O Homem/XX

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Passou a noite toda inteira na ilha, muito sossegada, muito feliz ao lado do marido. Lá não havia sobressaltos nervosos, nem infundados temores, nem súbitos esquecimentos do que se fizera pouco antes; lá a vida era boa, corredia, larga e tranqüila. Como de costume, fizera o seu bocado de música, leram, jogaram e conversaram: ela contou-lhe, rindo e chasqueando, os seus últimos sonhos — o casamento dele com Rosinha — o desafio à guitarra. Cantou:

"Tu a amar-me e ou a amar-te,

Não sei qual será mais firme!

Eu como sol a buscar-te;

Tu como sombra a fugir-me."

— Parece que ainda estou te ouvindo, meu amigo.

— Sonhadora!

— Ah, mas via-me tão magra, tão escaveirada, tão amarela, que metia pena!

Ele achava graça, ria.

— Magra, tu! que tens este corpo!...

E apertava-lhe a polpa do braço com os seus dedos vigorosos.

— Mas não imaginas, meu querido, a má impressão que me fazia o demônio do sonho; era tudo como se fosse verdade: eu sentia e via como te estou vendo aqui!

— Estavas então muito feia...?

— Horrorosa! Se aquilo não passasse de pura ilusão — matava-me! acredita que me matava!

— Que vaidade, Magdá!

— Ora, no fim de contas sou mulher; além disso, prezo menos por mim a minha beleza do que por tua causa...

O rapaz agradeceu com uma carícia. E os dois continuaram a palestrar. Vieram à baila as saudades que Magdá sentira do filho e os seus tormentos por julgar-se longe dele.

— Estava como louca, disse a visionária; lembra-me bem de que, numa ocasião em que me fazia a passear pelo braço de meu pai na chácara da Tijuca, vi um regador de folha pintado de encarnado; pois queres acreditar que eu não podia atinar com o que aquilo era?...

— Tem graça!

— O que mais me admira, porém, de tudo isto, é que eu sonhe com todas as pessoas da minha convivência: contigo, com papai, com a nossa criada Justina, com a família desta, e jamais com meu filho... Nunca sonhei com ele!

— Como não, se não pensas noutra coisa enquanto dormes? Pelo menos assim acabas de o afirmar...

— Sim, mas nunca o vejo a meu lado...

— Vem a dar na mesma.

E assim cavaqueando, foram até à hora do chá, às dez, depois da qual, Magdá deu de mamar ao seu bebe. Em seguida lavou-se, tomou a sua roupa de alcova e afinal recolheu-se à cama com o marido, muito prosaicamente, a cantarolar um estribilho banal, feliz na convicção de que tinha ali mesmo a seu lado, ao mais curto alcance, tudo de quanto precisava para satisfazer as suas necessidades de mulher moça.

Foi então que ela tornou a si, na vida real. Estivera dezesseis horas em estado letárgico; havia caído em torpor às cinco da tarde e só acordara às nove da manhã do dia seguinte. Tomou a custo uma colherinha de xarope, que lhe deu a Justina, de um frasco novo que acabava de ser aberto, e ficou a olhar para a criada, fixamente, sem expressão, como uma figura de cera.

— Minh'ama ainda se lembra do que me disse ontem?...

— Que foi?

— Que eu falasse à Rosinha para vir cá, junto com o marido.

— Ah! lembro-me perfeitamente...

— Pois eles estão aí fora...

Magdá conservou-se estática; não teve a mais ligeira contração no semblante. A criada acrescentou, depois de vesti-la:

— Quer vosmecê que eu os faça entrar para esta saleta aí ao pé?...

— Pois bem.

Justina saiu do quarto, nadando em satisfação, e desceu de carreira à chácara, onde o Luiz a esperava ao lado da mulher.

— Daí a pouco eram estes dois conduzidos à presença da filha do Conselheiro. O rapaz trazia a sua fatiota nova do casamento conservando a gravata de cetim; a outra um vestido de fustão branco, sarapintado de florinhas azuis e cheirando à malva. Era ele agora quem estava muito vexado, e Rosinha não. Esta, ao contrário, resplandescia de contentamento expansivo; abria-lhe as pétalas da boca um sorriso largo de rosa ao desabrochar. Era a alegria vitoriosa da carne dos vinte anos, o riso da vontade satisfeita, o canto alegre da pomba depois do primeiro arrulho.

O sorriso do Luiz já era outro; um sorriso de sonso, de felizardo consciente da largueza da sua fortuna e da escassez do seu próprio merecimento. Não levantava o rosto e não olhava de frente como a esposa; tinha os olhos em terra e torcia e destorcia entre os dedos calejados o seu chapéu novo de abas largas; todo ele envergonhado de ser tão feliz, envergonhado como um pobre-diabo que é surpreendido a comer às escondidas um manjar delicadíssimo e digno da boca de príncipes.

Magdá ainda mais o confundia, porque não lhe tirava a vista de cima; considerava-o da cabeça aos pés; parecia estudar-lhe os menores traços da fisionomia, como se intimamente o comparasse com alguém.

— Então, com que sempre se casaram...? perguntou afinal, mordendo o lábio inferior e achinezando. os olhos.

Os dois, que até aí guardavam um silêncio espesso, apressaram-se a responder juntos, dando um pequeno passo para a frente:

— Casamos, sim senhora.

— E desde quando se gostam? Há muito tempo já?...

— Ora há que tempo!... resmungou Luiz, olhando de soslaio para a mulher.

Esta soltou uma risadinha e disse:

— Eu ainda bem não tinha acabado a muda e já ele andava atrás de mim..

— E agora... estimam-se deveras?...

Os manganões não responderam, olharam um para o outro, apertando os beiços, e afinal duas gargalhadas espocaram ao mesmo tempo, sem que ambos pudessem mais trocar um olhar entre si; esfogueados por aquele riso escandaloso, aquele riso que denunciava o que só eles, os brejeiros, lá sabiam.

Houve um silêncio, em que Magdá parecia meditar, muito séria; depois — fez um quase imperceptível movimento de ombros e ordenou à criada que fosse lá em baixo buscar uma garrafa de vinho: "Vinho bom, heim?"

Justina saiu correndo e de passagem atirou aos noivos um gesto que dizia: "Vocês agora é que vão ver o que é uma boa pinga!"

A histérica passou ao quarto de dormir e foi buscar o frasco de xarope de Easton, aberto havia pouco; enquanto Luiz, vendo-se a sós com a mulher, ferrou-lhe um beliscão na cinta.

— Fica quieto! segredou a moçoila, indicando com o polegar a porta por onde saíra a filha do Sr. Conselheiro.

Esta tornou a aparecer e propôs-lhe, com uma das mãos escondida atrás das costas:

— Porque não entram aí para essa outra sala!... Sentem-se lá... Estejam à vontade...

Os dois seguiram, um após outro, para o compartimento contíguo, e a enferma acompanhou-os com estranho olhar, em que havia um duro ressaibo de cólera invejosa. Chispava-lhe na pupila o mesmo rábido fulgor com que ela vira uma vez matrimoniar-se o casalzinho de rolas da sala de jantar e com que, de outra, fitara a voluptuosa miniatura do "Amor e Desejo", que seu pai tanto estimava.

Justina voltou, trazendo uma bandeja com uma garrafa já aberta e três copos.

— Agora vai buscar doces e biscoutos, encomendou-lhe a senhora.

A criada depôs a bandeja sobre a mesa do centro e saiu de novo. Então Magdá, com muita calma, sem lhe tremer nem de leve a mão, encheu um dos copos de vinho e despejou no restante da garrafa todo o xarope do frasco; em seguida ia a chamar os noivos, mas deteve se; tomou novamente a garrafa, mirou-a contra a luz, provou do vinho na ponta da língua e, satisfeita com o resultado do seu exame, tornou à alcova, trouxe outro frasco do xarope ainda intacto, abriu-o e fez deste o mesmo que com o primeiro.

— Agora sim, disse baixinho, sacolejando a garrafa., e acrescentou em voz alta, dirigindo-se para a sala próxima, enquanto enchia tranqüilamente o segundo e o terceiro copo:

— Olá! Venham daí beber à minha saúde.

Os desgraçados acudiram logo de pronto. Magdá apoderou-se do copo que havia enchido antes e ofereceu-lhes com um gesto amável os outros.

Luiz e Rosinha deram-se pressa em lançar mão cada um do seu.

— Então, vá! Para que sejam muito felizes disse a histérica, levando o vinho à boca. — Bebam tudo! bebam tudo!

Os dois obedeceram, enxugando de um trago o liquido, com uma pequena careta, que não puderam reprimir.

— Que tal? perguntou Magdá.

— Bom, muito obrigado, respondeu o cavoqueiro; mas, franqueza, franqueza, achei-o a modo que muito doce e muito azedo ao mesmo tempo...

— É que a gente não está acostumada... explicou Rosinha com um pigarro.

Nesse momento, Justina reaparecia, trazendo os biscoitos; porém, tanto o rapaz, como a noiva, pasto se servissem logo, não podiam comer, que lhes principiavam os queixos a emperrar. E amargava-lhes a boca e ardia-lhes a garganta de um modo muito esquisito.

Pediram água.

Justina não se achou com ânimo de gracejar e correu em busca do que eles reclamavam.

— Sentem alguma coisa? inqueriu Magdá tranqüilamente.

— Uma apertura aqui... disse Rosinha com dificuldade, levando a mão às têmporas e depois à nuca.

— Também a mim dói-me a cabeça... confirmou o cavoqueiro em voz alterada.

— Sentem-se, aconselhou a senhora. — Fiquem a gosto...

E sorriu.

Fez-se um silêncio gélido, em que se ouvia pendular na alcova de Magdá o seu pequeno regulador de bronze; mas no fim de alguns instantes os pobres noivos, que pareciam cada vez mais sobreexcitados, puseram-se a mexer com a mandíbula inferior, contraindo os músculos da face e daí a pouco tinham rápidos estremecimentos convulsivos, que lhe agitavam o corpo inteiro, de instante a instante, violentamente.

Luiz quis falar e não pôde; apenas gorgolejou uns bufidos guturais.

Magdá ria-se, olhando as caretas convulsivas que ele e a mulher faziam. Esta, agoniada, levava simultaneamente as mãos à garganta e ao estômago, sem poder gritar, tão contraída tinha já o laringe.

Repetiam-se os espasmos com mais intensidade, acompanhados de feias agitações tetaniformes. O cavoqueiro estorcia-se na cadeira, rilhando os dentes e tomado de uma ereção dolorosíssima.

Quando Justina voltou, encontrou-os por terra, a estrebuchar; roxos, as pupilas dilatadas os membros hirtos, os queixos cerrados.

A criada soltou um grito, atirou com a bilha de água e os copos e saiu a berrar.

Com este barulho, Luiz teve um acesso mais forte e retesou-se todo, vergando-se para trás, a ponto de encostar a cabeça na coluna vertebral.

E roncava, escabujando horrorosamente.

— Que é isto?! exclamou o Conselheiro, invadindo o aposento, seguido por Justina, que parecia louca.

— Stchio!!! fez Magdá, pondo o dedo nos lábios e arregalando os olhos. — Não façam espalhafato!... Deixem tudo por minha conta...

— Jesus! Que aconteceu? gritou o pai, fazendo-se cor de mármore e tentando levantar do chão o trabalhador. Não pôde. Luiz estava duro como uma estátua.

O pobre velho, a tremer, desorientado, precipitou-se sobre a mesa e descobriu os frascos de xarope.

— Ah! explodiu, arrancando os cabelos. — Meu Deus! meu Deus! Envenenou-os!

— Que extravagância!... dizia Magdá com uma risada. — Que extravagância!!! Meu marido há de achar graça!...

O Conselheiro corria de um para outro lado, atônito, e, percebendo que os envenenados iam morrer, pediu socorro em altos brados.

Justina havia fugido para a rua e gritava:

— Acudam! Acudam!

Entretanto, Rosinha e Luiz agonizavam ao lado um do outro; a boca muito aberta e as ventas arregaçadas à falta de ar.

Em breve, a casa foi assaltada por uma porção de gente. A mãe e a avó do cavoqueiro entraram na carreira, terríveis, desgrenhadas, estralando com os tamancos no soalho — os braços nus, a saia enrodilhada na cintura a bramirem chorando; ao passo que o Conselheiro deixava-se estrangular pelos soluços, atirado ao fundo de uma poltrona, com o rosto escondido entre as mãos.

Havia cm todos os estranhos um lívido assombro de terror. Surgiram pálidas figuras curiosas e assustadas, espiando pelas portas; só bem distintos se ouviam os noivos e os rugidos da tia Zela e da velha Cust6dia, que iam, rápido, farejando a casa toda, sala por saia, tontas e assanhadas como duas leoas rebuscando os filhos que lhes roubaram.

Uma onda feroz e atroadora invadiu os aposentos de Magdá; mas de súbito assomou por entre ela o sobretudo alvadio do Dr. Lobão que, atropeladamente, abriu caminho com três murros, e foi colocar-se defronte da criminosa, quando esta ia já ser alcançada pelas duas feras.

O populacho do cortiço e os trabalhadores da pedreira queriam acabá-la, ali mesmo, a unhas e dentes; porém o médico, muito esbofado, porque viera da rua lá a passo de lobo, o chapéu de castor no alto da cabeça, o suor a inundar-lhe o pescoço, os olhos faiscantes, mostrava os punhos e refilava as prezas, rosnando contra quem se aproximasse da "sua enferma".

Estava formidável; metia medo! Nunca homem nenhum defendeu, nem a própria amante, com tamanha dedicação.

Ninguém ousou tocar em Magdá.

Entretanto, outro facultativo cuidava de Luiz e Rosinha, mas sem resultado; os infelizes expiraram penosamente meia hora depois da intoxicação.

Afinal, chegaram as autoridades policiais. Fez-se o corpo de delito. Os cadáveres foram carregados para a sala do fundo. Expeliu-se o povo, fechou-se a casa e postaram-se soldados à porta.

Conduzida Magdá à presença de suas vítimas, interrogaram-lhe se ela conhecia aqueles mortos.

— Pois não!... perfeitamente, respondeu a alucinada.

E acrescentou, segurando os cabelos do moço da pedreira: — Este é o meu querido esposo bem amado, pai de meu filho, senhor poderoso na terra e descendente de Deus; matei-o e mais a essa outra que aí está, porque ele me traiu com ela!