O Caminho de Damasco/IV

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Marques foi ter com Jorge. Encontrou o filho do comendador a ler um romance de Feydeau. Fechou a porta do gabinete, puxou uma cadeira e foi sentar-se junto de Jorge. Este marcou a página com uma conta do alfaiate e sem mudar de posição, disse ao hóspede:

— Temos novidade?

— Nenhuma, respondeu Marques, e é justamente o pior.

— Que há?

— Perguntei-lhe agora pela resposta, e ela não me disse nada; mas saiu da sala com um modo que me tira toda a esperança. Creio que o seu conselho de escrever a carta foi mau.

— Mau! disse Jorge. Em nenhum caso podia sê-lo; uma carta não prova nada contra o senhor; podia, e pode dar um bom resultado. Quer que lhe diga uma coisa?

— Que é?

— Não desanime. A prima há de ceder, porque não pode encontrar melhor marido que o senhor... O senhor é capaz de a fazer feliz. Se ela não lhe respondeu é por excesso de reserva. Tem medo de que lhe levem a mal. Olhe, por que não fala a minha mãe?

— À sua mãe?

— Sim, ela obedece-lhe muito; estou que é um bom caminho. Vá, fale, e a coisa tomará bom caminho.

Marques levantou-se, tomou uma pitada, deu alguns passos no gabinete, concertou as suíças a um espelho e voltou a assentar ao pé do sofá.

— Mas está certo, disse ele, de que não há outro namoro?

— Certo, não lhe digo que esteja, mas tudo faz crer que não. Clarinha é muito metida consigo, e passa a vida ocupada nos arranjos da casa. Estas coisas mais ou menos se sabem ou desconfiam. Nada me consta a respeito dela... Tome o meu conselho; fale com minha mãe.

— Está dito! exclamou Marques; tomo o seu conselho.

Trata-se, como se vê, de um amor que o médico da casa dedicava à sobrinha de Silvestre Aguiar. Este amor, não o quero dar como uma dessas paixões infrenes e fogosas da juventude, nem com um desses amores tardios que nascem com a maturidade. Era uma afeição branda, temperada, refletida. Marques nunca fora casado; o celibato fora o programa de toda a sua vida, e sê-lo-ia até ao dia da morte, se as qualidades de Clarinha, a sua aplicação ao trabalho, os seus hábitos inocentes e graves, lhe não tivessem influído no ânimo a ponto de lhe despertar a idéia do matrimônio.

O espetáculo de uma vida plácida no meio da família começou a seduzir-lhe o coração. A razão veio auxiliar este impulso natural; comparou o que seria uma velhice solitária com uma velhice cercada dos cuidados de uma esposa digna desse nome. Clarinha parecia reunir as qualidades necessárias para o papel de sua companheira, e o médico, que tinha intimidade com Jorge, confiou-lhe tudo. Jorge aconselhou-lhe a arma epistolar e Marques, com a docilidade de quem está disposto a tudo, arriscou logo a primeira carta à moça.

A esta carta é que aludia. Já sabemos que a moça, não só não lhe respondera, mas até parecia fugir ao pretendente. Isto podia ser algum namoro, como sugerira a Jorge, mas também podia ser natural reserva de Clarinha, que observava rigorosamente as rígidas doutrinas de D. Joaquina. Na opinião desta boa senhora, a noiva só devia conhecer o noivo no dia do casamento.

— E já é conceder muito, acrescentava ela.

Certamente, a esposa do velho Aguiar já se não lembrava das festas da coroação, nem do namoro travado naquele tempo com o futuro comendador. Era natural; cada qual tem as idéias da sua idade; aos cinqüenta anos não se compreendem muito as loucuras dos vinte. Aos vinte, parece esquisita a austeridade dos cinqüenta.

Clarinha deixava-se guiar pelas idéias da tia; era provável que a sua reserva fosse apenas o resultado desta influência.

O certo é que Marques nada havia adiantado, quando Jorge lhe sugeriu a idéia de ir falar à mãe, idéia que o médico aceitou e resolveu pôr em prática no dia seguinte.

Não se pense, entretanto, que o conselho de Jorge de algum modo exprimisse interesse pela causa do pretendente. Era-lhe de todo indiferente que a prima casasse com este ou com aquele. Daria o mesmo conselho a qualquer pessoa que lho pedisse. O principal cuidado do filho do comendador era gozar a vida ao ar livre, sem preocupações de espécie alguma. A dama que passara na Rua do Ouvidor, quando ele conversava com os dois amigos, merecia-lhe mais (é duro de dizê-lo) que a prima. Em duas palavras, Jorge estava já adiantado na carreira da libertinagem.

Apenas o médico saiu do gabinete, Jorge continuou a leitura do romance. Daí a pouco, vieram chamá-lo para jantar; jantou, dormiu um pouco, à noite simulou que tomava chá, recolheu-se ao quarto, e às dez e meia, quando a mãe supunha que toda a casa repousava no regaço das suas boas doutrinas, abria o nosso Jorge a porta e corria afoitamente ao prazo dado.