me trouxe um livrinho antigo de Webster, um folheto de capa azul que encerrava o alphabeto e syllabas sem sentido, como ab, ba, ea, da. Comecei a devorar essa brochura, a primeira que me cahiu nas mãos. Tinham-me dito que era preciso conhecer o abecedario, e esforcei-me tenazmente por aprendel-o, sem mestre. Nesse tempo não existia por ali um negro que soubesse ler, e eu era timido, não me aventurava a falar com os brancos. Em algumas semanas pude, entretanto, distinguir muitas letras. Minha mãe participava das minhas ambições e auxiliava-me com vontade. Em sciencia escripta era duma ignorancia completa, mas desejava muito para os filhos, tinha um grosso bom senso que lhe permittia livrar-se honrosamente de situações embaraçosas. Se fiz na vida qualquer coisa util, certamente devo isto a aptidões herdadas de minha mãe.

Por essa epocha, emquanto me estafava para instruir-me, chegou a Malden um negro moço de Ohio que sabia ler. Quando perceberam isso, procuraram um jornal, e, no fim do trabalho diario, homens e mulheres impacientes de ouvir noticias cercavam o rapaz. Eu invejava esse moço, a criatura mais digna de ser invejada no mundo, a que devia estar mais contente com a sua sorte.

Começavam então a tratar duma escola para meninos negros, a primeira que se ia fundar naquella parte da Virginia, e toda a gente se interessou por esse acontecimento notavel. Difficil era achar um mestre. Pensaram no rapaz de Ohio, o que lia jornaes, mas esse ainda não tinha idade para o cargo. Nesse ponto correu que outro negro de Ohio, antigo soldado, regularmente instruido, vivia na cidade. Convidaram-no. E como a escola era particular, cada familia consentiu em pagar-lhe um tanto por mez e hospedal-o: o mestre ficaria com todas, dia aqui, dia ali. Não era mau negocio para elle, pois quando entrava numa casa, punham na mesa o que havia de melhor. Em nossa pequena cabana, eu esperava sempre com impaciencia o dia do mestre.

Esse facto, uma raça inteira de repente marchando para a escola, é um dos phenomenos mais curiosos que já se observaram. Só as pessoas que viveram entre homens de côr podem ter idéa do enthusiasmo que elles manifestaram para instruir-se. Poucos se julgaram moços e nenhum se considerou velho demais para aprender: desde que tiveram mestre, encheram, não sómente as classes do dia, mas tambem as nocturnas. Os vellos ambicionavam ler a Biblia antes de morrer, e por isso era commum vermos á noite homens e mulheres estudando, gente de cincoenta, sessenta, até de setenta annos. Havia tambem aulas dominicaes, em que se ensinava principalmente o abecedario, e todas se enchiam, dia e noite; muitas vezes era preciso despedir alumnos por falta de lugares.

Pouco depois de estabelecida a escola, tive uma decepção, a maior que já experimentei. Fazia alguns mezes que eu trabalhava no sal, começava a ganhar algum dinheiro — e meu padrasto declarou que era impossivel dispensar-me. Esta decisão arruinou-me todos os projectos; o meu desgosto foi enorme, tanto mais quanto do lugar onde trabalhava via sempre, de manhã e de tarde, meninos passarem felizes para a escola. Apesar de tudo resolvi aprender qualquer coisa e procurei furiosamente adivinhar o alphabeto no livro de capa azul. Minha mãe soffreu commigo, consolou-me de todos os modos e ajudou-me a achar o que me era necessario. Entendi-me afinal com o mestre, que me veio dar licções á noite, depois do trabalho. Fiquei tão alegre com isso que acredito haver ganho mais á noite que os que tinham o dia inteiro. O que então obtive serviu-me de estimulo mais tarde, em Hampton e Tuskegee, para o estabelecimento de cursos nocturnos. Mas no meu coração de criança eu nutria o desejo de estudar como os outros e nunca deixei de, por todos os meios, advogar a minha pretenção. Afinal venci: permittiram-me ir á escola diurna, durante alguns mezes, com a condição de me levantar muito cedo, trabalhar na usina até nove horas da manhã e voltar á tarde para mais duas horas de serviço.

A escola ficava um pouco longe da usina; e como eu só podia sahir ás nove horas, precisamente quando as aulas se abriam, a minha situação era desagradavel: chegava sempre depois de começadas as licções, ás vezes depois de terminadas. Para sahir do embaraço, pratiquei um acto que os leitores certamente condemnarão. Conto-o porque é um facto: confio muito no poder dos factos. Em geral é inutil esconder as coisas. Havia no pequeno escriptorio da usina um relogio que regulava o trabalho de mais de cem operarios. Imaginei que não me seria difficil chegar cedo a escola: bastava levar o ponteiro de oito e meia a nove horas. E foi o que fiz todas as manhãs, até que o contramestre desconfiou e fechou com chave a caixa do relogio. Na verdade eu não tinha querido causar prejuizo a ninguem: o que desejava era não perder os meus estudos.

Achei-me então a braços com outras difficuldades. A primeira se referia a chapéos. Todos os alumnos usavam chapéos ou casquettes, e eu não possuia nada disso. Sempre tinha andado de cabeça nua, e creio que os individuos que viviam perto de mim tambem nunca haviam julgado necessario cobrir-se. Agora, porém, vendo os meus camaradas cobertos, comecei a atrapalhar-me. E, segundo o costume, narrei o caso a minha mãe, que me disse não ter recurso para comprar-me um chapéo de loja, grande novidade entre moços e velhos da minha raça, mas que arranjaria meio de me satisfazer. Tomou dois pedaços de panno, coseu-os e tornei-me proprietario da minha primeira casquette, que me encheu de orgulho. Minha mãe deu-me nesse dia uma licção que não esqueci e procuro transmittir aos outros. Recordando esse incidente, alegra-me a idéa de que ella possuia um caracter bastante forte para não cahir nas extravagancias dos que desejam parecer o que não são. Foi por isso que não comprou o chapéo na loja; não queria enganar os meus companheiros, exhibindo coisa superior ás nossas posses. Acho optimo que ella não se tenha endividado para adquirir um objecto caro. Tive muitos chapéos depois disso, mas nada me agradou tanto como a casquette fabricada com dois pedaços de fazenda por minha mãe. Tenho notado, bem desgostoso, que, entre os meus collegas que principiaram com chapéo de loja e zombavam da minha casquette feita em casa, varios acabaram na cadeia, outros não conseguem obter chapéo de nenhuma especie.

A segunda encrenca seria que me appareceu vinha da necessidade de achar um nome. Desde pequeno eu era Booker, e antes de entrar na escola não me occorreu que outro nome fosse preciso. Quando fizeram a chamada, percebi que os moleques tinham pelo menos dois nomes; havia alguns que usavam tres, luxo excessivo na minha opinião. Fiquei terrivelmente confuso. Chegada a minha vez, surgiu-me uma idéa luminosa, que resolvia o negocio, foi o que me pareceu. O mestre me perguntou os nomes, e eu respondi, firme:

— Booker Washington.

E assim me fiquei chamando. Soube depois que minha mãe me havia dado o appellido de Taliaferro, muito cedo cahido no esquecimento. Logo que o conheci, retomei-o e comecei a assignar-me: Booker Taliaferro Washington. Julgo que poucos homens neste paiz tiveram o privilegio de escolher um nome de semelhante modo.

Tenho ás vezes tentado imaginar-me um sujeito de boa posição social, com antepassados cheios de honra e gloria que me houvessem transmittido, do escuro dos seculos, nome, fortuna, uma propriedade que me desse orgulho; creio, porém, que se tivesse herdado essas vantagens todas, juntamente com a de pertencer a uma raça estimada, inclinar-me-ia a ceder à tentação de confiar nos avós e na côr da pelle, em vez de fazer pelo meu desenvolvimento pessoal o que fosse necessario. Decidi ha muitos annos deixar a meus filhos, em falta de antepassados, uma lembrança que elles possam guardar com altivez, que os anime a progredir.

E´ um erro julgar o negro, especialmente o negro moço, com precipitação e severidade. O rapaz negro lucta com obstaculos, desfallecimentos e tentações que só elle conhece. O moço branco que se mette numa empresa qualquer deve, segundo a opinião geral, sahir-se bem; com o negro se dá o contrario: todos se admiram quando elle não falha. Em resumo, o homem de côr estréa na vida com presumpções contra elle. Comtudo a influencia dos antepassados sobre os individuos, e portanto sobre a raça, tem valor, valor que não se deve exaggerar, é claro. Os que apregoam a fraqueza moral do negro e comparam o desenvolvimento delle ao do branco não levam em conta a força das recordações que ha nas casas das familias antigas.

Já confessei que nunca soube quem era minha avó. Tive e tenho primos, tios e tias, mas não me seria facil dizer onde elles se acham. Aliás o que se dá commigo dá-se com centenas e milhares de negros em todos os cantos do paiz. Só o facto de saber que o infortunio constitue mancha nos annaes duma familia de muitas gerações basta para que o rapaz branco se comporte bem: atraz delle e em redor delle ha uma linhagem, historia, relações, que o enchem de orgulho e o estimulam a vencer todas as difficuldades.

Alem de me deixarem pouco tempo para a escola, obrigaram-me a faltas constantes. E até isso acabou logo: afastei-me da aula e dediquei-me inteiramente á usina. Voltei aos meus estudos nocturnos. Posso dizer que adquiri á noite, depois de trabalhar o dia inteiro, a maior parte do que sei. Ás vezes era bem difficil achar mestre que prestasse. Um que descobri me causou enorme decepção: percebi que elle não estava muito mais adiantado que eu. Aconteceu-me andar a pé varios kilometros para dar as minhas licções. Apesar de tudo, por triste e desalentadora que tenha sido essa phase da minha mocidade, nunca esmoreci na resolução de instruir-me, custasse o que custasse.

Pouco depois da nossa chegada á Virginia Occidental, minha mãe, esquecendo a pobreza, adoptou um pequeno orpham a quem demos mais tarde o nome de Jayme B. Washington. Esse moço nunca nos deixou.

Tiraram-me da usina e empregaram-me na mina de carvão que ali se explorava especialmente para alimentar os fornos. Sempre tive medo de carvão: nas horas de serviço a gente se suja em demasia, e é difficil limpar-se depois. Alem disso, para ir da boca da mina ao lugar do trabalho, eu precisava andar cerca de kilometro e meio nuna escuridão terrivel. Julgo que em parte nenhuma ha trevas tão medonhas como nas minas de carvão. Essa onde me empreguei estava dividida em grande numero de compartimentos, que nunca pude localizar direito. Muitas vezes me perdi no meio delles. A minha lanterna se apagava, e isto era horrivel: se não tinha phosphoros, caminhava á toa naquella noite profunda, até que apparecesse alguem. O trabalho era duro e perigoso: constantemente nos arriscavamos a voar numa explosão repentina ou a ser esmagados sob um bloco de ardosia. Desastres deste genero se reproduziam constantemente, e a minha inquietação era immensa.

Muitas crianças, e das menores, eram obrigadas a passar grande parte da vida nas minas de carvão, longe de qualquer especie de estudo. Penso que ainda hoje isto acontece, coisa triste, pois tenho muitas vezes notado que, em geral, os rapazes que ali se criam são physica e mentalmente atrophiados. Não desejam sahir, não têm nenhuma ambição.

Nesse tempo, e mais tarde, ás vezes me entretinha conjecturando os sentimentos e as aspirações dum rapaz branco absolutamente livre nos seus desejos, capaz de exercer uma actividade enorme. Invejava esse homem que desconhecia obstaculos, podia tornar-se deputado, bispo, governador ou presidente da republica, por ter nascido branco, e tentava imaginar de que modo me comportaria em circumstancias analogas. Via-me no pé da escada e ia subindo, subindo sempre, até o ultimo degrau.

A inveja dos meus annos de mocidade já não existe: aprendi que o exito não se deve medir pela posição que um sujeito alcança na vida, mas pelas difficuldades que precisa vencer para triumphar. Assim, não hesito em declarar que, praticamente, a impopularidade da sua raça deu ao negro vantagens inestimaveis. Por via de regra o homem de côr é obrigado a consumir-se, a esmerar-se no que faz, para que o seu trabalho seja acceito; mas nessa lucta desigual e encarniçada ganha força e confiança em si mesmo, o que não se dá com o branco, habituado a percorrer caminhos agradaveis. De qualquer modo acho bom ser o que sou, um negro. Sempre me desgostou ouvir pessoas que, sem allegar meritos proprios, utilizam direitos, privilegios, distincções, provenientes da côr da pelle. Esses individuos me entristecem, pois estou convencido de que não é o facto de pertencer a uma raça julgada superior que eleva o homem, se elle não tem merecimento, nem o de provir duma raça considerada inferior que prejudicará o que tem valor intrinseco. Todos os seres perseguidos acharão consolações infinitas na grande lei humana, universal e eterna, que faz que o merito, escondido sob qualquer pelle, seja emfim reconhecido e recompensado. Não falo assim com a idéa de merecer a attenção dos outros, mas desejo pôr em evidencia a minha raça, raça de que me orgulho.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.