O Alforje da Boa Razão
Quem me a mim quer bem
Diz-me do que sabe,
Dá-me do que tem.
- Ao Sr. Manoel de Mello
Meu caro Manoel de Mello
Desejara eu hoje ver impresso o manuscrito que a esta acompanha.
Não o escrevi com esse intento.
Em geral os que publicam seus escritos, se prolongam, nas três primeiras linhas declaram que tirá-los à luz nunca tiveram em mente. Seguem-se logo às três linhas umas vinte expondo o que motivou a publicação. Quase sempre — instâncias de alguns amigos ou conhecentes (os quais, aqui entre nós, só depois do escrito impresso dele hão notícia). Há os mais ingênuos, por não dizer engenhosos. Estes confessam não merecer o livro a honra de ser tirado a lume; entretanto, trazem-no, como o único escopo — de lembrar tal ou qual ideia, que, porventura, desenvolverá pena mais bem aparada.
Não lhe parece que estou refraseando de mim próprio.
Pois eu lhe conto.
Houve em minha vida um dia de verdadeira e suavíssima comoção.
Esperava esse dia com inexprimível ansiedade.
V.[1] tem muito coração, e não se há de rir disso.
Enfim, amanheceu: foi o dia 270° do ano passado.
Nasceu-me um filho.
O herdeiro, sem dúvida, das queixas que do mundo tenho. Permita Deus que também o seja da resignação; do contrário, fica sem a melhor parte da herança.
Desde já lhe peço metade da estima com que V. me honra e compraz, para ele, que ainda não pode por si angariá-la: mas eu duplicarei esforços pola merecer.
Como se o coração mo adivinhasse, dias antes daquele ocorreu-me a idéia de preparar um mimo para meu filho.
Se a gente se prepara para obsequiar um hóspede, é natural que se prepare para obsequiar o dono da casa.
No dia 27 de setembro estava preparado o mimo — este manuscrito.
V., eu e todos sabemos como andam aí as livrarias atulhadas de bons livros, em desar do perene dilúvio dos péssimos.
Não era, porém, de um livro simplesmente a questão; ia mais longe; ligavase à idéia do livro a lembrança do trabalho.
Eu queria lisonjear meu filho, dando-lhe uma lição de trabalho, da qual ele tire proveito no futuro, se lá chegar e tiver juízo.
E eis aí.
Agora quanto à publicidade do manuscrito.
— Isto foi escrito por um pai, dizia-me comigo ontem; se aqui houver coisa que a meu filho seja útil, porque escondê-la, correndo a publicidade sem mores [2] sacrifícios de mais a mais? Às vezes um grão de trigo não é a origem de um celeiro?
Nisto considerando, tomei a resolução. Mas esta não se efetuará, se a V., a cujo esclarecido juízo entrego o manuscrito, parecer insensata.
Não há lisonja que desvie o seu ilustrado espírito do rumo da probidade e da delicada franqueza, quer em letras, quer em tudo o mais. Deixe-me, pois, falar.
Além de outros, distingue-o no meio dos estudiosos o título do respeito — quase culto — que à língua portuguesa V. consagra. Na sua idade não é fácil encontrar quem ande mais em dia com as lições dos clássicos, nem eu conheço outro mais aproveitado nas do progresso. Ajunte-se a isso a provisão de bom senso que o caracteriza — e diz-me a consciência que não errei na escolha do juiz. Observei em nossos curtos diálogos que V. nunca analisa para dar lições, mas sim com o intuito de aprender — o que mais e mais realça o muito que V. a mim e a tantos outros pode ensinar.
Não há de aprender nada em meu manuscrito, lá isso, não; mas há de seguramente lê-lo com atenção, e portanto mondará os defeitos mais daninhos.
Uma única observação.
Notará em certos pontos o descuido da clareza apropositada à verde compreensão dos meninos.
Não foi descuido, foi intenção.
Afigurou-se-me ser de mister dar lugar de quando em quando às perguntas por parte dos meninos. Costumá-los a compreenderem tudo sem esforço próprio — será, talvez, ocasionar que o espírito lhes adoeça de negligência.
Já na Alemanha, se bem me lembra, houve diretor de colégio que afazia os educandos em horas de recreio a decifrarem charadas e enigmas, preparando deste modo suavemente para o cálculo aqueles que seguissem mais tarde o curso das matemáticas. Não me pareceu desarrazoada essa lembrança.
Finalmente, à sua bondade e pachorra entrego o manuscrito. Se não valer a pena — rasgue-o.
Seu, ex corde
Bruno Seabra
Bahia, 1870