O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro/Capítulo 1/1.1.2.

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1.1.2. As diversas propriedades

 

O direito de propriedade faz parte do direitos das coisas[1], sendo classificado como um dos direitos subjetivos[2]. Para Gustavo Tepedino, entretanto, “[a] classificação central que deve ser estabelecida, para a interpretação e aplicação das normas jurídicas, é a que estrema as relações jurídicas patrimoniais, constituídas por situações jurídicas economicamente mensuráveis, e as relações jurídicas não patrimoniais, formadas por situações jurídicas insuscetíveis de avaliação econômica, caracterizadas por interesses não patrimoniais ”[3]. Como se verá, tal distinção será crucial na análise dos direitos autorais, por conta do traço distintivo entre os direitos morais e patrimoniais do autor.

Já vimos que o CCB não define o direito de propriedade, limitando-se a informar que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e do direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”[4].

Apesar disso, a doutrina tem buscado encontrar as características inerentes ao direito de propriedade. Levando-se em conta a análise de Gustavo Tepedino, podemos apontar as seguintes duas características (a partir das distinções entre direitos reais e obrigacionais), das quais todas as outras são decorrentes[5][6]:

 
(i) no direito de propriedade, o poder do credor é exercido imediatamente sobre a coisa objeto do direito, ao contrário dos direitos de crédito, que são exercidos de maneira mediata, ou seja, com a intermediação do devedor;
(ii) o direito de propriedade tem caráter absoluto, ou erga omnes, sendo exercido em face de toda a coletividade, que deverá assim respeitar o aproveitamento econômico do titular[7].
 

De acordo com Orlando Gomes, “a propriedade é o mais amplo direito de utilização econômica das coisas, direta ou indiretamente. O proprietário tem a faculdade de se servir da coisa, de lhe perceber os frutos e produtos, e lhe dar a destinação que lhe aprouver. Exerce poderes jurídico tão extensos que a sua enumeração seria impossível”[8].

Se é certo que esta noção inicial de propriedade é bastante abrangente para nela se incluírem propriedades tão diversas quanto aquela exercida sobre bens materiais ou quanto esta outra exercida sobre bens imateriais, não é possível tratarmos todas as formas de propriedade como se fossem a mesma. Tanto é assim que cada uma das propriedades, sobre bens móveis e imóveis, rural ou urbana, de bens materiais ou imateriais, de bens particulares ou públicos, é regulada a partir de suas peculiaridades.

Em meados do século XX, Salvatore Pugliatti já havia atentado para a multiplicidade de facetas da propriedade[9]. Em sua análise, separa o tratamento dado em relação aos sujeitos do direito (perfil subjetivo) daquele dado ao objeto (perfil objetivo). Quanto ao primeiro, leva em consideração os aspectos qualitativos (propriedade pública ou privada) e quantitativos (condomínio e propriedade coletiva, por exemplo). Já quanto ao segundo, propõe investigar a propriedade a partir das peculiaridades do objeto.

Para Pugliatti, é indispensável a observância de características intrínsecas do objeto para bem compreendermos como se estrutura o respectivo direito de propriedade. O autor propõe, entre outras possibilidades, o estudo das seguintes categorias: (i) coisas corpóreas e incorpóreas; (ii) coisas móveis e imóveis; (iii) coisas simples e compostas. Para cada uma das categorias mencionadas, é possível atribuir uma determinada sistematização do direito de propriedade (ou mesmo sua negação).

Naturalmente, outras categorias podem ser consideradas. A própria Constituição Federal de 1988 (doravante, “CF/88”) dá tratamento distinto aos diversos tipos de propriedade. A partir da potencialidade econômica da propriedade, percebe-se a distinção da disciplina legal. “Na esteira desses princípios, são postos a salvo da desapropriação, para os fins da reforma agrária, a pequena e média propriedades, quando o titular não possuir uma outra (art. 185, I). No mesmo sentido é vedada a penhora da pequena propriedade familiar rural, por débitos derivados da atividade produtiva. A propriedade familiar terá meios específicos de financiamento para o seu desenvolvimento (art. 5º, XXVI)”[10].

Em suma, a CF/88 estabeleceu “vários estatutos para as diversas ‘situações proprietárias’, segundo a destinação do bem – rural ou urbano –; a potencialidade econômica – produtiva ou não produtiva –; e a titularidade, isto é, levando em conta se a aquisição se dá por parte de estrangeiro ou de brasileiro”[11].

A legislação infraconstitucional também cumpriu com seu papel de disciplinar a propriedade levando-se em conta os aspectos subjetivos e objetivos de que tratou Pugliatti. Os bens imóveis e móveis, de modo geral, estão sujeitos a regras distintas, como por exemplo quanto aos prazos de usucapião e necessidade de registro. Também sujeitos a regras próprias estão os bens públicos quando comparados aos bens privados, especialmente quanto à possibilidade de alienação e, a depender do caso, à possibilidade de uso por parte de terceiros. Os exemplos são inúmeros e para efeitos desta tese, meramente ilustrativos.

Por tudo isso, não nos parece cabível darmos por certo que uma única formulação do conceito de propriedade seja capaz de abarcar tantas e tão variadas situações jurídicas. Nesse cenário, é de fato indispensável começarmos atentando para as peculiaridades que caracterizam a propriedade intelectual a fim de estabelecermos, com rigor técnico, se os direitos autorais podem de fato ser objeto de propriedade.

Este material foi publicado por seu autor/tradutor, Sérgio Branco (ou por sua vontade) em Domínio público. Para locais que isto não seja legalmente possível, o autor garante a qualquer um o direito de utilizar este trabalho para qualquer propósito, sem nenhuma condição, a menos ques estas condições sejam requeridas pela lei.

 
  1. Nomenclatura adotada pelo CCB, em seu Livro III da Parte Especial, para tratar dos direitos reais. Por direitos das coisas “designa-se tradicionalmente a categoria das relações jurídicas que regula a apropriação e a utilização dos bens jurídicos por parte dos homens ”. TEPEDINO, Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução. Temas de Direito Civil II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; p. 135. Quanto à distinção dos direitos reais para os obrigacionais, leciona o autor: “[p]or regularem o aproveitamento econômico dos bens, os direitos reais têm por objeto as coisas apropriáveis ou suas utilidades (bem jurídico da relação real), postas à disposição do seu titular. Já os direitos de crédito têm por objeto (bem jurídico da relação obrigacional) a prestação a ser cumprida pelo devedor, de cujo desempenho resultará na coisa pretendida pelo credor (bem jurídico que almeja incorporar ao seu patrimônio). Daí inclusive a etimologia da palavra crédito, proveniente da síntese latina creditum (de credere), associada à confiança, a indicar a fidúcia depositada no devedor com vistas à satisfação do vínculo obrigacional ”. TEPEDINO, Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução. Cit. ; pp. 138-139.
  2. Para Orlando Gomes, os direitos subjetivos admitem diversas classificações, tais como (i) quanto à eficácia (absolutos ou relativos); (ii) quanto ao conteúdo (públicos e privados); (iii) patrimoniais (reais e pessoais) e extrapatrimoniais (direitos de personalidade e direitos de família) etc. GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil. Rio de Janeiro: ed. Forense, 2002; pp. 112-113.
  3. Grifos no original. TEPEDINO, Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução. Cit. ; p. 137.
  4. CCB, art. 1.228.
  5. TEPEDINO, Gustavo. Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução. Cit.; pp. 139-145.
  6. São características atribuídas aos direitos reais, mas fazemos referência aqui à propriedade por ser o nosso objeto de análise e investigação.
  7. Importante observar, entretanto, que a oponibilidade erga omnes não é exclusiva dos direitos reais, mas de todos os direitos absolutos, como por exemplo os direitos de personalidade.
  8. GOMES, Orlando. Direitos Reais. Cit.; p. 86.
  9. PUGLIATTI, Salvatore. La Proprietà e le Proprietà. La Proprietà nel Nuovo Diritto. Milão: Giuffrè, 1964.
  10. TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. Temas de Direito Civil, 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 326.
  11. TEPEDINO, Gustavo. Contornos Constitucionais da Propriedade Privada. Cit.; p. 327.