O Cabeleira/III

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III

Como nunca um mal vem desacompanhado, segundo mui bem diziam nossos maiores com aquella autoridade que, entre outros graves officios, não se lhes póde recusar na sciencia da vida, ao grande contagio das bexigas, que todo o anno de 1775 e uma parte do seguinte levou assolando a provincia de Pernambuco, succedeu uma secca abrazadora, mal não menos penoso senão mais funesto que o primeiro em seus resultados.

Si por occasião do referido contagio subiu o numero das victimas a tanto, que os cemiterios e as igrejas já não tinham espaço para lhes offerecer sepulturas, que diremos nós para darmos a conhecer, não unicamente os effeitos da peste, commum a todos os climas e a todas as regiões, mas juntamente com estes effeitos os da secca, flagello especial de algumas de nossas provincias do norte?

Exceptuada a febre amarella por occasião de sua primeira invasão, a qual se verificou em Pernambuco em 1686, não consta que alguma outra calamidade de peste haja sido mais fatal áquelles povos do que a sobredita calamidade. Do mesmo modo a secca, chamada em Ceará secca-grande, que arrasou Pernambuco desde 1791 até 1793, com ser mais intensa e duradoura do que a de 1776, ficou-lhe áquem nos estragos produzidos nesta ultima provincia onde esta secca foi precedida do terrivel contagio que levou milhares de almas como já dissemos. Dous flagellos, um immediatamente depois do outro, para não dizermos dous flagellos reunidos, dos quaes o primeiro disputava ao segundo a primazia no abater e no destruir, traziam pois a provincia em continuo pranto e luto, pranto nunca chorado e luto nunca visto em tamanha extensão, ao tempo em que se passaram os acontecimentos que diremos neste capitulo.

Governava então Pernambuco José Cezar de Menezes que não se demorou a expedir para differentes pontos recursos medicos e alimenticios, a fim de combater a epidemia, e acudir á pobreza no seio da qual, ao mesmo tempo que a fome, consequencia natural da secca, ia ella buscar, como sempre succede, o maior numero de suas victimas.

Não se fez esperar com seu quinhão de auxilio o poder espiritual, então amigo desinteressado e leal do poder civil, não só em Pernambuco, mas tambem em todas as capitanias do Brazil. E porque não havia de succeder assim, si sob as abobadas do vaticano ainda volteava, representado na pureza e sabedoria de sua doutrina, o grandioso espirito de Ganganelli; si aos jesuitas, expatriados, repellidos do seio de todos os estados civilizados, faltava a organização que havia antes imposto ao mundo esta companhia como a mais poderosa das até a esse tempo conhecidas, e que veiu depois restituir-lhes, não a totalidade, mas uma grande parte do perdido predominio; si no palacio da Soledade se sentava d. Thomaz da Encarnação Costa e Lima que tornou distincto o decennio de seu ministerio por sua circumspecção, por sua brandura, por suas virtudes, as quaes nos corações dos diocesanos lhe erigiram altares mais naturaes e mais solidos que os dos proprios templos?

Um bispo, que comprehende sua missão, é uma das maiores fortunas dos povos que pastorêa; porque um tal bispo, para proceder assim, tem necessidade de saber e de exercitar a caridade; porque um tal bispo não admitte em seu coração a mais minima sombra de odio, e só possibilita a entrada nelle à humildade, à modestia, aos mais delicados affectos paternaes; porque de todos estes predicados só se podem originar grandes e edificantes beneficios para os crentes, e particularmente para os pobres.

D. Thomaz dirigiu-se a este ideal, unico em que devem ter os olhos aquelles que se acobertam com as vestiduras episcopaes antes para representarem, como lhes cumpre, o officio da piedade e do amor celestial, que a magistratura das mundanas ambições. Ah, esta magistratura é muito mais difficil de contrastar e muito mais cruel quando móe em nome de Deus as consciencias, do que quando, agaloada ao sabor de ficções caducas, encorrenta a liberdade em nome da ordem e da razão publica, as quaes são um dia as primeiras que proclamam estarem innocentes. Deus porém, com ser tão poderoso e grande, não póde fallar, e é por isso que muitas e reprovadas paixões se dizem echos de sua voz.

Acredito que d. Thomaz foi bom, piedoso e justo por effeito de sua propria natureza; ha porém quem diga que deve elle seu adiantamento no caminho da perfeição catholica de que nos deixou formosissima estampa, ao estudo dos exemplos que lhe legaram seus predecessores e ao empenho com que buscou imital-os.

O que fica fóra de toda duvida é que d. Thomaz achou a cadeira episcopal de Olinda verdadeiramente illustrada por conspicuas e benemeritas virtudes que não foram até hoje igualadas. Assim, d. Francisco de Lima morreu tão pobre que unicamente se lhe encontraram de seu 40 réis em dinheiro. Elle havia despendido todas as rendas da mitra na sustentação das trinta missões de indios que reunira e visitara no seio de inhospitos sertões, sendo-lhe preciso, para cumprimento deste apostolico dever, transpôr mais de duzentas leguas na avançada idade de 70 annos. D. José Fialho não deixou nunca de exercitar as funcções pastoraes com honra sua e proveito publico. Por occasião de uma epidemia que grassou na provincia, este respeitavel antistite frequentou o pulpito, visitou os enfermos, acudiu aos necessitados, e deu ordem nas boticas para que, por conta delle, se aviassem remedios para os doentes que os medicos e cirurgiões declarassem serem pobres. Exercitou a caridade com tanto fervor que sua familia veiu a experimentar em casa falta do necessario. D. Luiz de Santa-Thereza deu começo ao palacio da Soledade, e concorreu para a fundação dos recolhimentos de Olinda, Iguarassú, Afogados e Parahyba, gastando nas respectivas obras o producto de suas rendas; missionou desde Porto-calvo até ao Rio-grande-do-norte. Finalmente d. Francisco Xavier Aranha concluiu o sobredito palacio, realizou differentes melhoramentos na igreja da sé e em varias outras igrejas, visitou grande parte da diocese, e foi muito zeloso nos deveres de seu sagrado ministerio. Depois de d, Thomaz dignificaram ainda aquella cadeira d. Diogo de Jesus Jardim, o esmoler, d, Azeredo Coutinho, o sabio, d. Marques Perdigão, o piedoso, o pacificador dos cabanos.

Estamos pois em 1776. É no momento em que o fogo da peste mais abrazara a provincia.

D. Thomaz mandou distribuir esmolas pelos pobres de Olinda e do Recife e despachou, como havia feito o governador, soccorros em dinheiro e viveres ás povoações mais affigidas do mal. Para completo desempenho de seu dever pastoral, ordenou que se fizessem preces em todas as matrizes e em todos os conventos, e convidou o povo a procissões de penitencia. As procissões eram então actos magestosos e dignos. Uma dellas produziu tão viva e salutar impressão no espirito do povo daquelle tempo, que o historiador se julgou na obrigação de transmittir sua memoria á posteridade.

Eram sete horas da noite quando esta procissão, que sahiu da igreja de S.-Pedro, se encaminhou á da Madre-de-Deus, designada para um rigoroso miserere. O bispo acompanhou-a em pessoa, descalço, e confundido com o povo. Todos, vestidos de branco, disciplinavam-se com sincera contricção.

Tendo chegado á igreja, d. Thomaz subiu ao pulpito, d’onde sua palavra começou a cahir com a singela eloquencia que a verdadeira piedade suscita e a que o amor paternal autoriza. O devoto bispo havia-se inspirado naquella passagem que um dos primeiros luminares das lettras portuguezas, fr. Luiz de Souza, nos deixou em sua immortal Historia-de-s.-Domingos, e que se refere ao sermão pregado com identico fim pelo visitador fr. João Furtado em Evora.

Antes que o povo começasse a dispersar-se, tres penitentes, envoltos nos competentes lençóes e armados com as respectivas disciplinas, tomaram pela Rua-direita abaixo trocando a puridade entre si palavras que davam a entender acharem-se elles penetrados antes de contentamento que de contricção, sentimento que a occasião autorizava com mais justiça a suppor em sujeitos taes. Eram Joaquim, José e Theodosio como o leitor já deve ter comprehendido.

Quando d. Thomaz se recolheu a seu palacio achou-se roubado. José, Joaquim e Theodosio, que no momento em que elle sahira a cumprir o piedoso mister, se haviam introduzido á sorrelfa, com a facilidade que proporciona o disfarce, em uma das muitas salas ou em um dos muitos corredores desse edifício, tinham tirado, na ausencia do venerando proprietario, não os castiçaes de prata como fizera João Valjean em casa do bispo Myriel, mas differentes quantias que d. Thomaz destinara para novos auxílios á pobreza do alto sertão mais affligida da fome do que nenhuma outra da diocese. Estas quantias achavam-se repartidas e já devidamente acondicionadas em pacotes distinctos, que só esperavam opportunidade para seguirem seu destino.

O digno prelado leu a triste verdade na confusão em que, ao entrar em seu gabinete, achou os officios e instrucções que, com as esmolas da sua profunda piedade, agora desapparecidas, dirigia aos parochos dessas longinquas e desvalidas freguezias.

No dia seguinte, muito cedinho, um cavalleiro esbarrou na vendola de Thimoteo e, saltando em terra e batendo com alguma precipitação na porta, perguntou para dentro:

— Ainda está dormindo, seu Thimoteo?

— Quem é você? — interrogou o vendeiro em resposta á pergunta que deixamos repetida.

— Abra a porta sem demora, que tenho que lhe dizer.

O recem-chegado era um crioulo alto, magro, de boa cara e de geitos e meneios que revelavam extrema benevolencia.

— Olhe, seu Thimoteo; ouça-me cá. Eu sei que em sua casa está o Cabelleira com o pai e o Theodosio; e por isso corri a avisal-os. Uma tropa vem já do Recife para prendêl-os. Diga a elles que se mettam na capoeira emquanto é tempo.

— E como soube você disso?

— Sabendo. No começo do Aterro passei eu por ella. O governador ficou muito escandalizado com o que elles fizeram hontem á noite no palacio do bispo, e diz que ha de pôl-os na corda mais dia menos dia. Tudo isso me contaram na venda de seu José do pateo da Ribeira.

— Homem, não posso deixar de lhe agradecer seu aviso.

— Não tem que me agradecer. Eu quiz fazer este serviço ao proprio Zé Gomes; com o pai pouco me importa, que, aqui entre nós, é muito descortez e desaforado. Mas, tendo meu irmão Liberato visto Zé Gomes menino, e querendo-lhe por isso algum bem, achei que era minha obrigação fazer o que em meu caso faria meu irmão para livrar do risco o antigo conhecido. Diga-lhe isto mesmo. E até á primeira vista, que tenho que ir encher ainda de aguardente estas ancorêtas no engenho da Magdalena; além disso a soldadesca já deve vir bem perto no faro das cascaveis que estão no ninho.

Quando Thimoteo volveu a dar parte do que lhe dissera o negro, não encontrou dos tres malfeitores, (os quaes na realidade tinham passado a noite na taverna), senão o Theodosio que, sabendo de tudo melhor do que os outros dous, os quaes haviam unicamente ouvido atravez das portas algumas das palavras do negro, correu sem demora a metter-se em uma especie de escondrijo que arranjára em Tigipió e cuja existencia era só delle conhecida.

Na epocha em que se passou esta historia, fazia o Capibaribe adiante do Forte-da-Piranga ', um cotovello, que foi depois aterrado, e é hoje quintal de uma casa. O angulo internava-se na direcção do sul por entre uns lagêdos alcantilados que se sumiam dentro de um capão de mato.

Era uma situação selvagem e encantadora, pela fartura da amenidade e das sombras com que a dotára a natureza, a qual desde os Afogados até ao Peres apresenta uma face monotona e triste — uma immensa planicie, coberta de capim-lúca.

Por entre as lages via-se uma verêda de gado que ia ter no engenho da Magdalena ou do Mendonça, segundo o chamaram antes. Esse atalho encurtava quasi um quarto de legua do caminho para quem tinha de ir da margem direita ao dito engenho.

O crioulo, por nome Gabriel, foi marginando o rio até ao ponto em que este fazia sua internação no continente. Nesse ponto o terreno accidentava-se um pouco, e elevava-se até ás lages negras pelo meio das quaes o gado tinha aberto sua passagem, melhor e mais naturalmente do que o faria o homem.

No momento em que o negro ia entrar na capoeira que cobria o sitio, alguns ramos se afastaram violentamente de um dos lados, e dous sujeitos litteralmente armados surgiram diante de seus olhos.

Vendo-se assim assaltado por Joaquim e pelo filho deste, o crioulo pôde unicamente dizer estas palavras:

— Acabo de lhes fazer um bem, e é deste modo que vosmecês me dão o pago?

— Desce do cavallo, negro. Este cavallo foi teu até este momento; d’agora em diante elle nos pertence, e é preciso que nol-o entregues quanto antes.

— Meu cavallo! exclamou o crioulo com entranhada dor. Meu cavallo é meu unico haver, meus senhores. Si vosmecês m’o tomarem, com que darei eu de comer a minha mulher e a meus filhos, que não têm outro arrimo sinão eu?

— Que morram de fome como estão morrendo da secca os outros por ahi além. Demais, não te custará ganhar com que comprares outro cavallo para continuares em teu officio. Deste é que deves perder o feitio. Precisamos delle já para fugirmos com tempo á tropa que ahi vem.

— Perdão, meus brancos, — disse Gabriel com a voz mais doce e terna que pôde. Eu peço a vosmecês que me deixem ir embora. Em que os offendi? Não os tenho respeitado sempre? Vosmecês não me conhecem? Sou um pobre preto que nunca fez mal a ninguem, e que segue seu caminho caladinho sem se importar com a vida dos outros filhos de Deus.

Os dous matadores não estavam, ao menos naquelle momento, para estas banalidades, e, conscios de que urgia remover o óbice, saltaram sobre o crioulo, e, apeando-o com violencia, tomaram-lhe o animal, o qual se deixou passivamente conduzir pelo cabresto a um fechado da capoeira onde Joaquim julgou prudente recolhel-o sem demora.

Gabriel, que de pé e immovel viu, com lagrimas nos olhos, desapparecer o seu unico bem, reflexionou com pezar:

— Então, vosmecês vão montados para sua casa, e eu é que hei de ir para a minha de pé, sem o meu cavallo, heim?

— Ainda estás ahi fallando, negro? Quererás tomar-nos satisfações? replicou o Cabelleira voltando-se de chofre e fixando sobre o Gabriel a vista que chammejava como a de um chacal.

— Sim, eu sou negro, é verdade; mas os brancos tomam-me o que é meu, e deixam-me sem caminho nem carreira, com uma mão adiante e a outra atraz.

A estas vozes o Cabelleira não pôde mais conter-se, e de um só pulo fez-se sobre o seu interlocutor. Este, porém, já não se achava no mesmo lugar, mas sobre uma das lages que davam para o rio, tendo em uma das mãos uma faca núa, que refulgia aos raios do sol.

— Si quer brincar na ponta da faca, meu branco, a cousa é outra, e vosmecê encontra homem, — disse de cima.

Ainda bem não tinha proferido estas expressões, quando a seus olhos brilhava tambem a faca de seu feroz contendor.

Travou-se então entre elles um combate de gigantes que durou alguns minutos. A esse combate surdo, medonho, dava lugubre realce o deserto com sua profunda solidão.

Os dous contendores eram habilissimos em jogar a faca. Nunca se encontraram competidores mais dignos um do outro.

As laminas inimigas cruzavam-se a modo de impellidas por electricidades iguaes. O jogo da faca era já nesse tempo uma especialidade caracteristica dos matutos do norte, maxime dos matutos de Pernambuco.

Na violenta porfia tinham os jogadores percorrido toda a face da lage que, começando no estreito angulo, ia morrer no Capibaribe por um declívio quasi abrupto. Haviam-se avizinhado tanto do rio, que o ruido das aguas já não deixava ouvir o incessante bater dos ferros assassinos. Estes ferros eram como duas serpentes que mutuamente se mordem sem se poderem devorar.

De repente surgiu Joaquim em cima da pedra a um lado de Gabriel, o qual ficou assim entre dous inimigos capitaes.

— Ainda está vivo este negro, Zé Gomes? perguntou o mameluco ao filho.

— É agora a sua derradeira, — respondeu este,

— Com dous é impossivel a um só se divertir, — tornou o negro, em cuja testa a alvura do suor contrastava com o negror da pelle luzidia.

José Gomes estava excitado ao ultimo ponto e rolavam-lhe tambem pelo rosto bagas de suor alvinitente. Querendo por isso e por outras razões abreviar o duelo, cuja duração realmente excedia a sua previsão, apertou com o crioulo com toda a violencia de que era capaz e que, como sempre, levou de vencida todas as resistencias adversas. Gabriel, ou porque conhecesse que na realidade estava exposto a imminente perigo, ou porque julgasse ser chegado o momento de pôr por obra a sua traça, deixou-se escorregar, quando menos esperava o inimigo, pela face opposta da lage, e foi cahir dentro das aguas que passavam alli rapidas e espumosas.

Cabelleira correu, fóra de si, após o fugitivo a fim de ver si o apanhava para mitigar no sangue delle a sede que o combate lhe acendera; mas antes que houvesse transposto o espaço que os separava, a detonação de um tiro lhe annunciou que o temerario que lhe resistiva acabava de pagar com a vida esta ousadia.

Um momento depois o cadaver de Gabriel, entalado entre duas pedras que sobresahiam ás aguas no meio do canal, tingia-as com o seu sangue, e Joaquim o mostrava com o cano do bacamarte, vindo fumegante, ao filho, que nunca pôde, como seu pai, matar curimãs a tiro nas aguas turvas das enchentes.