O Cortiço/XVI

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A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido.

Ouvira, assentada impaciente à porta de sua casa, darem oito horas, oito e meia; nove, nove e meia. "Que teria acontecido, Mãe Santíssima?... Pois o homem ainda não estava pronto de todo e punha-se ao fresco, mal engolira o jantar, para demorar-se daquele modo?... Ele que nunca fora capaz de semelhantes tonteiras!..."

— Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo!

Foi até o portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jerônimo; ninguém dava noticias dele. Saiu, correu à esquina da rua; um silêncio de cansaço bocejava naquele resto de domingo; às dez e meia recolheu-se sobressaltada, com o coração a sair-lhe pela garganta, o ouvido alerta, para que ela acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se sem tirar a saia, nem apagar de todo o candeeiro. A ceia frugal de leite fervido e queijo assado com açúcar e manteiga ficou intacta sobre a mesa.


Não conseguiu dormir: trabalhava-lhe a cabeça, afastando para longe o sono. Começou a imaginar perigos, rolos, em que o seu homem recebia novas navalhadas; Firmo figurava em todas as cenas do delírio; em todas elas havia sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro lado do colchão, a infeliz ia caindo em modorra, o mais leve rumor lá fora a fazia erguer-se de pulo e correr à rótula da janela. Mas não era o cavouqueiro, da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma das vezes.

Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais aflita; na sua sobreexcitação afigurava-se-lhe agora que o marido estava sobre as águas do mar, embarcado, entregue unicamente à proteção da Virgem, em meio de um temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do oratório e rezou com a voz emaranhada por uma agonia sufocadora. A cada trovão redobrava o seu sobressalto. E ela, de joelhos, os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem consciência do tempo que corria, arfava soluçando. De repente, ergueu-se, muito admirada de se ver sozinha, como se só naquele instante dera pela falta do marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade de chorar, de pedir socorro; as sombras espichadas em volta do candeeiro, tracejando trêmulas pelas paredes e pelo teto, pareciam querer dizer-lhe alguma coisa misteriosa. Um par de calças, dependurado à porta do quarto, com um paletó e um chapéu por cima, representou-lhe de relance o vulto de um enforcado, a mexer com as pernas. Benzeu-se. Quis saber que horas eram e não pôde; afigurava-se-lhe terem decorrido já três dias pelo menos durante aquela aflição. Calculou que não tardaria a amanhecer, se é que ainda amanheceria: se é que aquela noite infernal não se fosse prolongando infinitamente, sem nunca mais aparecer o sol! Bebeu um copo d’água, bem cheio, apesar de haver pouco antes tomado outro, e ficou imóvel, de ouvido atento, na expectativa de escutar as horas de algum relógio da vizinhança.

A chuva diminuíra e os ventos principiavam a soprar com desespero. Lá de fora a noite dizia-lhe segredos pelo buraco da fechadura e pelas frinchas do telhado e das portas; a cada assobio a mísera julgava ver surgir um espectro que vinha contar-lhe a morte de Jerônimo. O desejo impaciente de saber que horas eram punha-a doida: foi à janela, abriu-a; uma rajada úmida entrou na sala, esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e começou a procurar a caixa de fósforos, aos esbarrões, sem conseguir reconhecer os objetos que tateava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou os fósforos, acendeu de novo o candeeiro e fechou a janela. Entrara-lhe um pouco de chuva em casa; sentiu a roupa molhada no corpo; tomou um novo copo d’água; um calafrio de febre percorreu-lhe a espinha, e ela atirou-se para a cama, batendo o queixo, e meteu-se debaixo dos lençóis, a tiritar de febre. Veio de novo a modorra, fechou os olhos; mas ergueu-se logo, assentando-se no colchão; parecia-lhe ter ouvido alguém falar lá fora, na rua; o calafrio voltou; ela, trêmula, procurava escutar. Se se não enganava, distinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de homem; deixouse ficar à escuta, concheando a mão atrás da orelha; depois ouviu baterem, não na sua porta, mas lá muito mais para diante, na casa da das Dores, da Rita, ou da Augusta. "Devia ser o Alexandre que voltava do serviço..." Quis ir ter com ele e pedir-lhe notícias de Jerôrimo, o calafrio, porém, obrigou-a a ficar debaixo das cobertas.

Às cinco horas levantou-se de novo com um salto. "Já havia gente lá fora com certeza!..." Ouvira ranger a primeira porta; abriu a janela, mas ainda estava tão escuro que se não distinguia patavina. Era uma preguiçosa madrugada de agosto, nebulosa, úmida; parecia disposta a resistir ao dia. "O senhores! aquela noite dos diachos não acabaria nunca mais?..." Entretanto, adivinhava-se que ia amanhecer. Piedade ouviu dentro do pátio, do lado contrário à sua casa, um zunzum de duas vozes cochichando com interesse. "Virgem do céu! dir-se-ia a voz do seu homem! e a outra era voz de mulher, credo! Ilusão sua com certeza! ela essa noite estava para ouvir o que não se dava..." Mas aqueles cochichos dialogados na escuridão causavam-lhe extremo alvoroço. "Não! Como poderia ser ele?... Que loucura! se o homem estivesse ali teria sem dúvida procurado a casa!..." E os cochichos persistiam, enquanto Piedade, toda ouvidos, estalava de agonia.

— Jeromo! gritou ela.

As vozes calaram-se logo, fazendo o silêncio completo: depois nada mais se ouviu.

Piedade ficou à janela. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade triste formou-se no nascente e foi, a pouco e pouco, se derramando pelo espaço. O céu era uma argamassa cinzenta e gorda. O cortiço acordava com o remancho das segundas-feiras; ouviam-se os pigarros das ressacas de parati. As casinhas abriam-se; vultos espreguiçados vinham bocejando fazer a sua lavagem à bica; as chaminés principiavam a fumegar; recendia o cheiro do café torrado.

Piedade atirou um xale em cima dos ombros e saiu ao pátio; a Machona, que acabava de aparecer à porta do número 7 com um berro para acordar a família de uma só vez, gritou-lhe:

— Bons dias, vizinha! Seu marido como vai? melhor?

Piedade soltou um suspiro.

— Ai, não mo pergunte, S’ora Leandra!

— Piorou, filha?

— Não veio esta noite pra casa...

— Olha o demo! Como não veio? Onde ficou ele então?

— Cá está quem não lho sabe responder.

— Ora já se viu?!

— Estou com o miolo que é água de bacalhau! Não preguei olho durante a noite! Forte desgraça a minha!

— Teria a ele lhe sucedido alguma?...

Piedade pôs-se a soluçar, enxugando as lágrimas no xale de lã; ao passo que a outra, com a sua voz rouca e forte, que nem o som de uma trompa enferrujada, passava adiante a nova de que o Jerônimo não se recolhera aquela noite à estalagem.

— Talvez voltasse pro hospital... obtemperou Augusta, que lavava junto a uma tina a gaiola do seu papagaio.

— Mas ele ontem veio de muda... contrapôs Leandra.

— E lá não se entra depois das oito horas da noite, acrescentou outra lavadeira.

E os comentários multiplicavam-se, palpitando de todos os lados, numa boa disposição para fazer daquilo o escândalo do dia. Piedade respondia friamente às perguntas curiosas que lhe dirigiam as companheiras; estava triste e sucumbida; não se lavou, não mudou de roupa, não comeu nada, porque a comida lhe crescia na boca e não lhe passava da garganta; o que fazia só era chorar e lamentar-se.

— Forte desgraça a minha! repetia a infeliz a cada instante.

— Se vais assim, filha, estás bem arranjada! exclamou-lhe a Machona, chegando à porta de sua casa a dar dentadas num pão recheado de manteiga. Que diabo, criatura! O homem não te morreu, pra estares agora ai a carpir desse modo!

— Sei-o eu lá se me morreu?... disse Piedade entre soluços. Vi tanta coisa esta noite!...

— Ele te apareceu nos sonhos?... perguntou Leandra com assombro.

— Nos sonhos não, que não dormi, mas vi a modos que fantasmas...

E chorava.

— Ai, credo, filha!

— Estou desgraçada!

— Se te apareceram almas, decerto; mas põe a fé em Deus, mulher! e não te rales desse modo, que a desgraça pode ser maior! O choro puxa muita coisa!

— Ai, o meu rico homem!

E o mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada antepunha à rude agitação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha de uma vaca chamando ao longe, perdida ao cair da noite num lagar desconhecido e agreste. Mas o trabalho aquecia já de uma ponta à outra da estalagem; ria-se, cantava-se, soltava-se a língua; o formigueiro assanhava-se com as compras para o almoço; os mercadores entravam e saiam: a máquina de massas principiava a bufar. E Piedade, assentada à soleira de sua porta, paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em que saíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo, naquele limiar de granito, onde ela, tantas vezes, com a cabeça encostada ao ombro do seu homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na guitarra dele os queridos fados de além-mar.

E Jerônimo não aparecia.

Ela ergueu-se finalmente, foi lá fora ao capinzal, pôs-se a andar agitada, falando sozinha, a gesticular forte. E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para o céu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucinadora, contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e metia-lhes no corpo luxúrias de bode. Parecia rebelar-se contra aquela natureza alcoviteira, que lhe roubara o seu homem para dá-lo a outra, porque a outra era gente do seu peito e ela não.

E maldizia soluçando a hora em que saíra da sua terra; essa boa terra cansada, velha como que enferma; essa boa terra tranqüila, sem sobressaltos nem desvarios de juventude. Sim, lá os campos eram frios e melancólicos, de um verde alourado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e afogados em tanto sol e em tanto perfume como o deste inferno, onde em cada folha que se pisa há debaixo um réptil venenoso, como em cada flor que desabotoa e em cada moscardo que adeja há um vírus de lascívia. Lá, nos saudosos campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; lá não varava pelas florestas a anta feia e terrível, quebrando árvores; lá a sucuruju não chocalhava a sua campainha fúnebre, anunciando a morte, nem a coral esperava traidora o viajante descuidado para lhe dar o bote certeiro e decisivo; lá o seu homem não seria anavalhado pelo ciúme de um capoeira; lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo; seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que à tarde levanta para o céu de opala o seu olhar humilde, compungido e bíblico.

Maldita a hora em que ela veio! Maldita! mil vezes maldita!

E tornando à casa, Piedade ainda mais se enraivecia, porque ali defronte, no número 9, a mulata baiana, a dançadeira de chorado, a cobra assanhada, cantava alegremente, chegando de vez em quando à janela para vir soprar fora a cinza da fornalha do seu ferro de engomar, olhando de passagem para a direita e para a esquerda, a afetar indiferença pelo que não era de sua conta, e desaparecendo logo, sem interromper a cantiga, muito embebida no seu serviço. Ah! essa não fez comentários sobre o estranho procedimento de mestre Jerônimo, nem mesmo quis ouvir noticias dele; pouco arredou o pé de dentro de casa e, nesse pouco que saiu, foi às pressas e sem dar trela a ninguém.

Nada! que as penas e desgostos não punham a panela no fogo!

Entretanto, ah! ah! ela estava bem preocupada. Apesar do alívio que lhe trouxera ao espírito a morte do Firmo e a despeito do seu contentamento de passar por uma vez aos braços do cavouqueiro, um sobressalto vago e opressivo esmagava-lhe o coração e matava-a de impaciência por atirar-se à procura de noticias sobre as ocorrências da noite; tanto assim que, às onze horas, mel percebeu que Piedade, depois de esperar em vão pelo marido, saia aflita em busca dele, disposta a ir ao hospital, à polícia, ao necrotério, ao diabo, contanto que não voltasse sem algum esclarecimento, ela atirou logo o trabalho p’ro canto, enfiou uma saia, cruzou o xale no ombro, e ganhou o mundo, também disposta a não voltar sem saber tintim por tintim o que havia de novo.

Foi cada uma para seu lado e só voltaram à tarde, quase ao mesmo tempo, encontrando o cortiço cheio já e assanhado com a noticia da morte do Firmo e do terrível efeito que esta causara no "Cabeça-de-Gato", onde o crime era atribuído aos carapicus, contra os quais juravam-se extremas vinganças de desafronta. Soprava de lá, rosnando, um hálito morno de cólera malsofrida e sequiosa que crescia com a aproximação da noite e parecia sacudir no ar, ameaçadoramente, a irrequieta flâmula amarela.

O sol descambava para o ocaso, indefeso, e nu, tingindo o céu de uma vermelhidão pressaga e sinistra.

Piedade entrou carrancuda na estalagem; não vinha triste, vinha enfurecida; soubera na rua a respeito do marido mais do que esperava. Soubera em primeiro lugar que ele estava vivo, perfeitamente vivo, pois fora visto aquele mesmo dia, mais de uma vez, no Garnisé e na Praia da Saudade, a vagar macambúzio; soubera, por intermédio de um rondante amigo de Alexandre, que Jerônimo surgira de manhãzinha do capinzal perto da pedreira de João Romão, o que fazia crer viesse ele naquele momento de casa, saindo pelos fundos do cortiço; soubera ainda que o cavouqueiro fora à Ordem buscar a sua caixa de roupa e que, na véspera, estivera a beber à farta na venda do Pepé, de súcia com o Zé Carlos e com o Pataca, e que depois seguiram para os lados da praia, todos três mais ou menos no gole. Sem a menor desconfiança do crime, a desgraçada ficou convencida de que o marido não se recolhera aquela noite à casa, porque ficara em grossa pândega com os amigos e que, voltando tarde e bêbedo, dera-lhe para meter-se com a mulata, que o aceitou logo. "Pudera! Pois se havia muito a deslambida não queria outra coisa!..." Com esta convicção inchou-lhe de súbito por dentro um novelo de ciúmes, e ela correu incontinenti para a estalagem, certa de que iria encontrar o homem e despejaria contra ele aquela tremenda tempestade de ressentimentos e despeitos acumulados, que ameaçavam sufocá-la se não rebentassem de vez. Atravessou o cortiço sem dar palavra a ninguém e foi direito à casa; contava encontrá-la aberta e a sua decepção foi cruel ao vê-la fechada como a deixara. Pediu a chave à Machona, que, ao entregá-la, inquiriu sobre Jerônimo e pespegou-lhe ao mesmo tempo a noticia do assassinato de Firmo.

Com esta nova é que Piedade não contava. Ficou lívida; um pavoroso pressentimento varou-lhe o espírito como um raio. Afastou-se logo, com medo de falar, e foi trêmula e ofegante que abriu a porta e meteu-se no número 35.

Atirou-se a uma cadeira. Estava morta de cansaço; não tinha comido nada esse dia e não sentia fome; a cabeça andava-lhe à roda, as pernas pareciam-lhe de chumbo.

Seria ele?!... interrogou a si própria.

E os raciocínios começaram a surdir-lhe em massa, ensarilhados, atropelando-lhe a razão. Não conseguia coordená-los; entre todas uma idéia insubordinava-se com mais teima, a perturbar as outras, ficando superior, como uma carta maior que o resto do barulho: "Se ele matou o Firmo, dormiu na estalagem e não veio ter comigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!"

Tentou fugir a semelhante hipótese; repeliu-a indignada. Não! não era possível que o Jerônimo, seu marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um homem a quem ela nunca dera razão de queixa e a quem sempre respeitara e quisera com o mesmo carinho e com a mesma dedicação, a abandonasse de um momento para outro; e por quem?! por uma não-sei-que-diga! um diabo de uma mulata assanhada, que tão depressa era de Pedro como de Paulo! uma sirigaita, que vivia mais para a folia do que para o trabalho! uma peste, que... Não! Qual! Era lá possível?! Mas então por que ele não viera?... por que não vinha?... por que não dava noticias suas?... por que fora pela manhã à Ordem buscar a caixa da roupa?...

O Roberto Papa-Defuntos disfera-lhe que o encontrara às duas da tarde ali perto, ao dobrar da Rua Bambina, e que até pararam um instante para conversar. Com mais alguns passos chegado à casa! Seria possível, santos do céu! que o seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar para junto dela?

Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descalço. Vinha satisfeita; estivera com Jerônimo, jantaram juntos, numa casa de pasto; ficara tudo combinado; arranjara-se o ninho. Não se mudaria logo para não dar que falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais indispensáveis e que não dessem na vista por ocasião do transporte. Voltaria no dia seguinte ao cortiço, onde continuaria a trabalhar; à noite iria ter com o novo amante, e, no fim de uma semana — zás! fazia-se a mudança completa, e adeus coração! — Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado, mandaria uma carta a João Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra à mulher, dizendo com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que nenhuma criatura está livre, deixava de viver em companhia dela, mas que lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o colégio da filha; e, feito isto, pronto! entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos, independentes, vivendo um para o outro, numa eterna embriaguez de gozos.

Mas, na ocasião em que a baiana, seguida pelo pequeno, passava defronte da porta de Piedade, esta deu um salto da cadeira e gritou-lhe:

— Faz favor?

— Que é? resmungou Rita, parando sem voltar senão o rosto, e já a dizer no seu todo de impaciência que não estava disposta a muita conversa.

— Diga-me uma coisa, inquiriu aquela; você muda-se?

A mulata não contava com semelhante pergunta, assim à queima-roupa; ficou calada sem achar o que responder.

— Muda-se, não é verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha.

— E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar satisfações! Meta-se com a sua vida! Ora esta!

— Com a minha vida é que te meteste tu, cigana! exclamou a portuguesa, sem se conter e avançando para a porta com ímpeto.

— Hein?! Repete, cutruca ordinária! berrou a mulata, dando um passo em frente.

— Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora carregas-me com ele! Que a má coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa estar que hás de amargar o que o diabo não quis! quem to jura sou eu!

— Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz!


Em torno de Rita já o povaréu se reunia alvoroçado; as lavadeiras deixaram logo as tinas e vinham, com os braços nus, cheios de espuma de sabão, estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem nenhuma delas querer meter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas às duas contendoras, como sucedia sempre quando no cortiço qualquer mulher se disputava com outra.

— Isca! Isca! gritavam eles.

Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a adversária uma formidável pancada na cabeça.

E pegaram-se logo a unhas e dentes.

Por algum tempo lutaram de pé, engalfinhadas, no meio de grande algazarra dos circunstantes. João Romão acudiu e quis separá-las; todos protestaram. A família do Miranda assomou à janela, tomando ainda o café de depois do jantar, indiferente, já habituada àquelas cenas. Dois partidos todavia se formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e quase todos os portugueses pela outra. Discutia-se com febre a superioridade de cada qual delas; rebentavam gritos de entusiasmo a cada mossa que qualquer das duas recebia; e estas, sem se desunharem, tinham já arranhões e mordeduras por todo o busto.

Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se Piedade de bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos, desgrenhada, rota, ofegante, os cabelos caldos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a boca correndo sangue:

— Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te meteres comigo! Toma! Toma, baiacu da praia!

Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os brasileiros opuseram-se ferozmente.

— Não pode!

— Enche!

— Não deixa!

— Não tira!

— Entra! Entra!

E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e logo em seguida um formidável rolo, um rolo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao passo que numa berraria infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas, baldes, regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquela centena de pernas confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com fúria; da rua, em todo o quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço e pela frente surgia povo e mais povo. O pátio estava quase cheio; ninguém mais se entendia; todos davam e todos apanhavam; mulheres e crianças berravam. João Romão, clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes demônios. "Fazer rolo aquela hora, que imprudência!" Não conseguiu fechar as portas da venda, nem o portão da estalagem; guardou às pressas na barra o que havia em dinheiro na gaveta, e, armando-se com uma tranca de ferro, pôs-se de sentinela às prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o balcão. Bertoleza, lá dentro na cozinha, aprontava uma grande chaleira de água quente, para defender com ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver lá fora, cada vez mais inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A polícia apareceu e não se achou com animo de entrar, antes de vir um reforço de praças, que um permanente fora buscar a galope.

E o rolo fervia.

Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do "Cabeça-de-Gato". Era o canto de guerra dos capoeiras do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.