O Subterrâneo do Morro do Castelo/Domingo, 14 de maio de 1905

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Os Subterrâneos do Rio de Janeiro[editar]

O Tesouro dos Jesuítas[editar]

D. Garça[editar]

II[editar]
Os Tesouros[editar]

O padre João de Jouquières, irmão professo de quatro votos da Companhia de Jesus, antes de penetrar a estreita porta do subterrâneo, murmurou em voz quase imperceptível algumas palavras à escrava, em seguida ao que, tomou o seu rumo, demandando o salão dos capítulos secretos.

Já alcançava o grande conduto oeste das galerias do Colégio.

Seus passos na crasta lajeada ressoavam lugubremente. Marchava vagaroso. Um pensamento tenaz e sombrio retardava o seu andar. De onde em onde parava, fazia como quem quer voltar; e, após freqüentes hesitações, penetrou na grande galeria em circunferência. Quatro salas, esquarteladas, abriam as portas para o grande toro oco que a galeria formava.

Uma das quatro destinava-se aos capítulos secretos; as restantes eras as casas-fortes da Ordem.

O salão dos capítulos, embora fortemente iluminado por um grande alampadário de prata e uma profusão de candelabros, guardava ainda a penumbra característica das salas religiosas.

Alto e côncavo, guarnecido de grandes armários cheios de livros, era um toda a sua extensão revestido de grossas lajes com as juntas tomadas à argamassa romana.

Estudando as construções combalidas da Cidade Eterna, a milícia de Cristo lograra saber a composição dos cimentos usados nelas; e nas suas edificações eram empregados iguais com proficiência e sabedoria.

Todos os capitulares não tinham ainda chegado. A seda vazia aguardava o Reitor, e as cátedras do Procurador e do Secretário, ao dela e em frente à grande mesa oval, não estavam ocupadas.

As amplas curuis, nove, dos capitulares, em curva aberta para a mesa, tinham um ou outro professo.

Em um canto repousavam instrumentos de pedreiro e um caixão com argamassa dosada.

Assim que o padre João entrou na sala, correu ao jesuíta mais próximo, dando-lhe o toque simbólico de professo. Procurou entre as nove cadeiras a sua; sentou-se com desembaraço e esperou.

Vagarosamente chegaram os restantes e, logo que foram doze, o Reitor ergueu-se, acompanhado dos demais, e pronunciou claramente:

Ad majorem Dei gloriam.

Os padres repetiram as palavras; e, tendo lembrado alguns trechos da Monita Secreta, o presidente do conclave explicou o motivo da reunião.

Ameaçada a cidade de uma invasão, as grandes riquezas da Ordem corriam perigo de saque. Era conveniente precavê-las em lugar seguro; tanto mais que tinham decuplicado com o recebimento de extraordinários valores da Ásia, do Colégio de Angola e de algumas províncias da América.

Lembrava também que, com elas, se deviam guardar as ricas alfaias, os paramentos e as imagens de Cristo e dos apóstolos, em ouro de lei.

O reitor falava em latim. As sílabas destacadas da língua arcaica voavam pela sala com um estalido seco.

Quando o reitor acabou, deu a palavra ao padre Saraiva, encarregado do acondicionamento das riquezas.

O clérigo expôs o que fizera. Guardara-as em 16 grandes arcas de madeira do país. Cristo e os apóstolos já estavam na sala do Sol, à esquerda; e também lhe parecia, segundo o seu modesto julgar, que as portas das salas deviam ser vedadas e parte dos subterrâneos destruída, de forma que, se viesse a durar duzentos anos ou mais, a ocupação da cidade, nunca lograssem descobrir os valores.

Deu fim à sua explicação, com a leitura da ata que lavrara. Lida e assinada pelos doze iniciados na Monita Secreta, o padre reitor anunciou a segunda parte do capítulo.

Expôs:

— Há alguns anos, o paulista Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, penetrou no sertão dos índios Goianases, e aí encontrou minas de ouro fartas e ricas. E como Sua Paternidade, o Padre Provincial, me haja ordenado receber o mais possível aos Paulistas nas suas entradas, seguir-lhes as pegadas, resolvi despachar um pregador àqueles brasis.

Humildemente, rematou o Reitor, espero a opinião de Vossas Reverências.

Padre Manuel de Assunção, chegado de Piratininga, achando o alvitre bom, observou.

— Deve ser quanto antes a partida da missão, porquanto, ao que ouvi em S. Paulo, o filho do Anhangüera reúne meios para continuar a empresa do pai.

Todas as conclusões foram acordes com o padre Reitor. Devia partir um missionário o quanto antes.

O presidente da Assembléia então continuou:

— Sendo o voto de todos o meu parecer, penso que o escolhido também será da vontade de Vossas Reverências.

— Assim será, padre Reitor, responderam os capitulares em coro.

— Exige-se-lhe coragem, inteligência, boa cópia de letras e solércia; e, como dentre Vossas Reverências sobre desses, grande foi a minha dificuldade na escolha; entretanto, o Santo Espírito iluminou-me e escolhi-o no padre professo João de Jouquières.

A assistência recebeu com um estremeço a decisão. Ninguém supunha fosse ela recair no irmão Jean, antigo Marquês de Fressenec. A permissão que tinha do Geral para se servir dos subterrâneos da Ordem a fim de experimentar as grosserias do mundo, parecia pô-lo a coberto das expedições longínquas. O escolhido foi quem na aparência menos se admirou. Pedindo a necessária vênia, observou:

— Vossa Paternidade muito se há de espantar do pedido que vou fazer.

— Vossa Reverência pode fazê-lo, retrucou o Reitor.

— Solicito de Vossa Paternidade dispensa de tão gloriosa missão, fez com doçura o padre.

— Vossa Reverência fará mercê de relatar os embargos? objetou o Reitor.

— Creio escusado dizê-los, pois que bem são sabidas de Vossa Paternidade as razões do alegado, disse o padre Jouquières, trocando um olhar de inteligência com o Reitor.

— Contudo Vossa Reverência deve declará-las à casa, padre João.

— Débil de corpo, careço de forças para suportar as agruras do sertão. Demais, não conheço suficientemente a língua geral...

— Não é mais Vossa Reverência o douto sábio que, com os novos elementos colhidos, corrigia o catecismo do padre Navarro? indagou com ironia o Reitor.

Sem se dar por achado, o jesuíta francês explicou:

— De fato, desde dois anos dedico-me ao estudo acurado das línguas americanas, mas daí a falar, a distância é grande!

— A prática de meses ajudará Vossa Reverência, objetou teimoso o Reitor.

(Continua)