O Sacrifício/VII

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Não se pode descrever o assombro de Maurícia ao dar com as vistas em Bezerra na sala do sítio. A medonha visão, que lhe aparecera no boqueirão e se desvanecera quase inteiramente no trajeto para a casa de Martins, surgia agora novamente, envenenando-lhe o espírito e repassando-lhe de fel a malfadada existência. Terríveis ameaças vinham com esta visão merencória e truculenta. O passado de que Maurícia desenterrara a página, que lera a Ângelo, ressurgiu a seus olhos com todos os episódios, dando-lhe a feição de uma tragédia.

— Eu logo vi que não havia de enganar-me - disse ela tristemente.

E acrescentou no mesmo instante:

— Que será de mim, se esse homem me jungir outra vez ao carro de sua tirania?

E porque a esse tempo tinha passado a primeira impressão do assombro, Maurícia volveu imediatamente sobre seus passos. Ângelo, que tinha ainda preso ao seu braço o dela, deixou-se arrastar irresistivelmente. O acaso os unira, e a fatalidade parecia não querer soltá-los. O abismo, em que um esteve perto de cair, ameaçou o outro. O pensamento de escapar a esse abismo era comum a ambos.

— Fujamos daqui, Sr. Dr. Ângelo. Deus me livre de ser vista por meu carrasco. Parece-me que para afugentar-se espavorida a minha liberdade, bastaria que ele me cobrisse com seu olhar sinistro.

Foi profundamente abalada que Maurícia disse estas palavras, arrancos de seu ânimo quase exausto. Sentia-se presa da febre e do frio ao mesmo tempo. Em sua alma, havia fogo e gelo - o fogo do desespero; o gelo do terror.

Deram a andar em demanda do portão, protegidos pelas sombras das árvores a que as da noite aumentavam o vulto e a densidão.

— Há talvez excesso nos seus receios, D. Maurícia - disse Ângelo, depois de um momento de silêncio. Quem a poderá obrigar a viver com este homem? A senhora não pertence ao acaso! Não é dona das suas ações?

— Pertenço-me e sou senhora das minhas ações - respondeu ela. Mas a verdade é que ele me aterra como se fora um duende. Não está em mim deixar de temê-lo. Contra esse homem só fui forte em um momento da vida - o da minha separação.

— Recobre os ânimos - prosseguiu o bacharel. Voltar à companhia dele, ou ficar livre como até hoje, são coisas que dependem exclusivamente da sua vontade. Não tem vivido longe dele durante três anos? Por que o teme? Demais, a senhora não está só. Ao seu lado pulsa um coração virgem e amigo, onde predominam dois sentimentos intensos - o amor e a dedicação. Exija qualquer prova destes sentimentos que ela não será recusada, nem retardada.

Ângelo tinha na voz estranhas vibrações. Seu corpo estremecia nervosamente. Fulgiam-lhe no espírito clarões sinistros. Era a terceira vez que o seu amor se revelava. Maurícia, que se considerava de fato ameaçada no que tinha mais caro de seu, não pode fazer-se desentendida como das outras vezes. Os perigos que se levantaram contra a sua tranqüilidade eram maiores do que os que ameaçavam a sua honra.

— Eu preciso realmente de proteção, Sr. Dr. Ângelo. Dentre os parentes que tenho só confio em Eugênia e no marido; mas a moral severa em que foram educados talvez não lhes consinta fazerem comigo uma barreira contra as pretensões do meu perseguidor. Não lhe farão a menor resistência, quando ele declarar que pretende restabelecer a moralidade no seu lar, não obstante saberem que ele foi o único perturbador da nossa harmonia, a causa da nossa separação.

— Desculpe-me D. Maurícia. Isto que prevê parece-me impossível de realizar-se. Não somente uma, mas muitas vezes, tenho ouvido Martins e D. Eugênia terem para o Bezerra acerbas censuras.

— É verdade, mas logo que se trate de reconciliar-nos, hão de mudar de parecer, e serão os primeiros a promover o nosso congraçamento. Não é isto o que sucede a todas as famílias em casos análogos?

O desânimo entrara no espírito da infeliz senhora.

— Considero-me desamparada. Por que motivo hei de ocultar a minha fraqueza? Se meu marido pretender chamar-me para a sua companhia, terei necessidade de bater à porta de alguém para pedir que me livre das garras do monstro.

Estas revelações íntimas foram arrancadas pela gravidade das circunstâncias. Conhecendo tal gravidade, Maurícia não teve reservas, nem as podia ter. Demais, o afeto pelo bacharel, ao primeiro hesitante e tímido, ia ganhando de instante a instante proporções avultadas em sua alma, que até então fora uma vasta região desocupada. Os temores, os perigos vieram auxiliar em seu desenvolvimento as inclinações do seu coração. No seio da intensa sombra íntima em que nadava sua alma solitária e vacilante, surdira, como para lhe servir de companhia, pirilampo gentil e namorado, que devia ter em breve o luzeiro de um astro. Por que havia de fugir Maurícia à deleitosa impressão trazida pela primeira luz que rompia suavemente a noite do seu coração?

O amor nascia aí, como nasce semente fecunda em solo feracíssimo; e, com o amor, nascia a confiança inseparável deste sentimento, às vezes enganosa, mas quase sempre cega.

Suas últimas palavras adiantaram o jovem bacharel no caminho que sua paixão abrira; nem foram obstáculos ao avanço de Ângelo as cerimônias das relações recentes e o passado dessa mulher que ele conhecia havia poucas horas.

— Eu sempre lhe aconselharia, disse ele, que primeiro procurasse chamar a si o seu cunhado e a sua irmã, minha senhora: mas, se este recurso não surtir efeito, o outro há de surtir. Não tenho fortuna; obrigações, sim, conto-as em grande número; pobre de meios, sou rico de confiança no futuro, tenho grande espírito, alguns amigos e muito amor. Por que não lhe hei de dizer tudo o que a senhora me tem feito sentir?

— Esta linguagem aumenta cada vez mais o meu terror, disse Maurícia, sem reserva, trêmula, confusa, dominada de infantis pavores.

— Por quê? Por quê? - inquiriu o bacharel por extremo excitado.

— Porque tais palavras me advertem que, fugindo de um abismo insondável, aproximo-me de outro abismo tão insondável como o primeiro.

— Engana-se, minha senhora, retorquiu o bacharel. A senhora foge de uma região desolada, e penetra em um asilo de paz e concórdia. Ora, escute. Daqui a trinta léguas, existe uma povoação banhada a leste pelo Atlântico, e ao sul por um riacho de águas cristalinas e puras; ao norte e ao ocidente, essa região é cercada de vastas florestas, em sua maioria formadas por cajueirais imensos. Nesse povoação, moram meus pais. A vida ali é obscura, mas tranqüila. Dos enredos do mundo, poucos penetram neste asilo aberto às grandes afeições. A sociedade dos pescadores lembra o trato com a Graziela; quem ali ama não raras vezes sente em sua alma as grandezas desta concepção de Lamartine. Suponha que, partindo daqui, achasse aí no seio de uma família honesta, hospedeira e afetuosa todos os carinhos e desvelos que tinha no seu lar paterno; suponha que aí, a seu lado, uma alma ardente a acompanharia de manhã e de tarde pelas dunas da praia, ou pelos caminhos que cortam a floresta, sentindo ressoar entro de si a doce harmonia de sua voz; suponha que algumas economias levadas daqui poderiam assegurar-lhe uma existência não opulenta, mas decente e tranqüila; ora, diga-me: se este sonho pudesse realizar-se; se uma voz amiga chegasse aos seus ouvidos e lhe dissesse à puridade: "esta pintura não é mentirosa; esse canto feliz existe; essa vida imaginada, esse sossego longínquo, essa floresta cheia de perfumes, essas praias povoadas de jangadas, pertencentes a pescadores que hão de ser nossos amigos, esse rio de águas cristalinas, esse Atlântico imenso, essa família hospedeira, enfim , esse Éden existe, e podes tu existir no seio dele a senhora teria ânimo para dizer-lhe: "cala-te, que esse mundo, essa vida, é um abismo?"

Maurícia ouvira estas palavras em profundo silêncio. Enquanto Ângelo as proferia, ela absorta em ouvi-las, esquecera-se da triste realidade que a cercava. Seu espírito acompanhava a brilhante descrição, feita pelo poeta. Afigurava-se-lhe um paraíso este cantinho pequeno na terra, imenso em sua alma, infinito em sua imaginação.

— Se eu pudesse viver aí sem remorso, sem inquietações, sem saudades, como havia de ser feliz! - disse ela insensivelmente arrastada pelo fio de pensamentos íntimos que tinha a força de uma cadeia fatal e ominosa.

— E por que não há de poder? - perguntou o advogado, mais escravo de sua exaltação, do que senhor do seu afeto, na realidade difícil de dominar, porque era aquela vez a primeira que rebentava, tinha pujança, a impetuosidade das correntes nativas, que se atiram às pedras, se despedaçam contra elas, mas transpondo-as em fios cristalinos, adiante coligem os seus cristais espalhados e prosseguem a sua vertiginosa carreira.

— Não posso, respondeu Maurícia. Se eu desse esse semelhante passo o mundo cobrir-me-ia de baldões, e o futuro de minha filha correria iminente perigo.

Ângelo sobresteve, sentindo a força destas palavras. mas o seu repentino amor não lhe consentiu larga reflexão. Ele tornou logo:

— Mas, se o juízo do mundo lhe causa estes medos, como é que a senhora fala em recusar a convivência com o seu marido? Não se engane, minha senhora. Veja que está colocada entre as duas pontas de um dilema terrível. Cuida que há de poder evitar a língua do mundo e ao mesmo tempo a companhia daquele de quem vive fugindo horrorizada? Isto é impossível. Urge escolher um destes dois princípios extremos, já que não é possível ambos. É questão de preferência. Pensará acaso que vindo a Pernambuco aquele a quem a fatalidade a ligou, e procurando a casa de sua irmã, tem outro intento que não seja o de chamar a senhora aos eu poder? Cuidará que ele fez de propósito esta viagem somente para lhe dizer com o sorriso nos lábios, e brando fulgor dos olhos: "Vim ver-te, porque tinha grandes saudades de ti; porque tuas lindas feições estavam quase todas apagadas de minha imaginação, e eu queria avivá-las para as levar comigo ao túmulo como o derradeiro penhor do nosso afeto?" Se tem essa crença, D. Maurícia, permita-me disser-lhe que ela é enganosa. Os homens, especialmente aqueles a quem o contato com o mundo destruiu todas as brandas pudicícias da honra, não alimentam o coração com estas delicadas iguarias. Desse homem, que já foi o seu algoz, não espere carícias, senão as severidades de uma vingança longamente estudada. Mas, se não lhe parece acertado o que digo, então, voltemos. Bezerra ainda lá está.

Ângelo foi desapiedado. No seu amor, na sua paixão, tornou-se cáustico, mordaz, quase descortês.

São cruéis estas armas quando têm por alvo a mulher adorada; ordinariamente, saem vencedores. Foi o que sucedeu então. Maurícia, que tinha aliás fortíssimos ânimos, não pode resistir a estas considerações. que se pareciam com invectivas, mas vinham saturadas do imenso amor, que inflamava a alma do bacharel. Viu neste uma organização superior, e sentiu prazer em deixar-se vencer por ele. Foi com certa impressão de volúpia deliciosa, posto que triste, que ela respondeu:

— Tem razão, tem razão! Escolherei, e escolha é fácil. Já uma vez afrontei o mundo, e não sai triunfante? Por que tomaria agora o lado oposto? Fugirei de meu algoz enquanto tiver forças para o fazer.

— Mas então, atalhou Ângelo, lembre-se, D. Maurícia, de que há nesta vida um homem de coração puro que estremece de amor pela senhora, e que para lhe poupar o menor desgosto será capaz de toda a sorte de sacrifícios. Por que não assentamos logo o que devemos fazer? Rogo-lhe que não me poupe na obra de sua tranqüilidade. Estou pronto a fazer tudo o que ordenar. Quer a prova? Ordene.

Nesse momento, viram eles ao longe na estrada uns vultos vagos, e logo ouviram o rumor de vozes.

— Estou ouvindo Virgínia falar, disse Maurícia. Vamos ao seu encontro. Quero faze-la voltar. Esperaremos no sítio de D. Rosa pela carruagem do engenho, que não deve tardar. Eu deixei dito que nos mandassem buscar logo que anoitecesse. demais, tenho ainda de escrever a Eugênia. Meu Deus! que será de mim? Tenho a cabeça em fogo.

— Mas... o que resolve? inquiriu Ângelo com insistência.

Maurícia pareceu refletir um momento, durante o qual o bacharel mal pode suster a sua impaciência.

— Se precisar dos seus serviços, respondeu Maurícia, escrever-lhe-ei.

Ângelo, agradecido, tomou-lhe uma das mãos, e beijou-a com frenesi de louco.

— Obrigado, obrigado, disse como quem acabava de entrar em um mundo de delícias, longamente esperadas. Lembre-se de mim. Não sou de todo inútil.

— Olhe, tornou Maurícia. Não me enganei. Aí vem Virgínia com Sinhazinha.

— Para onde vai, mamãe? perguntou Virgínia, tanto que por entre árvores e sombras reconheceu Maurícia.

— Eu ia a tua procura. Voltemos, voltemos.

— Que é que diz, D. Maurícia? interrogou Sinhazinha admirada. Voltar para onde?

— Peço-lhe um obséquio, Sr. Dr. Ângelo, disse Maurícia, dirigindo-se ao bacharel. Dê o braço a Sinhazinha, e diga a Eugênia que um súbito mal- estar nos obriga a voltarmos inopinadamente. Eu estou realmente em termos de cair. Não, não lhe diga nada - acudiu logo. Vou já escrever-lhe.

Sinhazinha não sabia o que pensar do que via e ouvia: e quando ia fazer novas interrogações, Maurícia abraçou-a, e, dando o braço a Virgínia, arrastou esta como quem fugia a um flagelo iminente.

— Tornemos à casa de Martins, disse Ângelo à filha de D. Sofia.

— Mas o que é isto? Que foi que houve?

Ângelo nada respondeu. O que fez foi volver sobre seus passos sem demora.

Maurícia e Virgínia tinham já desaparecido nas sombras da estrada.