O moço loiro/XV
Pouco antes das três horas da madrugada Hugo de Mendonça e sua bela filha desembarcavam de um carro no cais da Rua Fresca. A velha Ema não tinha podido consentir que a sua Honorina dormisse aquela só noite na corte; e como havia sua condescendência chegado ao ponto de revelar, embora a custo, que a menina se expusesse aos horríveis perigos de um sarau, força foi fazer-lhe a vontade também, voltando para junto dela logo depois de terminado aquele.
Apenas chegados ao cais, um moço alto e asselvajado se chegou a Hugo. Apesar de ser noite, conhecia-se ao primeiro olhar que era homem de mar: calçava grossos sapatos, não trazia meias, suas calças eram de ganga azul, e já ruças de tão usadas que estavam, e, enfim, vestia um quimão de baeta preta. Tendo seu chapéu em uma mão e o cigarro na outra, ele falou a Hugo de Mendonça com essa voz áspera e grossa tão comum nos patrões de nossos barcos.
— Meu amo; meu pai, que tinha ficado de esperar por V. S.ª, lá se foi meter na cama com o maldito achaque de erisipela, que o persegue há vinte anos, de sorte que estou eu aqui, em lugar dele, às ordens de meu amo.
— Ser levado a Niterói pelo senhor ou por ele, disse Hugo, contanto que vamos lá ter com prontidão e salvamento é para mim indiferente.
— Lá isso não tem dúvida, meu amo; eu conheço a baía do Rio de Janeiro como as palmas de minhas mãos.
— Pois então, ao largo!...
O batel soltou-se e navegou para a jovem capital da província do Rio de Janeiro.
Honorina tinha encarado o patrão e examinava seus rudes trajos, sua cor vermelha e tostada e dois olhos vivos, e na verdade belos, cujas vistas, sem expressão sim, mas certamente brilhante, eram por desleixo do marinheiro meias nubladas pela enorme massa de longos e mal-educados cabelos pretos, que lhe caíam toscamente sobre os olhos.
O exame da moça pareceu incomodar ao rude patrão, que começou por coçar com força as bastas e crescidas barbas, que lhe escondiam três partes do rosto (único ponto de contato, ou antes de semelhança que, no opinião de Honorina, se dava entre ele e alguns dos jovens da moda, com quem acabava de estar no sarau); mas como visse que nem assim a jovem arrancava os olhos de sobre ele:
— Juro, disse, que estou incomodando a senhora com o fumo do cigarro...
— Não, não, respondeu a moça, pode fumar: é verdade que me dou mal com o cheiro do fumo; mas agora o vento, que sopra, o leva para longe de nós.
— Como estava olhando para mim há muito tempo, eu pensei que era por isso... e, pelo sim pelo não, cigarro na água.
E atirou com o cigarro no mar. Os pretos que remavam começaram a conversar em seu selvagem idioma, e riam-se maliciosamente.
— Ó lá... bradou o patrão com voz estrepitosa, seja como for, quem manda aqui agora, sou eu... leva de risadas!
Sua voz áspera e rude tinha tomado um tom bravio; seu rosto exprimia algum sentimento mais forte do que o que nasce de uma contrariedade: em seus traços quase que transpirava a cólera.
Honorina teve receio desse homem, e arrependeu-se de haver olhado para ele.
— Perdoe-me, disse ela com voz trêmula, perdoe-me! quando eu olhava para o senhor, não o queria ofender!...
E olhou, como que implorando proteção para seu pai, que havia insensivelmente adormecido. Ela teve o pensamento de despertá-lo; porém sua mão, que para isso ia tocar nele, caiu-lhe de novo no colo, ao escutar outra vez a voz do marinheiro.
O receio... talvez o susto da bela passageira não tinha escapado aos olhos vivos e ardentes do jovem marítimo; seu rosto grosseiro se ameigou um pouco, como o leão que se curva apiedado diante da fraqueza e da inocência; ele abaixou, e fez mesmo por adoçar um tanto sua voz agreste e disse:
— Fui eu que ofendi a senhora com esta minha fala bruta; assustei-a; a senhora olhava para meu rosto e viu a cara de um bicho... depois ouviu minha voz, como o uivo de uma fera, e teve medo!... perdoe-me!... perdoe-me!... tirando disto, eu não sou mau.
— Senhor... eu não estou ofendida...
— Descanse... olhe seu pai como dorme; porque me parece que este homem é pai da senhora... durma também...
A moça obedeceu maquinalmente ao conselho do marinheiro; encostou o lindo braço todo nu na borda do batel, e, pousando sobre ele a cabeça, fechou os olhos.
Mas Honorina não queria nem podia dormir: primeiramente as últimas palavras do patrão não tinham totalmente dissipado todos os seus receios; quem sabe por que desejava ele que ela dormisse?... o pensamento de que aquele homem poderia ser um malfeitor... um ladrão talvez, apareceu em seu espírito; mas, temendo desafiar outra vez sua cólera, se patenteasse a desconfiança que sentia, acordando seu pai, ela fingiu adormecer; porém o jovem marinheiro continuava a mostrar-se sossegado e já respeitoso; e quando falava aos remeiros, sua voz parecia abrandar-se de modo que semelhava menos uma ordem, que uma súplica. E, pois, as idéias desfavoráveis, que sobre ele tinham aparecido no ânimo de Honorina, começaram a esvair-se pouco a pouco.
Depois, pode uma jovem senhora voltar de um agradável sarau sem pagar o tributo das lembranças?...
Perguntai a toda essa bela turba de moças e mancebos o que se passa durante o resto da noite que se queimou na pira dos prazeres de um sarau, e a uma voz vos responderão: "ah! recorda-se, se se vela!... sonha-se... quando se consegue dormir".
Recorda-se, sim, todos aqueles eloqüentes obséquios, aquelas palavras de sentido obscuro para todos e bem claro para só ela que as ouviu, e que as recorda!... recorda-se, sim, o mancebo daquela interessante senhora... toda graças... toda espírito, que lhe arrastava o coração e os olhos, quando valsava; que lhe prendia a alma inteira nos ouvidos quando lhe falava... recorda-se com saudade... mais do que com saudade de um simples, pode ser... de um doce talvez... murmurado com os lábios quase cerrados, e que ainda assim soa tão ternamente no coração; um doce talvez!... palavra mágica! primeiro elo dos amantes! fonte das primeiras esperanças! talvez... expressão sublime... tão sublime no princípio de um amor nascente, como só o é no fim dele o eu vos amo! da mulher que se adora; recorda-se mesmo com interesse de um duvidoso, quem sabe?... de um triste, não sei; apesar de toda a sua bárbara frialdade!...
E sonha-se também, oh! sonha-se muito! e ainda com o mesmo pobre mancebo, que a seguiu inutilmente toda a noite... sonha-se com o seu olhar de fogo que, embebido nos olhos dela, pareceu querer penetrar até sua alma para lá plantar o sentimento que dardejava!... sonha-se com o sorriso angélico da encantadora moça, que lhe deu uma inocente flor... sonha-se com aquele suspiro que se apanhou descuidado... com aquele pé, em que se tocou por acaso... com aquele colo de alabastro, onde dois tesouros se deixavam adivinhar tão belos!...
— Leva remos!... disse o jovem patrão; porque chegavam à praia.
O batel arrastou seu bojo sobre a areia, e, quando a prancha caiu, o marinheiro despertou a Hugo de Mendonça e a Honorina com a menor rudeza que pôde.
— Chegamos, disse ele.
— Bem... bem... obrigado... saltemos, Honorina.
Honorina ergueu-se e procurava as luvas, que havia posto sobre o banco.
— Eis aqui uma, senhora, o vento a ia lançando ao mar, enquanto a senhora dormia... foi por isso que parou em minhas mãos.
— Obrigada, respondeu a moça, a outra tenho cá eu.
Mas, no momento de calçá-las, Honorina olhou com surpresa para o jovem marinheiro, que ao pé dela se mostrava triste e submisso.
Hugo e Honorina desembarcaram; e o patrão, que recebeu o seu dinheiro, os viu partir.
Que a luva estava nas mãos do marinheiro, Honorina o sabia quando parecia procurá-la no banco; porque ela, fingindo dormir, velara durante toda a viagem e vira tudo quanto se tinha passado no batel.
Primeiro, ela notou que o batel um instante se desgovernara... ou talvez seguia rumo diverso do que devera seguir, e o jovem patrão, que tão sabido se jactara de pilotagem, chamou a um dos remeiros e por algum tempo lhe entregou o leme.
Depois ela sentiu que, quando o batel se achou defronte da barra, o vento refrescou, e foi então que, uma de suas luvas, levantada por ele, teria com efeito caído no mar, se o jovem marinheiro a não tivesse tomado.
Enfim, ela reparou também que ele em lugar de tornar a pôr a luva onde estava, beijou-a muitas vezes... deu-lhe mil voltas, e por último guardou-a junto do coração.
Receosa ainda do que vira, supondo aquele homem tão rude... tão mal-educado, ousado demais por interessar-se tanto por um simples objeto, que lhe pertencia, e não querendo por isso deixá-lo em suas mãos, Honorina fingiu procurar a luva, que lhe faltava no banco, onde a tinha posto.
Quando a recebeu das mãos do marinheiro... ela a achou quente ainda do calor daquele peito grosseiro; apesar disso, querendo calçá-la, fez um movimento de surpresa, porque dentro da luva estava alguma coisa demais... guardou silêncio então, por temer que seu pai pudesse ter uma disputa com um homem tão selvagem; e, fingindo nada haver percebido, partiu com as mãos nuas.
Depois ela poderia falar, e dizer a seu pai quanto se passara; mas Honorina pensou que iria afligir o seu bom velho; além de que não deixava de sentir alguma curiosidade de saber o que continha a luva.
Com tais pensamentos chegou a casa. Ema os esperava cuidadosa; recebeu nos braços a querida neta, a quem achou mais pálida e por demais fatigada; graças talvez a isso, foi-lhe para logo permitido retirar-se para seu quarto em companhia da boa Lúcia.
No entanto, logo que Hugo de Mendonça e sua filha desapareceram aos olhos do jovem marinheiro, este fez certo sinal a um dos remeiros que, imediatamente, apertando o lábio inferior, soltou três assobios.
Alguns minutos depois um velho, cujos vestidos em tudo se pareciam com os do moço patrão, chegou-se para este.
— Então, meu cavalheiro, disse o velho.
— Aqui está o seu dinheiro, patrão, respondeu o moço, três mil-réis, que deveria receber dos seus passageiros, e o dobro dessa quantia que lhe prometi.
— Obrigado, senhor... senhor... ah! é verdade que ainda me não disse a sua graça.
— Nem creio que seja preciso dizê-la: não entrou isso no nosso ajuste.
— Também foi só por perguntar... eu cá não sou curioso; mas conte-me, como se houve... o certo é que o mar esteve de rosas...
— Todavia desgovernei uma vez... vi-me doido entre os navios... e a maldita voz de bronze, que me foi preciso fingir!... enfim, está passado; agora pertence-lhe o resto; o senhor jurou-me não dizer palavra.
— Pode ficar perto, que eu cá para isso sou um poço.
— Otimamente. E pretende ir dormir?...
— Quando está para amanhecer, senhor?...
— Tanto melhor; dentro de uma hora parto para a corte; quer levar-me?
— Sem dúvida.
— Bem; eu volto imediatamente.
Com efeito, uma hora depois um interessante mancebo, cujos vestidos sem dúvida muito decentes estavam, todavia, em censurável desalinho, saltou dentro do batel, que regressou para a corte: uma metamorfose completa se havia, pois, operado no marinheiro de cabelos pretos.
. . . . . .
— Mãe Lúcia! mãe Lúcia!... dizia Honorina à sua ama, tendo um pequeno papel diante dos olhos; eis aqui!... é, portanto, sempre ele!...
— Quem, menina?...
— O homem que trabalha por enlouquecer-me!... que põe uma carta debaixo da janela do meu quarto... que se veste de cabeleireiro para cortar um anel de meus cabelos, que se veste de marinheiro para viajar comigo, e deitar um escrito dentro de minha luva!...
— Pois ele escreveu...
— Sempre as mesmas... as minhas próprias palavras!... ouve: "Honorina! eu te amo! eu te amo com esse amor de poeta, com esse amor de fogo, que ainda quando acaba na desgraça e na morte, contanto que seja o mesmo amor, é por força bem belo!..."
— E, portanto, é que ele lhe ama muito!
— Oh!... mas quem se esconde é porque teme causar horror!
— Senhora!
— Está bem, mãe Lúcia, eu quero dormir... e amanhã que me deixem na cama até bem tarde.
— Pois será assim, menina. Boa-noite!
— Boa-noite!...
Mas como dormir?... como conciliar o sono, quando se tem tanto em que pensar, tantas idéias a ligar, e, sobretudo, um mistério a decifrar?... porém, Honorina lutou em vão com esse mistério; o homem que a amava, nunca lhe tinha aparecido tal qual era; havia-se mostrado sempre ridículo ou estúpido... com uma cabeleira ruiva, ou com uma de cabelos pretos... longos e tão grosseiros, que pareciam nunca haver conhecido um pente, e ser bem capazes de rebentar o mais forte que primeiro ousasse querer domá-los!... era por força feio... detestável... horrível o homem que se escondia assim.
E do feio... detestável... horrível o pensamento de Honorina fugiu, procurando um objeto bonito... e amável, em quem por alguns momentos ao menos pousasse; e pousou na imagem do moço loiro que se havia sentado no terrado, triste e pensativo defronte dela e de Raquel.
Oh! aquele mancebo, apesar da extravagância e leviandade que mostrou, falando tão imprudentemente de seus amores a duas jovens desconhecidas, deveria ter deixado no ânimo de Honorina uma impressão bem agradável e talvez bem perigosa para que ela, com o pouco tempo que o viu, se lembre tão bem dele, que sua imagem a ocupe por momentos.
Com efeito, Honorina tem diante de si a graciosa figura do apaixonado mancebo: ela o vê ora melancólico e pensativo, suspirando silencioso... depois com sua cabeça levantada... seus cabelos loiros, caídos em belos cachos sobre as orelhas... seus brilhantes olhos dardejando vistas de fogo... ela escuta sua voz doce e comovida... enleva-se, vendo o triste sorriso de seus lábios... enfim, ela o vê partir... escapar-se por entre a multidão, que entra no terrado, com o lenço sobre o rosto, como para não ser conhecido...
Mas a imagem, que desapareceu, volta de novo para repetir-se a mesma cena... duas... três... mil vezes até ao romper da aurora.
É que em seus sonhos de inocência e de amor, Honorina tinha desde muito tempo muitas vezes sonhado uma bela imagem de fantástico mancebo, que aquele moço venturoso viera realizar!...
A natureza havia despertado com a aurora, e o ruído que traz o dia arrancou Honorina de suas meditações.
A moça lembrou-se pela primeira vez de si própria, e sentiu então que sua cabeça ardia... que ela não estava boa... que ela estava talvez próxima a padecer também a mesma moléstia do moço loiro.
Semelhante idéia fez estremecer Honorina, e, pois, apertando a cabeça com as mãos, exclamou:
— Não! não! meu Deus!... isso não!
E cerrou as pálpebras para nada ver; e cobriu a cabeça para dormir.
Mas, apesar dela, a imagem do moço loiro vinha outra vez para diante de seu espírito, como uma doce harmonia, que se tem ouvido, que se deseja esquecer, e que se está repetindo no pensamento sem querer!...
Honorina ergueu-se espantada do que se passava nela, e, atirando-se fora do leito, exclamou de novo:
— Não!... não!... isso não, meu Deus!...
Lúcia, cuja câmara era imediata à de Honorina, e que ouviu a exclamação dela, temendo alguma novidade, veio ver a sua querida filha; mas ficou estática e silenciosa, observando-a da porta. Honorina desassossegada e aflita correu para a janela... abriu-a, levantou a vidraça para deixar entrar as auras da manhã, e... recuou surpreendida...
Na janela estava deposta uma sempre-viva, e por debaixo desta um papel com algumas linhas escritas.
Uma sempre-viva!... Honorina lembrou-se do sonho do moço loiro. Por conseqüência, a jovem adorada era ela!...
Depois de alguns momentos de hesitação, ela tirou o papel que estava por baixo da flor e leu: "Honorina!... se ela me for grata, guardará a flor; mas se me desprezar, deixá-la-á cair para o lado de fora... foi o meu sonho; ah! eu te amo! eu te amo com esse amor de poeta, com esse amor de fogo que ainda quando acaba na desgraça e na morte, contanto que seja sempre o mesmo amor, é por força bem belo!..."
— E, portanto, murmurou Honorina tremendo, mas levantando insensivelmente o papel até junto do coração, e, portanto, o moço loiro era ele!...
Depois, como cedendo a um impulso repentino, a moça lançou-se para a janela... ia atirar a flor para fora... mas, antes que sua mão tocasse nela, o zéfiro da manhã, que com doçura soprava, fez a sempre-viva rolar brandamente pela janela até tombar dentro do quarto.
Como levada pela força de um milagre, Honorina olhou sorrindo-se para a flor e disse:
— Oh!... ainda bem que não fui eu!... foi o teu sopro, meu Deus!...
E, sentando-se junto do toucador com a face pousada na mão, esteve em silêncio muito tempo com os olhos fitos na flor... depois soltou um suspiro e adormeceu.
Quando Lúcia viu que ela dormia, cerrou mansamente a porta e retirou-se, dizendo em voz baixa:
— Ela o ama.