O Piolho Viajante/I

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Eu nasci lá para a Ásia, de um ajuntamento de uma Piolha e um Elefante, ainda que houve quem dissesse que uma Tarântula macha foi quem me deu o dia. Mas fosse ou não fosse, isso é coisa insignificante; porque como os Piolhos não têm morgados que herdar, as Piolhas têm pouco escrúpulo de que seja este ou aquele o Pai de seus filhos, ainda que não deixe de haver muitas Piolhas escrupulosas e com muitos bons senti­mentos. Seja ou não seja, meu Pai desconfiou muito de eu não ser seu filho, o que não deu poucos cuidados à minha mãe, e talvez fosse a origem da sua morte. Mas é certo que ele não teve razão nenhuma, pois minha mãe me certificou, depois dele morrer, que ela não tivera dares nem tomares com outro algum indivíduo.

Nasci fora de tempo e minha mãe esteve em perigo de vida a meu respeito, porquanto eu saí, ainda que Piolho, bastante grande e largo, que muitas vezes me tomaram por Percevejo. Saí todo à minha mãe, principalmente nos olhos, no andar e no accionado.

A minha cor é cinzento-escura. Educaram-me logo à chuchadeira da cabeça, que a do corpo é só para os veteranos. Não cheguei a mamar vinte minutos. Aos cinco dias de nascido fui atacado de moléstia de olhos; abriram-me uma fonte numa das pernas esquerdas e, com efeito, melhorei, que hoje vejo quanto me basta.

Minha mãe quis que eu aprendesse línguas. Mas meu pai, que era Piolho prudente, não consentiu, dizendo que, enquanto não soubesse perfeitamente a minha, os costumes da minha casta, a obediência que se lhe devia, me não queria embrulhar em mais coisas, para no fim ficar um toleirão, sem nada saber. Ele era áspero de génio e eu não era muito seu apaixonado. Nunca lhe vi um ar de riso para mim. Jamais me tratou por tu, sempre era um Vossemecê para aqui, Vossemecê para acolá. De forma que eu não só tinha respeito, mas medo.

O Piolho que me ensinava a falar e a morder, não desgostava de minha mãe e ela também não lhe envesgava os olhos. Punha-lhos direitos. Eu pouco aprendia, porque o meu pai nunca queria assistir à lição, dizendo que, quando o Mestre estava com o Discípulo, nem o mesmo pai tinha poder no filho. O Mestre aproveitava-se do tempo e, em vez de me ensinar a mim, ensinava a minha mãe, que era só com quem falava. E havia lição que nem uma só palavra me dizia, do que pouco se me dava porque entretinha o tempo em me balouçar nos cabelos, divertimento de que sempre gostei muito. Meu pai foi percebendo que eu era uma besta e que não aprendia nada. Chamou-me de parte e pediu-me conta dos meus afazeres. Eu tinha pouca malícia e muito amor ao corpo. Contei-lhe do plano a quem o Mestre dava as lições. Ele disfarçou, pôs-me uma das mãos pela cara, deu-me um beijo e foi esta a primeira e única vez que lhe vi e mereci um agrado. No outro dia chegou o Mestre, que morava ali perto (nós morávamos na cova-do-ladrão e ele atrás de uma orelha) e meu pai despediu-o com toda a cortesia. Mas ele, não contente, entrou às satisfações, dize-tu-direi-eu, e chegaram a braços. Neste tempo, o dono da cabeça em que nós morávamos, sentiu rumor mais do que costumado e, de um golpe, acertou com ambos, que estavam encangalhados e juntos morreram debaixo da unha, aonde, por costume, nós somos justiçados pelos nossos delitos. Se é que é delito o procurarmos simplesmente o nosso sustento. Pois que nós não tiramos o sangue a ninguém para andar em sege nem sustentar vícios.

Minha mãe, cheia de aflição, e vendo em mim a causa da sua desgraça, além de eu já estar bastante robusto e fazendo bem por viver, pôs-me à vida, dando-me alguns conselhos e um abraço, de que lhe fiquei muito obrigado, porque entre nós há Pais que nem isto dão. Ela assistia, ao tempo da minha retirada, na cabeça de um Procurador de Causas, a cuja cabeça eu fui alguns anos depois da sua morte. Esqueci-me de dizer que eu me chamo - X - apesar de não ser queijo Inglês; porquanto o nome de Piolho é o geral, assim como o de Homem, mas cada indivíduo tem o seu nome particular.

A primeira cabeça onde pus o pé e o dente, foi a de um Tinhoso, e contar o modo como fui ter a ela, seria enfadar os Leitores. Basta que fiquem sabendo que fui. Se os Piolhos tivessem Retórica, assim como têm Filosofia, com que elegância e finuras eu não pintaria a minha aflição, ao ver-me num sítio tão despovoado, sem Pai nem Mãe, nem aderente, nem cabelos, sem segurança alguma, em risco de ser apanhado e visto. Mas oxalá que eu nunca dali tivera saído. Não há trabalho sem refúgio. Este Tinhoso benfeitor tinha a maior basófia em dizer que tinha piolhos, por isso mesmo que não tinha cabelos. Quantas e quantas vezes me pôs ele o dedo em cima e, deixando-me fugir, dizia: Escapou-me por um triz; é incrível os piolhos que tenho. Ao princípio assustava-me. Mas depois, conhecendo-lhe a balda, dormia e chuchava a sono solto.

Dividi a cabeça em diferentes passeios, mas atrás das orelhas e a cova-do-ladrão eram o meu forte. Também me divertia pelo colarinho da camisa, quando a tinha lavada, mas poucas vezes. Na cova-do-ladrão era onde lhe ferrava mais a miúdo, principalmente de noite, porque, como ele dormia de costas enquanto levantava a cabeça para se coçar, escapulia eu, porque receava que, com o sono, me não guardasse o respeito que me guardava acordado. Passados dias, entrou o Tinhoso na tentativa de criar cabelo, para o que untava a cabeça com um chorume que me sabia como gaitas e nunca me vi tão rechonchudo. Porém, as unturas tais dores lhe motivaram que largou o remédio e pôs cabeleira. E daqui se originou a desgraça de eu passar a outra cabeça, como adiante direi.

A ocupação do meu Tinhoso era fazer e vender mechas, no que lucrava no seu tanto muito suficientemente para ele e para uma Tinhosa que tinha em casa. Que eu, já se sabe do que vivia. Uma das coisas mais galantes é, quando eles se catavam mutuamente, safar-me eu para o colarinho a ver touros de palanque. E tive tanta cautela que nunca me pôs os olhos em cima. Porque à tal minha senhora não lhe escapava nada, nem a mesma vizinhança. Era tão viva que sabia quantos piolhos tinha cada cabeça, e, se algum dia acertasse comigo, seria sacrificado no altar das suas unhas que as tinha grandes por todos os modos. Ele era um bom homem, à excepção de se embebedar, botar pouco enxofre nas mechas, cortá-las delgadas, sacar três em cada molhinho, safar algumas bagatelas nas casas aonde o chamavam e outras coisas deste mesmo lote. Era tão bom homem que uma vez levou um amigo à casinha por amor de meio tostão que lhe devia. Fez-lhe, já se sabe, pagar a diligência e ficava amigo como dantes. O outro foi que não quis.

A mulher criava galinhas e era tão viva que, não tendo galo, botava os ovos e sempre tirava pintos. Fazia coisas por aí além; até sabia nadar. Num dia de S. Martinho entra a mulher a meter na cabeça ao marido que mandasse pentear a cabeleira. Como era dia em que havia muitas, resolveu-se a mandar a que tinha na cabeça e era a primeira vez que tal lhe sucedia. Na ocasião em que ele mesmo a levou a casa do cabe­leireiro, sucedeu eu dormir e estar agasalhado entre a coifa e o cabelo, lugar que eu tinha escolhido para o descanso desde que ele a usava. Quando acordei, senti-me sem calor, saí da toca e qual seria a minha admiração quando me vi na cabeça de pau? Fiquei aflitíssimo e até, para maior desgraça, esse dia e noite fiquei empaulado. Mas no outro, apenas o cabeleireiro lhe pôs o pente, deixei-me cair na manga da casaca e, em duas palhetadas, me pus na cabeça do dito, da qual contarei o sucedido na