O Cabeleira/VI

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VI


Não se póde descrever o abalo que experimentou Cabelleira ao reconher Luiza, menina até aquelle momento em sua imaginação, moça de então por diante aos seus olhos deslumbrados do explendor daquella belleza correcta, natural, irritada e crente.

Pela primeira vez depois de tantos annos, o musculo endurecido que elle trazia no peito dobrou-se a uma impressão profunda, a uma força irresistivel e fatal, como a cera se dobra ao calor do lume.

Á medida que se internava na espessura ia cahindo em si, e mais difficil de transpor se lhe ia tornando a via dolorosa por onde nesse momento arrastava os pés menos pesados que sua cabeça cheia de encontrados pensamentos.

Pouco a pouco o passado se lhe foi desenhando na tela, ao principio escura, depois diaphana e resplandecente da imaginação vivamente excitada pela violenta commoção. Por ultimo todas as scenas infantis, tão afastadas, que poderiam considerar-se sinão de todo desvanecidas, ao menos vagas, confusas e de impossivel resurreição, reappareceram nos seus olhos com o vigor de outr’ora sinão mais vivas e animadas que d’antes.

Luiza representou-se-lhe sorrindo e brincando nas campinas, por junto dos assudes, á sombra dos joazeiros. Era a mesma menina meiga e amavel, com quem elle folgára á beira dos poços e vallados, e para quem tantas vezes apanhara camarões nas enxurradas.

O bandido lembrou-se de que uma quadra tinha havido em sua vida, na qual elle só cuidava em armar arapucas por entre os leirões do roçado para pegar jurutis, em abrir fojos debaixo das moutas, ou armar quixós e mondés na capoeira com o fim de apanhar preás para a menina.

A conhecida scena do coelho pendurado da forca de ramos, obra de Joaquim, se lhe estampou novamente, por natural associação de idéas, na tela do pensamento, e veiu acrescentar-lhe o vexame que lhe opprimia o coração.

Viu depois Luiza encostada na cerca do quintal, ao pé de uma goiabeira, os cabellos soltos, os pésinhos descalços.

Esta ultima visão recordava-lhe a scena da despedida que o leitor conhece. José estava tão vivamente excitado, que lhe pareceu ouvir as vozes, as queixas, as rogativas, os prantos de Joanna, e as recusas, os remoques, as asperezas, o desprezo que para ella tivera Joaquim na manhã fatal, em que o pequeno fôra arrancado dos braços de sua mãi quasi hallucinada pela dôr da separação. Pareceu-lhe ouvir as palavras de Luiza: « Quero-lhe muito bem, mas não gosto quando vossê judia com os passarinhos, e tenho medo de sua faca. » Pareceu-lhe escutar distinctamente o som das suas proprias expressões: « Quando eu chegar de volta, não maltratarei mais os animaes. »

E a menina a quem tanto amára, a quem nunca esquecêra, e cuja imagem indecisa e vaporosa os olhos do seu pensamento tinham por mais de uma vez sorprendido junto de si testemunhando a perpetração de algum crime, essa menina crescêra, puzera-se moça, chegára á idade em que todos têm no criterio natural um côrpo de leis e na consciencia um juiz para julgar as suas e as alheias acções.

— Que juizo ficaria fazendo de mim Luizinha? perguntou de si para si o Cabelleira, insensivelmente arrastado por esta ordem de idéas. Ah! que póde ella pensar de mim sinão que sou um assassino?!

Luiza tinha-o, de feito, nomeado por esta palavra, havia poucos instantes, entre as lagrimas que lhe arrancára o desespero. Era pois certo, e o bandido bem o comprehendia, que o abysmo que já na meninice de ambos os separava, longe de se ter arrazado, se tornára mais fundo com o correr dos annos. Agora elle não judiava só com os animaes como em outro tempo; elle saqueava povoações e matava gente; e desta verdade era irrecusavel prova o que acabára de praticar com Florinda. Si até aquelle momento Luizinha lhe votára affeição ou se condoêra da sua pouca sorte, era natural suppôr que estes sentimentos se tivessem modificado, sinão de todo extinguido, depois do ultimo acontecimento. Á affeição deveria ter succedido o desprezo, á pena o odio.

Não eram outras as idéas que tumultuavam na cabeça de Cabelleira. Estas idéas produziram no seu animo tão profunda impressão que elle sentiu lagrimas nos olhos, elle o grande assassino que sempre se mostrára insensivel ao longo pranto que por toda a parte fazia correr.

Sem se poder governar, achou-se de repente voltado para o rio. Seus pés, primeiro que sua vontade, o queriam guiar de novo ao lugar onde tinha achado motivos para tamanha transformação. Eis que novo assobio, precedido da detonação de alguns tiros, rompeu os ares e veiu divertil-o destas preoccupações. O escondrijo, não havia que duvidar, precisava de seu soccorro. Então uma nuvem de sangue envolveu a vista do infeliz mancebo. O passado cahiu-lhe novamente em pedaços aos pés. O espirito de vingança fustigou-o com vehemencia no coração, theatro de encontradas e profundas paixões. Cabelleira volveu a ser outra vez féra, e rapido deslisou-se como uma cobra por entre as arvores e por debaixo da folhagem.

Com a mata que dava asylo aos malfeitores confinavam as terras onde Liberato, irmão de Gabriel, tinha uma engenhóca.

Ao principio Liberato viveu muito satisfeito em suas terras. Tendo-se, porém, annos depois formado o couto alli junto, foi-se elle desgostando a ponto, que só por não ter outro remedio continuou a morar nellas.

As terras eram muito ferteis, e a sua situação não podia ser melhor do que era; mas, pela pessima vizinhança, estavam, como nenhumas, expostas em todos os sentidos a serem usufruidas, como eram constantemente, pelos malfeitores, o que as havia inteiramente depreciado.

Na realidade quem menos se gozava das suas plantações era Liberato, dono dellas. A macaxeira mais enxuta, a melancia mais madura, o melhor milho verde, o feijão de melhor qualidade eram para a bocca ou antes, ao dizer popular, para o papo dos pesados vizinhos. A gallinha gorda anoitecia no poleiro mas não amanhecia no terreiro, não porque a raposa a tivesse pegado, mas porque os raposos a tinham tirado para a sua panella, que estava quasi sempre fervendo dentro da mata virgem.

A vacca leiteira, o quartáu carnudo desapparecia do pasto quando menos pensava o crioulo, que os ia recomprar em segunda mão, si, como quasi sempre acontecia, os animaes furtados eram da sua particular estimação; não escapavam da rapacidade dos malfeitores as proprias bêstas do serviço da engenhoca. Dentro dos cannaviaes appareciam vastas camarinhas, obra dos ladrões; as cannas passavam para a mata aos feixes. Emfim era uma calamidade aquella gente, era uma desgraça para o Liberato, mais do que para nenhum outro, aquella vizinhança.

Liberato propôz a venda das terras a mais de um morador do lugar, mas todos se escusaram a compral-as. De que valiam ellas em realidade, com serem tão boas, estando sujeitas, como estavam, áquella omnimoda servidão? Não tendo para onde ir, nem outro algum recurso, resignou-se Liberato á sua sorte, e botou para Deus, juiz supremo, que dá provimento a todos os recursos interpostos com justo fundamento. Era de indole pacifico, tinha mulher e filhos, não queria rixas com ninguem, e muito menos as queria com matadores de profissão.

Quando lhe aconselhavam em familia, a mulher, ou os filhos, para que reagisse contra os ladrões, elle respondia sempre com estas palavras, ou com outras equivalentes:

— Deus me livre. Si os brancos e o rei não podem com elles, eu, que sou negro, é que hei de poder? Vamos passando assim mesmo conforme Deus nos ajudar. Póde-se dizer que vivo trabalhando para elles. Paciencia! Um dia isto ha de ter fim, ou com a vida, ou com a morte. Será quando Deus quizer.

Liberato não procedia deste modo por fraqueza, mas por bonissimo discernimento. Elle era até valente por origem. Vinha a ser neto ou bisneto de Henrique Dias, com cuja fama se gloriava. Do illustre guerreiro lhe vinham por successão as terras que possuia nas proximidades do Monte-das-tabocas, onde o negro heroe conquistára brilho inescurecivel para seu nome que ficou sendo uma das primeiras glorias da patria. Mas bem estava vendo que não podia avantajar-se a quadrilhas de ladrões e assassinos affeitos á pratica de toda a sorte de depredações.

Havia já muitos annos que elle vivia sem ter neste assumpto outras idéas. Pouco a pouco se habituára a repartir o seu pelos ladrões. Esta partilha elle a considerava tão forçada, tão fatal, que, sempre que abria um novo roçado, ou encoivarava terras para algum novo partido de cannas, dizia, entre gracejo e resignação:

— É preciso fazer mais acrescentado para que os meus vizinhos não levem tudo, e eu não venha a ficar sem ter com que remir as minhas necessidades.

Estava Liberato um dia concertando uns cóvos para os metter em um poço onde os camarões saltavam em cardumes, quando, banhada em pranto, carpindo a sua desgraça lhe entrou pela porta a mulher de Gabriel.

— Mataram meu marido, Liberato. Estou viuva, e vossê já não tem seu irmão.

— Quem lhe contou isso, Anninha? perguntou o negro quasi esmagado da dor que lhe trouxe a repentina e funebre nova. Não é possivel. Ha de ser mentira. Quem havia de matar Gabriel, que nunca se importou com os outros?

— Desgraçadamente não é mentira, não. Eu soube de tudo. Foi o Cabelleira quem o matou. E o malvado ahi vem com o pai, roubando e esfaqueando a quem encontram. Previna-se, Liberato, que elles já devem estar na mata. Ai de mim! Que desgraça, meu Deus! Que será de mim sem Gabriel que era tão bom marido?!

— E onde estou eu, Anninha? Não chore. Eu ainda não creiu neste conto. Mas si succeder a desgraça que vossê diz, nem por isso deverá desesperar, que os homens ainda não se acabaram na terra.

Seguiu-se um longo pranto na casa do crioulo. Ao carpir de Anninha vieram juntar-se as lamentações de Rosalina, mulher de Liberato e irmã da viuva.

Liberato passou tres noites sem pregar olhos, pensando comsigo só. A dôr acerba a que elle, sem dar mostras, talvez por prudencia, mal tinha podido resistir com sobrehumano esforço, veiu despertar os longos resentimentos e antigos desgostos que jazíam como arrefecidos no fundo do seu coração. Aquelles que quotidianamente o despojavam dos productos do seu trabalho e da sua economia, tinham-lhe roubado uma vida preciosa. Quem lhe podia assegurar que elles não viessem mais tarde a tomar-lhe a mulher, a tirar-lhe a filha, a arrancar-lhe a propria vida si elle se oppuzesse á sua vontade criminosa?

Liberato reflectiu maduramente sobre este grande assumpto, e ao cabo de tres dias tomou a resolução que lhe pareceu melhor. Não se contava na distancia de tres, ou quatro, ou dez, ou vinte leguas da povoação um só proprietario, lavrador, foreiro, almocreve ou morador que não tivesse queixas dos malfeitores, especialmente do Cabelleira que a todos excedia na petulancia e fereza. Aquelles a quem faltavam motivos de offensa pessoal, tinham razão de sobra para quererem a dissolução do couto nas offensas feitas pelos facinorosos aos parentes e amigos. Só uma população cansada de lutas sanguinolentas, e um governo que cuidava menos de proteger efficazmente a propriedade e a vida na colonia do que de adquirir grossas rendas para a metropole, e riquezas para si proprio, poderiam soffrer bandos de sicarios que, assim fortificados ao pé das familias, roubavam impunemente bens, honra e vida.

Liberato entendeu-se com tres ou quatro dos vizinhos mais proximos, e depois de lhes haver dado parte do golpe de que fôra victima na pessoa de seu irmão, propoz-lhes colligarem todas suas forças para tentarem a expulsão dos malfeitores. Não obstante haver por essa occasião recordado os damnos irreparaveis que a cada um desses vizinhos tinham elles occasionado, não houve um só que estivesse pela proposta do negro, tal era o terror de que todos se achavam penetrados.

Nenhum queria arriscar-se a pagar com a vida semelhante ousadia aconselhada aliás pelo instincto da propria conservação.

Liberato voltou á casa triste e desanimado, mas não dissuadido de tentar o assalto, unico meio que se lhe offerecia de vingar-se dos assassinos de Gabriel, e libertar-se do violento imposto que sobre sua fraca fortuna, já muito depauperada, os malvados faziam pesar sem tregoas nem piedade.

Concertou seu plano comsigo mesmo debaixo de rigoroso sigillo. Na tarde seguinte com o pretexto de tirar uma abelha e encovar tatús, encaminhou-se para a mata, acompanhado de seus dous filhos Ricardo e Sebastião, e de seu genro Vicente, todos apercebidos com espingardas, facões e chuços.

Conhecia algumas das verêdas que levavam ao covil. Acostumados a verem nelle uma victima paciente de que mais tinham que tirar do que temer, não cuidaram os malfeitores em occultar-lhe essas verêdas. Liberato e os seus embocaram por uma dellas sem hesitações nem temores, perfeitamente senhores de si e conhecedores do terreno onde pisavam.

Antes de chegarem ao rancho foram presentidos. A verêda, antes picada aberta a machado, era estreita, e passava por um embastido de arvores colossaes, que formavam natural estacada, impossivel de romper.

Liberato sabia o perigo a que se expunha com este passo. Estava, porém, disposto a dar aos malvados uma lição de mestre, ainda que lhe custasse a propria vida, desmoralisando, quando outro successo não pudesse obter, o fatal valhacouto.

Ainda bem não tinham chegado ao ponto em que a picada se bifurcava, quando ouviram um assobio que repercutiu com estranho som na profunda selva.

— Ah! disse Liberato aos seus — perdemos a diligencia. Estão prevenidos e esperam por nós.

Elle não se enganava. Um dos moradores a quem convidára para o assalto, pondo-se em secreta intelligencia com um dos criminosos, delatára por mêdo a intenção de Liberato. Dupla cobardia, tanto mais digna de ser execrada quanto foi parte para que viessem a dar-se lamentaveis scenas!

Posto que logo conhecesse que não havia salvação possivel para nenhum delles, Liberato, não querendo dar o braço a torcer, proseguiu com firmeza em sua marcha como si nada houvesse.

Pouco adiante, a vereda estava completamente tomada por grossos troncos ligados ás arvores parallelas por fortissimos cipós.

— Estamos encurralados — disse elle com serenidade. Melhor um pouco; havemos de bater-nos a faca e a chuço. Voltemos, já que não podemos por aqui avançar. Cada qual trate de matar para não morrer.

— Não podemos abrir caminho atravez destes páos? perguntou Sebastião.

— De que modo? É impossivel — respondeu Liberato.

— Só si nós trepassemos, e fossemos saltando de galho em galho até deixarmos atraz de nós a estacada — lembrou Ricardo.

— Elles nos deixariam fazer isto? observou Vicente.

Mal tinha acabado estas palavras quando uma descarga da trincheira, deitando por terra o genro de Liberato, veiu annunciar-lhes que para elles tudo estava acabado.

Afastarem-se da trincheira para ficarem ao abrigo de seus traiçoeiros tiros foi a primeira cousa em que todos entenderam.

— Cobardes! exclamou Liberato com raiva concentrada. Têm gente como farinha, e encurralam quatro homens que elles não se animam a bater em campo aberto. Onde está a valentia destes ladrões que, não satisfeitos com o que me furtam, mataram meu irmão para lhe roubarem seu unico bem?

Depois de se haverem alongado alguns passos mais da trincheira onde reinou logo profundo silencio, perceberam que os inimigos vinham a seu encontro para lhes embargar a sahida. Achavam-se deste modo os assaltantes entre a espada e a parede.

Era medonha a escuridão dentro da mata.

— Facas em punho, e avancemos — gritou não obstante Liberato aos filhos, certissimo de que poucos instantes de vida restavam a todos elles.

Para dar o exemplo precipitou-se, como um raio, contra a mó de malfeitores que difficilmente lobrigou a pouca distancia diante de si. Sebastião e Ricardo praticaram o mesmo, e dentro em pouco as armas inimigas cruzaram-se com furia tal de parte a parte, que dellas saltavam chispas, e o som dos seus embates ia perder-se ao longe no seio da vasta selva.

Depois de alguns minutos que decorreram em incessante lutar, terceiro assobio sibilou por entre a folhagem. A este signal cahiu de cima de uma das arvores mais proximas a luz sinistra de dous fachos cujo clarão encheu o estreito passo.

Mettia horror o theatro da luta. Dos assaltantes só restava o Liberato que se batia, como um bravo que era, com o proprio Cabelleira; dos salteadores muitos faziam companhia com seus cadaveres aos de Ricardo, de Sebastião e de Vicente.

— Eu logo vi que tinha pela frente o ingrato Cabelleira — disse Liberato, que só a seu grande animo devia estar ainda de pé. Já que mataste meu irmão, miseravel, pódes tambem tirar-me a vida agora; mas fica sabendo que não lograrias o teu intento si não fosse o adjutorio de teus cobardes companheiros.

Á palavra ingrato José sentiu surgir-lhe espontaneo remorso na consciencia, e instinctivamente recolheu o impeto com que ia dar em Liberato o golpe de honra.

— Não fui eu que matei Gabriel — disse sem se sentir, sem o querer o malfeitor.

— Fui eu, fui eu — trovejou Joaquim com furia aterradora. E que tem isso? Pois ainda estás dando satisfações a este negro, Zé Gomes?

Ouviu-se então o estalo de galhos e cipós que se romperam com violencia inesperada para deixarem passar um corpo agil, que foi cahir de um salto a frente de Liberato. Esse corpo, ou antes essa onça petulante, irritada e cruel, não era sinão o pai de Cabelleira.

— Rende-te, negro — gritou Joaquim ao infeliz, descarregando-lhe sobre a cabeça, já em differentes partes mutilada, o facão que trazia na mão esquerda, emquanto com a faca presa na direita, aparava o golpe que vibrara como ultimo arranco a sua victima.

Liberato, de feito, não pôde mais resistir. Tinha o corpo todo crivado de facadas. Cambaleou e cahiu.

Joaquim atirando-se ao desgraçado, embebeu-lhe no peito, sem hesitar, antes com a firmeza de cynico sicario, a folha de sua faca, que lhe atravessou o coração.

— Por este guariba fico eu — disse. Não ha de vir mais perturbar o nosso socego.

Os cadaveres dos assaltantes foram examinados entre risos, insultos e galhofas impias, á luz dos fachos sinistros. Completou-se por este modo a tragedia.